Os países europeus têm a obrigação de aumentar a sua disponibilidade para acolher refugiados - Francisco Assis

PorJorge Montezinho,1 jun 2015 16:33

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O eurodeputado Francisco Assis, que está em Cabo Verde a participar na conferência organizada pela Presidência da República para debater soluções para as migrações africanas irregulares, afirma que a União Europeia tem de manter-se fiel à sua matriz humanista e combater, com todas as forças, as políticas populistas e racistas que despontam no continente. Nesta conversa, exclusiva, com o Expresso das Ilhas, o socialista fala das soluções a curto, médio e longo prazo para as migrações clandestinas e esclarece qual o papel que Cabo Verde pode ter nessas questões.


Expresso das Ilhas - Estu­dos recentes mostraram duas realidades curiosas; uma, que a pressão migra­tória da África Ocidental para a Europa não é tão alarmante como se pensa­va, a segunda, que a rota principal para chegar à Eu­ropa é a do Mediterrâneo Oriental, principalmente usada por migrantes do Afeganistão, da Síria e do Bangladesh. No entanto, neste momento, os olhos europeus estão voltados para a África subsaariana, acha que foi a magnitude da perda de vidas na tra­vessia do Mediterrâneo a despertar a consciência da Europa?

Francisco Assis - Acho que, sem dúvida, houve algum efei­to, como é evidente, porque criou uma grande comoção nos vários povos europeus. Levou mesmo os principais decisores políticos a perceber que não podiam mais ignorar esta rea­lidade. Hoje, temos, de facto, uma pressão maior oriunda do Médio Oriente, sobretudo pes­soas que fogem a perseguições políticas e religiosas, estamos perante um outro tipo de mi­gração em que o que se procura é o asilo político, o estatuto de refugiado político e essas pes­soas estão a fugir a situações de guerra, situações de perse­guição e sobretudo de estados completamente falidos: o Ira­que, a Síria, a Líbia, a existên­cia agora do Estado Islâmico, aí sim é a grande pressão sobre a Europa. Temos esta, mais anti­ga, digamos assim, de pessoas que procuram fugir não só de situações dessa natureza de diversos países africanos onde também há um perigo islami­ta real, mas também temos outra migração de natureza essencialmente económica. São dois tipos de migrações distintas, mas ambas igual­mente respeitáveis e a Europa tem de atender a essa questão por uma razão muito simples: a pressão migratória é inevitá­vel, não é tão elevada como se poderia pensar, mas é inevi­tável porque, a meu ver, vive­ mos duas realidades contíguas e completamente diferentes; a Europa em recessão demográ­fica e a África com um grande crescimento demográfico e isso vai levar a que haja uma pressão natural, que deve ser vista como positiva e deve ser vista como uma oportunidade e não como uma dificuldade. Até porque a Europa precisa, devidamente integrados logi­camente, de se rejuvenescer e uma das formas de o conseguir é acolhendo pessoas oriundas de outros espaços geográficos. Por outro lado, nós europeus não podemos perder de vista que somos, por um lado, o re­sultado de grandes migrações e somos, até bem recentemente, um continente de pessoas que emigraram para o Novo Mun­do para fugir às grandes crises que afectaram vários países europeus. Os Estados Unidos da América e a América Latina foram construídos, no essen­cial, a partir de europeus. No caso dos africanos a situação, infelizmente, foi bastante mais dolorosa porque resultou do tráfico de seres humanos, mas no caso dos europeus foi, mui­tas vezes, para fugir também à fome, a perseguições religiosas e políticas que as pessoas fo­ram para a América do Norte quer para a América do Sul, e sem isso a vida na Europa teria sido muito mais difícil, portan­to, temos de ter uma perspec­tiva diferente para as pessoas que procuram a Europa.

Perspectiva diferente como?

Julgo que as recentes decisões da Comissão Europeia revelam que a Europa está a despertar para este problema e começa a encará-lo de outra forma.

Um dos temas que o traz a Cabo Verde é exactamente as soluções políticas e ins­titucionais para o proble­ma. De que soluções esta­mos a falar?

