O eurodeputado Francisco Assis, que está em Cabo Verde a participar na conferência organizada pela Presidência da República para debater soluções para as migrações africanas irregulares, afirma que a União Europeia tem de manter-se fiel à sua matriz humanista e combater, com todas as forças, as políticas populistas e racistas que despontam no continente. Nesta conversa, exclusiva, com o Expresso das Ilhas, o socialista fala das soluções a curto, médio e longo prazo para as migrações clandestinas e esclarece qual o papel que Cabo Verde pode ter nessas questões.
Expresso das Ilhas - Estudos recentes mostraram duas realidades curiosas; uma, que a pressão migratória da África Ocidental para a Europa não é tão alarmante como se pensava, a segunda, que a rota principal para chegar à Europa é a do Mediterrâneo Oriental, principalmente usada por migrantes do Afeganistão, da Síria e do Bangladesh. No entanto, neste momento, os olhos europeus estão voltados para a África subsaariana, acha que foi a magnitude da perda de vidas na travessia do Mediterrâneo a despertar a consciência da Europa?
Francisco Assis - Acho que, sem dúvida, houve algum efeito, como é evidente, porque criou uma grande comoção nos vários povos europeus. Levou mesmo os principais decisores políticos a perceber que não podiam mais ignorar esta realidade. Hoje, temos, de facto, uma pressão maior oriunda do Médio Oriente, sobretudo pessoas que fogem a perseguições políticas e religiosas, estamos perante um outro tipo de migração em que o que se procura é o asilo político, o estatuto de refugiado político e essas pessoas estão a fugir a situações de guerra, situações de perseguição e sobretudo de estados completamente falidos: o Iraque, a Síria, a Líbia, a existência agora do Estado Islâmico, aí sim é a grande pressão sobre a Europa. Temos esta, mais antiga, digamos assim, de pessoas que procuram fugir não só de situações dessa natureza de diversos países africanos onde também há um perigo islamita real, mas também temos outra migração de natureza essencialmente económica. São dois tipos de migrações distintas, mas ambas igualmente respeitáveis e a Europa tem de atender a essa questão por uma razão muito simples: a pressão migratória é inevitável, não é tão elevada como se poderia pensar, mas é inevitável porque, a meu ver, vive mos duas realidades contíguas e completamente diferentes; a Europa em recessão demográfica e a África com um grande crescimento demográfico e isso vai levar a que haja uma pressão natural, que deve ser vista como positiva e deve ser vista como uma oportunidade e não como uma dificuldade. Até porque a Europa precisa, devidamente integrados logicamente, de se rejuvenescer e uma das formas de o conseguir é acolhendo pessoas oriundas de outros espaços geográficos. Por outro lado, nós europeus não podemos perder de vista que somos, por um lado, o resultado de grandes migrações e somos, até bem recentemente, um continente de pessoas que emigraram para o Novo Mundo para fugir às grandes crises que afectaram vários países europeus. Os Estados Unidos da América e a América Latina foram construídos, no essencial, a partir de europeus. No caso dos africanos a situação, infelizmente, foi bastante mais dolorosa porque resultou do tráfico de seres humanos, mas no caso dos europeus foi, muitas vezes, para fugir também à fome, a perseguições religiosas e políticas que as pessoas foram para a América do Norte quer para a América do Sul, e sem isso a vida na Europa teria sido muito mais difícil, portanto, temos de ter uma perspectiva diferente para as pessoas que procuram a Europa.
Perspectiva diferente como?
Julgo que as recentes decisões da Comissão Europeia revelam que a Europa está a despertar para este problema e começa a encará-lo de outra forma.
Um dos temas que o traz a Cabo Verde é exactamente as soluções políticas e institucionais para o problema. De que soluções estamos a falar?
Estamos a falar de soluções a vários níveis. Em primeiro lugar gostaria de destacar aquelas de curto prazo: há que melhorar os mecanismos de reconhecimento e de acompanhamento da situação no mar Mediterrâneo, para evitar o que tem acontecido. Esta foi a mais visível, mas calcula-se que já mais de cinco mil pessoas morreram a tentar atravessar o mar Mediterrâneo e há aspectos dramáticos: uma universidade holandesa fez um estudo que revela que 65 por cento dessas pessoas nunca serão reconhecidas, nunca se saberá quem eram, de onde vinham e nós temos de fazer um acompanhamento melhor, como se fez em tempos quando o governo italiano tinha um programa, que infelizmente não foi devidamente financiado, a Europa não foi solidária e acabaram com ele. Agora, vão-se reforçar as verbas nesses programas, vai-se combater o tráfico de seres humanos, combatendo as máfias que operam nesse âmbito. E foi tomada uma medida muito importante, o facto da Comissão Europeia chamar para si a responsabilidade de criar quotas de distribuição de refugiados pelos vários estados membro da União Europeia, justamente para que haja uma resposta solidária. Porque tem-se verificado que há dois tipos de países que enfrentam mais problemas, aqueles onde chegam os refugiados (Espanha, Itália, Grécia e Malta), e os países para onde eles querem ir, principalmente os do norte (Dinamarca, Suécia, Alemanha) e é preciso que haja uma resposta mais solidária a nível europeu. Por outro lado, os países europeus têm a obrigação de aumentar a sua disponibilidade para acolher refugiados. A médio/longo prazo tem que haver acções de cooperação com os países de passagem e de origem. Os países de passagem, como é o caso da Líbia, são países sem Estado neste momento, o caos absoluto, e nos países de origem também deve ser feito algum esforço e há que apoiar o seu desenvolvimento. No Parlamento Europeu estamos muito empenhados nisso, em aumentar a percentagem de Ajuda Pública ao Desenvolvimento. A Europa já é a entidade política a nível mundial que mais ajuda, 60 por cento da ajuda pública em todo o mundo tem proveniência europeia, mas é preciso ir mais longe e criar condições para o desenvolvimento real.
