Fernando Dolabela: O empreendedorismo acontece depois da porta da rua

PorJorge Montezinho,18 jun 2016 6:00

O brasileiro Fernando Dolabela é considerado uma das 80 personalidades mundiais no tema de empreendedorismo. Autor de 17 livros sobre o  tema, Dolabela é também o criador dos maiores programas de ensino do empreendedorismo do Brasil na educação básica e universitária. A metodologia Oficina do Empreendedor (utilizada em projectos do IEL (CNI), Sebrae, CNPq e outros órgãos) já foi implementada em mais de 400 instituições de ensino superior, atingindo cerca de 3.500 professores e 160.000 alunos/ano. A metodologia Pedagogia Empreendedora (educação empreendedora para a educação infantil, ensino fundamental e médio), apesar de recente já é utilizada em 120 cidades, envolvendo cerca de 10.000 professores e 300.000 alunos com repercussão em uma população de 2,5 milhões de habitantes. De passagem por Cabo Verde, para participar numa formação patrocinada pela ONU, Fernando Dolabela falou em exclusivo com o Expresso das Ilhas, para dar a sua visão do que é empreendedorismo, como funciona, ou porque não funciona outras vezes. Mantivemos na transcrição e edição, o português do Brasil.

Começamos pela pergunta de algibeira: o que é, afinal, o empreendedorismo? 

O empreendedorismo é a capacidade de transformar o mundo, oferecendo valor positivo para a colectividade. Essa é a tarefa do empreendedor. Eticamente, significa que o seu trabalho deve ser dirigido à colectividade, oferecer coisas boas, valor positivo.

 

Qualquer um pode ser empreendedor?

Qualquer um. Empreendedorismo é o potencial da espécie humana. Você pode ser corredor, pode não ser o Usain Bolt, pode tocar piano, pode não ser o Mozart, mas qualquer um pode ser, basta que utilize esse potencial da espécie. E esse potencial é disparado pela emoção. Qual é o momento em que você dispara? Quando se torna persistente. Eu detesto as chamadas ‘características do empreendedor’. Não valem para nada. Tudo bosta. Porquê? Existe uma escola de persistência? Isso é picaretagem. Como é que você é persistente afinal? Você é persistente porque está apaixonado. E o empreendedor é uma pessoa apaixonada. É a paixão que me faz insistir, persistir, lutar, sobreviver. Essa percepção da emoção contrapõe-se à visão instrumental do empreendedorismo. Empreendedorismo não é saber marketing, não é saber finanças, é emocionar-se. O marketing, as finanças, são instrumentos, como o pintor tem o pincel, mas o pincel não pinta sozinho. Há uma confusão muito grande na educação empreendedora entre instrumentos, ferramentas e valor empreendedor.

 

Pois, mas como é que se ensina o valor?

Esse é o problema. Ensinar matemática é fácil, mas é muito difícil desenvolver valores novos. Esse é o problema do empreendedorismo, o valor mental, essa é a grande chave: como é que eu vejo o mundo? 

 

E é possível treinar essa visão do mundo?

É possível. É o que vamos tentar fazer esta semana (risos). O que diferencia uma pessoa empreendedora de outra que não é? A visão do mundo. Modelo mental. Só isso. Historicamente, podemos pegar em vários exemplos, desde o anglo-saxão ao católico. O católico por natureza não é empreendedor. O modelo mental não é esse. Apesar de encontrar empreendedorismo em Portugal, que já foi o maior centro de high-tech do mundo, não existia tecnologia mais avançada na arte de navegar do que a que havia em Portugal. Mas, a cultura não é empreendedora. O mesmo no Brasil, a cultura não é de transformação, de construção, é de dependência, uma cultura de hierarquias. Veja, o empreendedor propaga-se através de redes.

 

Ou seja, não há um empreendedor sozinho.