Estamos a falar de soluções a vários níveis. Em primei­ro lugar gostaria de destacar aquelas de curto prazo: há que melhorar os mecanismos de reconhecimento e de acompa­nhamento da situação no mar Mediterrâneo, para evitar o que tem acontecido. Esta foi a mais visível, mas calcula-se que já mais de cinco mil pesso­as morreram a tentar atraves­sar o mar Mediterrâneo e há aspectos dramáticos: uma uni­versidade holandesa fez um es­tudo que revela que 65 por cen­to dessas pessoas nunca serão reconhecidas, nunca se saberá quem eram, de onde vinham e nós temos de fazer um acompa­nhamento melhor, como se fez em tempos quando o governo italiano tinha um programa, que infelizmente não foi devi­damente financiado, a Europa não foi solidária e acabaram com ele. Agora, vão-se reforçar as verbas nesses programas, vai-se combater o tráfico de seres humanos, combatendo as máfias que operam nesse âmbito. E foi tomada uma me­dida muito importante, o facto da Comissão Europeia chamar para si a responsabilidade de criar quotas de distribuição de refugiados pelos vários estados membro da União Europeia, justamente para que haja uma resposta solidária. Porque tem­-se verificado que há dois tipos de países que enfrentam mais problemas, aqueles onde che­gam os refugiados (Espanha, Itália, Grécia e Malta), e os países para onde eles querem ir, principalmente os do norte (Dinamarca, Suécia, Alema­nha) e é preciso que haja uma resposta mais solidária a nível europeu. Por outro lado, os pa­íses europeus têm a obrigação de aumentar a sua disponibili­dade para acolher refugiados. A médio/longo prazo tem que haver acções de cooperação com os países de passagem e de origem. Os países de passagem, como é o caso da Líbia, são pa­íses sem Estado neste momen­to, o caos absoluto, e nos países de origem também deve ser feito algum esforço e há que apoiar o seu desenvolvimento. No Parlamento Europeu esta­mos muito empenhados nisso, em aumentar a percentagem de Ajuda Pública ao Desenvolvi­mento. A Europa já é a entida­de política a nível mundial que mais ajuda, 60 por cento da ajuda pública em todo o mun­do tem proveniência europeia, mas é preciso ir mais longe e criar condições para o desen­volvimento real.

África está a crescer eco­nomicamente.

Não chega crescer, é preciso que se haja uma distribuição mais justa dos rendimentos. É evidente que este é um esfor­ço que os próprios países têm de levar a cabo, mas é possí­vel com uma boa cooperação apressar estes processos e jul­go que esse é um trabalho a médio/longo prazo que temos de fazer com África.

Duas questões no segui­mento do que disse: por um lado, essa necessidade de responsabilização do ponto de origem das mi­grações. Há um apontar de dedo demasiado fácil à Eu­ropa e um esquecimento de onde o problema começa?

O problema é demasiado com­plexo, mas a Europa procura ser, e sob vários pontos de vista é, uma referência mundial de respeito pelos direitos do ho­mem. Temos uma longa histó­ria, complexa, contraditória, mas neste momento o projec­to europeu assenta em vários princípios e valores de direitos do homem, da solidariedade, da afirmação da liberdade, da igualdade e quando uma enti­dade política procura projectar estes valores no mundo tem de saber dar exemplos. Portanto, temos uma responsabilidade muito grande neste domínio. E essas responsabilidades decor­rem do melhor que a Europa tem. Nessa perspectiva, julgo que a União Europeia tem de saber responder. É evidente que, felizmente, há uma opi­nião pública bastante crítica na Europa e essa opinião pública, muitas vezes, também é leva­da a um excesso de autocriti­cismo, também terá a ver, um pouco, com a consciência de culpa histórica da Europa, que tem razão de ser, uma vez que a Europa fez muito mal aqui em África, a colonização, o tráfico de escravos, e tudo isso faz com que a Europa tenha de assu­mir as suas responsabilidades. Agora, é também evidente que o que se passa em muitos pa­íses africanos, as oligarquias dominantes, a má distribuição do rendimento, as autocracias políticas, terá de ser corrigido, mas só poderá ser feito com esforço dos próprios africanos. Como disse, acho que alguma cooperação nesse âmbito pode ajudar a enfrentar e a resolver esses problemas.