África está a crescer economicamente.
Não chega crescer, é preciso que se haja uma distribuição mais justa dos rendimentos. É evidente que este é um esforço que os próprios países têm de levar a cabo, mas é possível com uma boa cooperação apressar estes processos e julgo que esse é um trabalho a médio/longo prazo que temos de fazer com África.
Duas questões no seguimento do que disse: por um lado, essa necessidade de responsabilização do ponto de origem das migrações. Há um apontar de dedo demasiado fácil à Europa e um esquecimento de onde o problema começa?
O problema é demasiado complexo, mas a Europa procura ser, e sob vários pontos de vista é, uma referência mundial de respeito pelos direitos do homem. Temos uma longa história, complexa, contraditória, mas neste momento o projecto europeu assenta em vários princípios e valores de direitos do homem, da solidariedade, da afirmação da liberdade, da igualdade e quando uma entidade política procura projectar estes valores no mundo tem de saber dar exemplos. Portanto, temos uma responsabilidade muito grande neste domínio. E essas responsabilidades decorrem do melhor que a Europa tem. Nessa perspectiva, julgo que a União Europeia tem de saber responder. É evidente que, felizmente, há uma opinião pública bastante crítica na Europa e essa opinião pública, muitas vezes, também é levada a um excesso de autocriticismo, também terá a ver, um pouco, com a consciência de culpa histórica da Europa, que tem razão de ser, uma vez que a Europa fez muito mal aqui em África, a colonização, o tráfico de escravos, e tudo isso faz com que a Europa tenha de assumir as suas responsabilidades. Agora, é também evidente que o que se passa em muitos países africanos, as oligarquias dominantes, a má distribuição do rendimento, as autocracias políticas, terá de ser corrigido, mas só poderá ser feito com esforço dos próprios africanos. Como disse, acho que alguma cooperação nesse âmbito pode ajudar a enfrentar e a resolver esses problemas.
A segunda questão que me ocorre quando falamos de quotas para migrantes é que temos, na Europa, o recrudescimento dos movimentos nacionalistas. Ou seja, poderá haver um choque ainda maior entre nacionalistas e europeístas?
Nós temos de os enfrentar. A questão é colocada pelo vice-presidente da Comissão Europeia numa entrevista que deu hoje [segunda-feira] ao jornal Público: temos de ter a coragem de enfrentar os discursos populistas, que realmente estão a surgir com alguma força na Europa. E não os enfrentamos se nos resignarmos a eles, temos de os combater e temos de, junto dos povos, fazer este discurso de afirmação dos grandes valores que identificam o projecto europeu. E julgo que se o fizermos podemos ganhar essa batalha, se não o fizermos estamos condenados a perdê-la porque acabaremos por interiorizar esse discurso populista, xenófobo, racista e que, evidentemente, é um discurso que num momento de crise tem grandes condições para se expandir. Na Europa estamos a atravessar uma crise económica e social, mesmo os países que não estão a atravessar uma grave crise económica vivem crises sociais, as desigualdades aumentaram, os níveis de desemprego são muito elevados e é natural que essas alturas, as pessoas em estado de desespero tendam a culpar o outro, como sempre aconteceu na história. Mas, é nosso dever combater esse discurso, arriscarmos tudo a desmontar esse discurso e acho que isso está a acontecer. A União Europeia tomou, nas últimas semanas, decisões muito corajosas e que vão nesse sentido.
No entanto, não é apenas a questão dos partidos de direita. Nas urnas de voto
a população tem mostrado que está ao lado desses políticos.
Sim, o problema é esse, a população que vota neles. Agora, se não combatermos as doutrinas desses partidos estamos condenados a que esses partidos cresçam. É preciso desmontar a ideia simplista que a ida de cidadãos africanos vai prejudicar a perspectiva de obtenção de empregos de cidadãos europeus, porque na maior parte dos casos não é verdade. Na maior parte dos casos, essas pessoas vão desempenhar funções que hoje não são desempenhadas pelos europeus, noutros vão desempenhar funções em que não vão tirar o lugar a ninguém e vão rejuvenescer as sociedades e vão contribuir para sustentar, a prazo, o estado social europeu. Portanto, é uma boa oportunidade. Agora, é verdade que há sempre medos, mas isso não é característica apenas dos europeus, todos os povos têm tendência para se fecharem. Por outro lado, como já disse, a Europa tem esse lado positivo que é ser o lugar onde os direitos humanos mais se expandiram e mais se afirmaram. E essa é uma obrigação que nós temos e em nome desses direitos temos de fazer um discurso contra esses programas políticos, precisamente para evitar que as populações se reconheçam nesses mesmos programas.