Não há. Digo mais, quando você tem uma universidade, tem uma hierarquia meritocrática, e é assim que funciona. Quem manda? O PHD, não o reitor. O reitor tem um papel diferente. Bem, no Brasil não faz nada, nas universidades americanas capta recursos, e funciona muito bem com os conhecimentos tradicionais. Já o empreendedor, como é que ele aprende? Não adianta falar com ele, ele aprende falando com outro empreendedor. No Brasil há uma cidade empreendedora, de 35 mil habitantes, que só tinha café e gado. Há uns 50 anos, a mulher do embaixador brasileiro no Japão viu uma escola de tecnologia e criou, lá em Santa Rita, uma escola de 2º grau de electrónica. Sem nenhum dinheiro do governo, hoje a cidade é um parque de alta tecnologia, com 150 empresas, como se explica esse ambiente? Foi o Bar do Bá. Porquê? Porque lá as pessoas conversavam sobre empreendedorismo. Nos cafés do Brasil fala-se de futebol, de mulher – nada contra (risos) – mas, nos cafés de Silicon Valley fala-se de ideias, diz-se que se procura um investidor, e as coisas rolam. Isso é rede. Eu não posso ensinar ninguém a ter essa atitude. Nenhum empreendedor criou nada na universidade, já iam prontos, já tinham esse modelo mental. O Zuckerberg queria trepar e fez o Facebook (risos), foi mais ou menos isso, quando tentava encontrar forma de falar com as colegas criou uma página social.

 

Há pouco interrompi-o, mas onde entra essa história do catolicismo sendo inimigo do empreendedor?

É a questão do dinheiro. Segundo o catolicismo, quem ganha dinheiro vai para o inferno, pode parecer uma piada, mas é muito sério. Mas as próprias escolas, todas as escolas públicas brasileiras, são anti-empreendedoras. Porquê? Porque a famosa esquerda (e eu já fui comunista) ensina isso nas escolas: o capitalista é o inimigo. O neoliberal é um filho da mãe. A palavra empresa não é falada na sala de aula na educação básica. E na universidade também não. Se é universidade pública, são inimigos. Por isso, voltando ao início da conversa, todo o mundo pode ser empreendedor? Depende do modelo mental, e nós que estamos neste 3º mundo católico temos ainda mais trabalho. Por isso, por exemplo, não podemos pegar na metodologia empreendedora norte-americana, sou contra. 

 

É preciso criar um método próprio para cada país?

O próprio. Porque veja-se a África, é diferente dos Estados Unidos. A Europa é diferente. Temos mais semelhanças entre o Brasil e África do que entre África e os Estados Unidos, ou a Europa, e voltamos aos valores. Você pode pegar no congresso nacional brasileiro – que é tudo corrupto – pode dar um curso de ética, eles vão descobrir o que é ética, mas vão continuar roubando. O valor não se passa por cursos, mas se meterem os corruptos na cadeia eles aprendem.

 

Mas, por exemplo, a oficina do empreendedor, que criou no Brasil, pretende o quê?

Eu comecei a trabalhar com as universidades e a proposta era: como fazer com que os estudantes universitários, cujo sonho é ser funcionário público, se tornem empreendedores? É uma proposta didáctica dirigida aos professores que querem dar aulas de empreendedorismo nas universidades. Mais tarde, descobri que a universidade é muito tarde, só tem ancião cultural, um menino de 17 anos é um ancião cultural, já está formado, já interiorizou toda a cultura, já só pensa em ser funcionário público. Então, comecei a trabalhar com crianças, a partir de 3, 4 anos. 

 

Quando há pouco falou em revolução de mentalidades, é importante que esta aconteça o mais cedo possível?

Sim. Porque é aí que o ser humano se forma. Quando falo de empreendedorismo para crianças, não falo em empresas, falo em transformação do mundo, em oferecer coisas boas, falo em comunidade, em rede, de não individualismo. Porque o empreendedor não pode ser individualista. O empreendedor precisa do ecossistema. E é isso que ensino às crianças, que têm de unir-se, de desenvolver a comunidade, os alunos aprendem o que é sonho colectivo. A metáfora que eu uso, aliás, é sempre a do sonho. Qual é o sonho individual? Ser médico, ter uma casa, etc. E qual é o sonho colectivo? Saúde para todos, escola perto. Isto é, as pessoas são capazes, desde a mais tenra idade, de ter um sonho de comunidade. Isso é estimulado nas escolas e eles começam a formular problemas e a encontrar soluções – no fundo, é isto o empreendedorismo – levam essas questões à professora, que as leva ao conselho escolar e daí seguem para o perfeito [presidente de câmara].

 

E os meninos começam a perceber que se trabalharem juntos obtêm resultados.