A segunda questão que me ocorre quando falamos de quotas para migrantes é que temos, na Europa, o recrudescimento dos mo­vimentos nacionalistas. Ou seja, poderá haver um choque ainda maior entre nacionalistas e europeís­tas?

Nós temos de os enfrentar. A questão é colocada pelo vice­-presidente da Comissão Euro­peia numa entrevista que deu hoje [segunda-feira] ao jornal Público: temos de ter a cora­gem de enfrentar os discursos populistas, que realmente es­tão a surgir com alguma força na Europa. E não os enfrenta­mos se nos resignarmos a eles, temos de os combater e temos de, junto dos povos, fazer este discurso de afirmação dos grandes valores que identifi­cam o projecto europeu. E jul­go que se o fizermos podemos ganhar essa batalha, se não o fizermos estamos condenados a perdê-la porque acabaremos por interiorizar esse discurso populista, xenófobo, racista e que, evidentemente, é um dis­curso que num momento de crise tem grandes condições para se expandir. Na Europa estamos a atravessar uma crise económica e social, mesmo os países que não estão a atraves­sar uma grave crise económica vivem crises sociais, as desi­gualdades aumentaram, os ní­veis de desemprego são muito elevados e é natural que essas alturas, as pessoas em estado de desespero tendam a culpar o outro, como sempre aconteceu na história. Mas, é nosso dever combater esse discurso, arris­carmos tudo a desmontar esse discurso e acho que isso está a acontecer. A União Europeia tomou, nas últimas semanas, decisões muito corajosas e que vão nesse sentido.

No entanto, não é apenas a questão dos partidos de direita. Nas urnas de voto

 

a população tem mostrado que está ao lado desses po­líticos.

Sim, o problema é esse, a popu­lação que vota neles. Agora, se não combatermos as doutrinas desses partidos estamos con­denados a que esses partidos cresçam. É preciso desmontar a ideia simplista que a ida de cidadãos africanos vai prejudi­car a perspectiva de obtenção de empregos de cidadãos eu­ropeus, porque na maior parte dos casos não é verdade. Na maior parte dos casos, essas pessoas vão desempenhar fun­ções que hoje não são desem­penhadas pelos europeus, nou­tros vão desempenhar funções em que não vão tirar o lugar a ninguém e vão rejuvenescer as sociedades e vão contribuir para sustentar, a prazo, o esta­do social europeu. Portanto, é uma boa oportunidade. Agora, é verdade que há sempre me­dos, mas isso não é característi­ca apenas dos europeus, todos os povos têm tendência para se fecharem. Por outro lado, como já disse, a Europa tem esse lado positivo que é ser o lugar onde os direitos humanos mais se expandiram e mais se afirma­ram. E essa é uma obrigação que nós temos e em nome des­ses direitos temos de fazer um discurso contra esses progra­mas políticos, precisamente para evitar que as populações se reconheçam nesses mesmos programas.

Esta é também uma res­posta à crítica que a União Europeia estava essen­cialmente empenhada em operações de salvamento e não tanto em receber os migrantes?

Há uma parte da União Euro­peia em que têm essa posição e há outra parte que não. Repito, esta decisão da União Europeia é uma boa decisão porque con­traria essa tendência. É lógico que é preciso ter operações de salvamento, essa é, digamos, a parte mais imediata, mas isso não chega. Não podemos dizer às pessoas: não venham morrer nas nossas costas, morram de preferência nos vossos países, temos de perceber a realida­de e temos de ter um discurso assente nas nossas obrigações humanitárias e nas obrigações que decorrem da natureza do nosso projecto político e temos condições económicas, apesar da crise que estamos a atraves­sar, para acolher mais pessoas e temos de as saber integrar. Claro que as situações são mui­to diferentes de país para país. Em França, hoje, há um racis­mo anti-árabe, fundamental­mente, noutros países estamos perante fenómenos de nacio­nalismos xenófobos virados até contra outros povos europeus, búlgaros, romenos, e há países, como é o caso, felizmente, de Portugal, onde não há nenhum movimento que tenha a menor expressão política que cultive esse tipo de discurso. Apesar de tudo, o cenário europeu não é tão trágico como às vezes so­mos levados a pensar.