Esta é também uma resposta à crítica que a União Europeia estava essencialmente empenhada em operações de salvamento e não tanto em receber os migrantes?
Há uma parte da União Europeia em que têm essa posição e há outra parte que não. Repito, esta decisão da União Europeia é uma boa decisão porque contraria essa tendência. É lógico que é preciso ter operações de salvamento, essa é, digamos, a parte mais imediata, mas isso não chega. Não podemos dizer às pessoas: não venham morrer nas nossas costas, morram de preferência nos vossos países, temos de perceber a realidade e temos de ter um discurso assente nas nossas obrigações humanitárias e nas obrigações que decorrem da natureza do nosso projecto político e temos condições económicas, apesar da crise que estamos a atravessar, para acolher mais pessoas e temos de as saber integrar. Claro que as situações são muito diferentes de país para país. Em França, hoje, há um racismo anti-árabe, fundamentalmente, noutros países estamos perante fenómenos de nacionalismos xenófobos virados até contra outros povos europeus, búlgaros, romenos, e há países, como é o caso, felizmente, de Portugal, onde não há nenhum movimento que tenha a menor expressão política que cultive esse tipo de discurso. Apesar de tudo, o cenário europeu não é tão trágico como às vezes somos levados a pensar.
Em resumo, acha que a Europa está a levar a sério a política da migração ou continua a estar interessada, essencialmente, em proteger o seu território?
Julgo que estamos finalmente a pôr as migrações em cima da mesa. Se compararmos com os Estados Unidos da América vemos que os americanos acolhem muito mais imigrantes do que a Europa, têm uma capacidade de absorção muito maior. Claro que eles são um país que foi construído com base na imigração e percebem melhor isso, mas há um espaço de crescimento para a imigração na Europa e julgo que isso começa a ser um tema central na discussão política europeia e começa a haver gestos e decisões concretas. O presidente da Comissão Europeia definiu bem as prioridades no seu discurso inaugural e uma delas foi, precisamente, uma nova política de migrações.
Mas, uma das críticas feitas é que os países africanos têm ficado de fora das discussões sobre o tema.
Mas têm de passar a estar. Tem de haver um outro tipo de relacionamentos entre a União Europeia e os países africanos. Até porque se queremos também criar condições para resolver alguns problemas nos países de origem temos de falar com esses países.
A Europa está também a levar em conta os vários tipos de migrantes, porque há os trabalhadores, há os refugiados e há os deslocados.
Está, até porque, como lhe disse, o número de refugiados é elevadíssimo. A grande pressão é do número de refugiados e aí o direito internacional estabelece regras claras que têm de ser respeitadas em matéria de direito de asilo e das obrigações que os estados têm nesse domínio. São estatutos diferentes, de facto, e neste momento a grande pressão com que estamos a ser confrontados, e que deve aumentar, é com os refugiados políticos que fogem de guerras, perseguições políticas e perseguições religiosas.
Mas, isso está a acontecer numa altura em que os países receptores, e não apenas na Europa, estão a impor limites para receber esses refugiados. Como vão resolver o dilema?
Não é possível absorver imediatamente todas as pessoas que nos procuram. Julgo que tem de haver regras muito claras, tem de se avaliar caso a caso e tem de se ponderar seriamente os casos em que há lugar a repatriamentos. Porque repatriar pessoas que sabemos que estamos a condenar à morte é algo absolutamente desumano e não podemos pactuar com situações dessa natureza.
Regressando aos temas que vai falar nesta sua vinda a Cabo Verde. Qual será o papel do arquipélago em todas essas questões?
Cabo Verde tem um papel importante, primeiro porque é um exemplo de cooperação de um país africano com a União Europeia e há uma vontade mútua de aprofundar ainda mais essa cooperação e de ir mais longe. Estamos a falar de uma democracia absolutamente consolidada, de um país com instituições sólidas, por isso, é um exemplo. Por outro lado, estamos num arquipélago e é um país que, mais cedo ou mais tarde, vai ter este problema das rotas marítimas das migrações, portanto, há que ter uma atitude de cautela e de preparação do que poderá vir a acontecer. Por outro lado ainda, é um país que pode ajudar a Europa a falar com os outros países africanos, devido à própria característica de Cabo Verde, país africano muito voltado para a Europa, compreende bem estas duas dimensões e pode, por isso, ajudar este diálogo entre a Europa e África.
Há a preocupação também que o arquipélago tenha as suas fronteiras cada vez mais seguras, porque é também uma porta de entrada na Europa?
É verdade. Eu acho que a Europa deve ajudar Cabo Verde a ter essas fronteiras seguras. É evidente que não é um esforço que se possa exigir ao país, é um esforço em que a Europa deve ser solidária porque é do interesse da Europa que essas fronteiras sejam cada vez mais seguras.
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