Percebem que é muito difícil fazer alguma coisa sozinho. O objectivo não é que as crianças mudem a cidade, mas que aprendam que precisam da rede, da comunidade. A proposta é: transformem o mundo, deixem um mundo melhor do que receberam, e para isso tem de trabalhar com a comunidade. Porque o empreendedorismo é um fenómeno de comunidades, de cidades. Isso é muito importante porque todos os núcleos de empreendedorismo do mundo estão à volta de cidades – não é um programa nacional, é um fenómeno que acontece entre vizinhos. Por isso encontramos nos Estados Unidos lugares que não são empreendedores e encontra outros que são. Também não existe nenhuma regra, nenhuma relação de causa/efeito. Por exemplo, criem cidades de alto nível e terão empreendedorismo e start-ups, não! Silicon Valley é a excepção. Ou a rota 128 de Boston [conhecida pelo nome de semicírculo mágico, devido à quantidade de empresas tecnológicas que se espalham pela sua área, geralmente impulsionadas pelas descobertas que saem do MIT ou de Harvard]. A regra é: não começar por start-ups. O que é que o pessoal do 3º mundo faz? Investem em universidades, em empreendedorismo, em start-ups todos contentes. Pode dar certo, mas pode não dar e na maior parte das vezes não dá certo.

 

Então o que dá certo?

O Bar do Bá! Isso é que é empreendedorismo. As pessoas têm de começar a perceber que o início da riqueza nasce do trabalho humano e que o governo só gasta. Nós lutamos contra essa mentalidade anti-empreendedora, essa mentalidade, podemos dizer, socialista – que não é. Digo isto porque todo o ser humano com três neurónios é socialista, quem não é a favor da igualdade? Só que isso não funciona, precisamos de outras propostas. Não é que eu seja capitalista, mas o que é bom no capitalismo é a liberdade para criar e o empreendedorismo cresce muito mais com liberdade.

 

Mas o Estado também não tem de ser empreendedor? Por mais empreendedor que seja uma população, ninguém resiste a um mau ambiente de negócios.

É, tem razão. Os rankings do Doing Business comparam isso, e os itens analisados são tarefa do Estado, quem vai investir quer saber qual é a segurança do contracto, como é a burocracia, o acesso ao capital. O governo tem de fazer isso e cair fora, deixar para a iniciativa privada. O papel do governo é muito importante, mas o empreendedorismo é papel da sociedade civil, que tem os conhecimentos e o dinheiro. E é gente, o governo não é gente, é uma máquina de extorquir (risos). Não sou anarquista, mas sou minimalista, o governo deve ser o mais pequeno possível, estabelecer um ambiente ético/legal bom e deixar o povo trabalhar. 

 

Quando escreveu o livro o Segredo de Luísa, achei curioso que dissesse que as pessoas estão mais interessadas em conhecer a história do empresário do que a história da empresa em si. Isso acontece porquê, as histórias de sucesso inspiram?

Sim, as histórias dos empreendedores são muito mais interessantes do que as histórias das empresas que criaram. E o grande momento, num país como o Brasil ou como Cabo Verde, é a transição, o momento em que a pessoa não era empreendedora e passou a ser. A transformação de uma pessoa que foi levada pela cultura a ser dependente, a procurar um emprego público, em alguém que passa a assumir riscos. E mais, isso é um ensino que se pode ter. Se eu lhe mostrar uma empresa, você não aprende nada. Bem, pode aprender técnicas de marketing, mas isso, mais uma vez, não é empreendedorismo. O que vale é a paixão da pessoa que criou e a razão porque criou aquele negócio. Esse é o momento a ser captado, emoldurado e guardado. Essa literatura é ainda pouco conhecida porque quem domina são os Estados Unidos e eles já não precisam de explicar o que é empreendedorismo, o Lincoln já explicou, os pais fundadores já explicaram, Benjamin Franklin foi o maior empreendedor da história dos Estados Unidos. Aqui temos de, além de explicar, combater essa visão arcaica que o empreendedor é um sacana que bebe sangue de criança. A minha proposta didáctica é pessoa para pessoa e não empresa para pessoa. Mais, você não replica uma empresa. Se três pessoas abrirem o mesmo negócio serão três empresas diferentes, porque somos todos diferentes e a empresa é uma extensão do eu. Outra coisa fundamental, e que uma sociedade como a nossa não dá importância, é o autoconhecimento. O autoconhecimento é vitalício. Se você é engenheiro, não precisa de se autoconhecer, tem é de saber fazer cálculos, ler tabelas, etc., para ser médico idem, mas para ser empreendedor tem de autoconhecer-se. Porquê? Porque precisa de saber o que sabe ou não, o que quer e não quer, o que pode e não pode, para quê? Para poder ir buscar pessoas para fazerem o que eu não sei. O empreendedor é um articulador, não é um fazedor. Se você pensar eu sei cozinhar, vou abrir um restaurante, tem 5 por cento de chance de sucesso. Saber cozinhar é o mínimo e a parte mais barata, o que não falta são cozinheiros que não ganham nada. Daí a necessidade do autoconhecimento, que a nossa escola não dá, ninguém se conhece. E isso é mau, porque muitas vezes você dá-se mal na vida porque não se conhece. O empreendedor que acha que pode fazer tudo, quebra.