Em resumo, acha que a Europa está a levar a sério a política da migração ou continua a estar interes­sada, essencialmente, em proteger o seu território?

Julgo que estamos finalmen­te a pôr as migrações em cima da mesa. Se compararmos com os Estados Unidos da Améri­ca vemos que os americanos acolhem muito mais imigran­tes do que a Europa, têm uma capacidade de absorção muito maior. Claro que eles são um país que foi construído com base na imigração e percebem melhor isso, mas há um espaço de crescimento para a imigra­ção na Europa e julgo que isso começa a ser um tema central na discussão política europeia e começa a haver gestos e de­cisões concretas. O presidente da Comissão Europeia definiu bem as prioridades no seu dis­curso inaugural e uma delas foi, precisamente, uma nova política de migrações.

Mas, uma das críticas fei­tas é que os países africa­nos têm ficado de fora das discussões sobre o tema.

Mas têm de passar a estar. Tem de haver um outro tipo de re­lacionamentos entre a União Europeia e os países africa­nos. Até porque se queremos também criar condições para resolver alguns problemas nos países de origem temos de falar com esses países.

A Europa está também a levar em conta os vários tipos de migrantes, porque há os trabalhadores, há os refugiados e há os desloca­dos.

Está, até porque, como lhe dis­se, o número de refugiados é elevadíssimo. A grande pressão é do número de refugiados e aí o direito internacional estabe­lece regras claras que têm de ser respeitadas em matéria de direito de asilo e das obriga­ções que os estados têm nesse domínio. São estatutos diferen­tes, de facto, e neste momento a grande pressão com que esta­mos a ser confrontados, e que deve aumentar, é com os refu­giados políticos que fogem de guerras, perseguições políticas e perseguições religiosas.

Mas, isso está a acontecer numa altura em que os países receptores, e não apenas na Europa, estão a impor limites para receber esses refugiados. Como vão resolver o dilema?

Não é possível absorver ime­diatamente todas as pessoas que nos procuram. Julgo que tem de haver regras muito cla­ras, tem de se avaliar caso a caso e tem de se ponderar se­riamente os casos em que há lugar a repatriamentos. Porque repatriar pessoas que sabemos que estamos a condenar à mor­te é algo absolutamente desu­mano e não podemos pactuar com situações dessa natureza.

Regressando aos temas que vai falar nesta sua vin­da a Cabo Verde. Qual será o papel do arquipélago em todas essas questões?

Cabo Verde tem um papel im­portante, primeiro porque é um exemplo de cooperação de um país africano com a União Europeia e há uma vontade mútua de aprofundar ainda mais essa cooperação e de ir mais longe. Estamos a falar de uma democracia absolutamen­te consolidada, de um país com instituições sólidas, por isso, é um exemplo. Por outro lado, estamos num arquipélago e é um país que, mais cedo ou mais tarde, vai ter este problema das rotas marítimas das migrações, portanto, há que ter uma atitu­de de cautela e de preparação do que poderá vir a acontecer. Por outro lado ainda, é um país que pode ajudar a Euro­pa a falar com os outros países africanos, devido à própria ca­racterística de Cabo Verde, país africano muito voltado para a Europa, compreende bem es­tas duas dimensões e pode, por isso, ajudar este diálogo entre a Europa e África.

Há a preocupação também que o arquipélago tenha as suas fronteiras cada vez mais seguras, porque é também uma porta de en­trada na Europa?

É verdade. Eu acho que a Eu­ropa deve ajudar Cabo Verde a ter essas fronteiras seguras. É evidente que não é um esfor­ço que se possa exigir ao país, é um esforço em que a Europa deve ser solidária porque é do interesse da Europa que essas fronteiras sejam cada vez mais seguras.

 

Foto:Lusa

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Autoria:Jorge Montezinho,1 jun 2015 16:33

Editado porRendy Santos  em  3 jun 2015 15:22

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