 

Mais do que espírito de empreendedor é preciso ter estômago de empreendedor para aguentar as fases más?

Tem de ter. Lá está, é a emoção, é o sonho. Você aguenta porrada se estiver atrás do seu sonho, mais do que imaginamos. Agora, se não estou envolvido emocionalmente, à primeira porrada salto fora. Veja, o Brasil tem oito milhões de micro empreendedores, que chegam  segunda-feira à noite com dívidas de 10 mil reais e têm na caixa 500 reais, como é que eles sobrevivem? Eles não têm dinheiro mas eles tocam aquilo, muitas vezes porque desse pequeno negócio depende a sobrevivência da família. A chave da história é aquilo que o iluminismo e o racionalismo pôs em segundo plano: a emoção. Nós somos seres dirigidos pela emoção, é tão simples quanto isso. O empreendedorismo, na minha visão, tem de ter incorporada a emoção, porque é ela que dispara tudo. Em Belo Horizonte havia uma mulher que ficou viúva, com filhos, começou a fazer pão de queijo, o negócio cresceu e mais tarde vendeu a fábrica por 100 milhões de dólares (risos). O empreendedorismo não é um instrumento onde é nítida a relação entre causa e efeito, onde não existe quem sabe e quem não sabe, existe quem se emociona e tem um sonho e quem não se emociona nem tem sonhos. Não é possível dar aulas, não é possível dar respostas. Na minha metodologia dar resposta é proibido, a resposta é o trabalho do empreendedor. O empreendedor tem de procurar duas coisas: o problema e a resposta. Na resposta ele pode articular, mas o grande trabalho do empreendedor é descobrir o problema. Hoje fiz esse exercício aqui [Quebra-Canela] cheguei à praia e procurei os problemas: não há ninguém a vender sorvete, não há água potável, não tem casa-de-banho, consegue detectar-se uma série de problemas que as pessoas não conseguem ler. E o empreendedorismo só existe porque existem problemas. Essa é a tarefa. Para conseguir a solução, o empreendedor pode então chamar a universidade. Porque a universidade não inova. As pessoas dizem que as universidades inovam, mas não é verdade, porquê? Porque a inovação depende do risco e quem assume o risco é a empresa. Ou seja, a minha ideia é fazer um cinzeiro, mas eu não sei fazer alumínio, por isso chamo a universidade e peço para criarem um objecto com certas características. A universidade faz uma peça maravilhosa, ela inovou? Ainda não! Para haver inovação eu, que sou empreendedor, tenho de vender e tenho de ter lucro. O empreendedor é alguém que descobre o problema, conhecendo o cliente. Por isso, o primeiro passo do empreendedor é descobrir o cliente, o que é que ele quer e muita gente inverte isso. Por vezes, opta-se por criar primeiro uma tecnologia e depois ir vendê-la, às vezes pode dar certo, mas o processo real é ir ver o que as pessoas precisam e depois arranjar o produto, esse é o processo empreendedor. Eu não vou pagar por uma coisa que não seja um problema para mim (risos). E geralmente sabe o que acontece? O cliente mostra o problema e mostra a solução. O cliente pode dizer: ‘tenho um problema de claridade, quem sabe você não constrói um negócio tipo uma lente escura’, o cliente sabe isso, não sabe é fazer. E a universidade brasileira isola-se do mundo lá fora, o mundo não interessa porque não conhece física, química, não conhece porra nenhuma, só que o empreendedorismo está lá, no mundo real. O empreendedorismo acontece depois da porta da rua, mas a universidade não dá nenhum instrumento para o aluno descobrir e entender esse mundo. Acha que a verdade está só nos laboratórios.

 

Ou nos livros.

Ou nos livros. Eu já escrevi dezassete, não servem para nada (risos). Estou a ser um pouco auto cáustico, mas ninguém pode dizer que aprende empreendedorismo lendo livros. Aprende-se com a história. E o Segredo de Luísa é uma história, um romance. Porquê romance? Porque somos contadores de histórias e o empreendedor conta a história do futuro. Foi o que pensei ao olhar para esta praia [Quebra-Canela] vamos fazer o futuro disto aqui, e aí contamos a história do futuro: aqui teria um banheiro público, ali um sorveteiro, além um churrasquinho de camarão, esta é a história do futuro. E, na minha opinião, toda a grande educação é à base de histórias. Muitas vezes não reparamos, mas nós criamos os nossos modelos porque ouvimos uma história, ou do nosso pai, ou de um tio, mesmo um filme. Também aprendemos com os livros, mas somos humanos porque contamos história. Por exemplo, quando você vai ter com um capitalista de risco para o convencer a investir na sua empresa você conta-lhe a história do futuro. 

 

Acha que é o facto do empreendedor, como temos estado a ver, ser alguém tão livre que faz com que a sociedade, o Estado, às vezes a própria família, veja com desagrado essa vontade de arriscar?

A minha definição de empreendedor ataca exactamente isso. Eu digo que o empreendedor é alguém que sonha, mas é também alguém que tenta tornar esse sonho realidade. A metodologia são duas perguntas: 1) Qual é o seu sonho? 2) O que vai fazer para transformar esse sonho em realidade? E descobri que ninguém faz essa pergunta: ‘qual é o seu sonho’. O pai não faz, a mãe não faz, o professor não faz. Sabe porquê? Porque sonhar é muito perigoso. Os pais pensam: se o meu filho tem um sonho, estou tramado, porque eu queria que ele fosse professor, ou advogado, e o menino quer dançar ballet, ou surfar. E ser empreendedor é uma coisa de risco e as nossas sociedades não gostam de risco, acham que não faz parte da vida. O que é um mito, como eu digo no Brasil o único que não corria risco algum era o rei e o único jeito de não correr risco é ser amigo do rei. Achar que a vida não tem risco é de loucos, viver é perigoso. O conceito da estabilidade é pernicioso e o sonho significa liberdade. Quando um filho sonha o futuro os pais preferem não saber. Quando falo para os alunos eles dizem-me que nunca lhes fizeram essa pergunta, e mais, 90 por cento nunca fez a pergunta a si próprio. 

 

O futuro vai ser esse, uma espécie de confronto entre a estabilidade e a criatividade?

Acho que não vai ter confronto (risos). Acho que vai ser uma evolução natural.  

 

Vamos ao outro lado do empreendedorismo. Em Portugal, por exemplo, houve uma aposta forte no empreendedorismo, para que os que ficaram desempregados por causa da crise criassem os seus próprios postos de trabalho, investiram-se centenas de milhões de euros, tomaram-se medidas, mas segundo um estudo [A Falácia do Empreendedorismo] só 1 por cento dos desempregados tiveram acesso a alguma fatia desse bolo. O que falhou?

Primeiro, não há uma relação entre pôr dinheiro e criar empreendedores. Depois, há vários tipos de empreendedores. O mergulhador que se transforma em professor de mergulho, o que tem de sustentar a família, o high-tech, o empreendedor social que quer mudar o mundo, o industrial. Cada tipo de empreendedorismo tem um investimento diferente. Essa coisa de atirar dinheiro para que brotem empreendedores não funciona. Não conheço a experiência, mas provavelmente houve engano de investimento. Hoje eu diria que o maior investimento é rede, contágio social. Melhor do que abrir qualquer incubadora de empresas é apostar na marca do empreendedor, digam que empreender é bom, que o empreendedor é um herói. Por isso que o papel das universidades, no futuro, não será ensinar empreendedorismo, mas criar redes, conectar os alunos com o mundo lá fora. É o que acontece em Silicon Valley.

 

Outra das críticas feitas ao empreendedorismo é que os países onde há mais auto-emprego são os mesmos onde há muita pobreza. Ou seja, se o empreendedorismo é tão bom porque é que nos países mais avançados a pessoas continuam a preferir ser empregadas de alguém?

Explico-te isso facilmente. A Argentina, no auge da crise, foi o país mais empreendedor do mundo. Porquê? Quando a economia está mal e eu sou pobre, tenho duas opções: ou morro na fila do autocarro, ou digo ‘eu não vou morrer’. Aí a pessoa começa a lavar carro, a fazer biscates. Quando se fazem as pesquisas sobre empreendedorismo, fazem-se duas perguntas: você tem salário? Você vive da sua actividade há mais de quatro meses? Então é empreendedor, mesmo que seja um flanelinha [lavador de carros]. E claro, quando há uma crise económica, sobe o número de empreendedores. Agora, a leitura que se faz desses números é um bocadinho sacanice. Sendo irónico, nessas pesquisas, o tipo que lava carros está ao mesmo nível do Zuckerberg. Se eu quisesse baixar o pau, é claro que podia dizer que o empreendedorismo é uma porcaria, ou só país subdesenvolvido tem. O empreendedorismo por necessidade não é empreendedorismo de impacto. A pesquisa é óptima, mas a leitura que se faz dela é um horror.

 

Entretanto surgiu o fenómeno dos empreendedores de palco, pessoas que vendem o conceito de empreendedorismo, que enchem auditórios para debitar meia dúzia de chavões, geralmente ocos de conteúdo. E foram, de facto, empreendedores, mas resolveram só os seus próprios problemas.

(risos) Existe empreendedorismo do bem e do mal. Qual é o do bem? Aquele que oferece valor. Dou-te um exemplo, no Sul da Bahia surgiu um resort enorme, fabuloso, parecia que estávamos em Miami. Recebe turistas que pagam eu euros, em dólares. É um empreendedorismo do bem ou do mal? As pessoas dizem, ‘do bem’, eu digo ‘do mal’. Sabe porquê? A população foi excluída. Se precisavam de um garçon iam buscar ao Rio [de Janeiro]. Precisavam de um capitão, iam buscar a São Paulo. Para o pessoal que era mesmo da Bahia sobrou limpar casas-de-banho e plantar relva. Esses tipos que fazem palestras são uns picaretas danados que estão a enganar os outros. São simplesmente aproveitadores.

 

E a colagem entre a narrativa do empreendedorismo ao neoliberalismo. Muitos governos estão a aproveitar-se do discurso para cortar os apoios sociais, mas dando quase a entender que estão a fazer uma coisa boa, libertando as pessoas para serem empreendedoras.

O empreendedorismo precisa de um ambiente liberal. A empresa surge quando há liberdade de mercado e informação sobre o mercado. Esse ambiente tem de existir. Toda a vez que você diz a alguém, desenrasque-se, abra a sua empresa, está a fazer bem. O empregado é a pessoa mais dependente e mais enganado do mundo, porque não realiza o próprio sonho, realiza o sonho do outro. Liberalismo é deixar as pessoas agir, deixá-las criar. Como é que a China mudou? O Deng Xiaoping disse: ‘enriquecer é glorioso’, um comunistaço dizer que enriquecer é glorioso? Mudou! Ser liberal é o melhor destino do ser humano, no sentido que eu o entendo. O socialismo é uma ficção, que funciona muito bem, até que o dinheiro do outro acaba. A sustentabilidade nasce de um país com pessoas sustentáveis. O grande herói brasileiro é a pessoa que gera três empregos, esse é o herói nacional. E isso é viável, não é utopia. Olha o que deu o antiliberalismo no Brasil, a bolsa família, o assistencialismo, é um crime! É claro que a fome não pode esperar, mas se der dinheiro tem de dar empreendedorismo, tem de equipar a pessoa para ser produtiva, como o Muhammad Yunus fez no Bangladesh. Não deixa o cara morrer de fome, mas não pode é deixá-lo anos e anos a viver de subsídios. Você imagina a herança de valor que essas crianças estão recebendo do pai? ‘Qual é que é o negócio? Não fazer nada’. Qual é o modelo dessas crianças? Estão a destruir um país!   

 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 759 de 15 de Junho de 2016.

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Autoria:Jorge Montezinho,18 jun 2016 6:00

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  20 jun 2016 8:22

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