Florentino Mendes Pereira foi portador, na semana passada, de uma mensagem do presidente guineense ao seu homólogo cabo-verdiano, Jorge Carlos Fonseca. Embora se tenha escusado a revelar o teor da missiva, o ministro deixa entender que se relaciona com a crise política que se vive no país desde 2014. Nesta entrevista, o também Secretário-geral do PRS, a principal força política que suporta o governo em exercício, traz a sua versão dos factos que conduziram ao impasse político actual sem que os sucessivos governos consigam fazer aprovar na Assembleia Nacional Popular guineense os seus programas de governo.
Foi portador de uma mensagem do Chefe de Estado da Guiné-Bissau para o seu homólogo cabo-verdiano. Mas escusou-se a revelar aos jornalistas o teor da missiva. Porquê?
Florentino Mendes Pereira – Agradeço ao Expresso das Ilhas por esta oportunidade de falar daquilo que provavelmente vos interessa ouvir. De facto, encontro-me hoje na Cidade da Praia [a entrevista foi gravada no dia 7 de Abril] como enviado especial do Presidente da República da Guiné-Bissau, Dr. José Mário Vaz, para transmitir a sua mensagem ao seu homólogo cabo-verdiano. Como é natural, não é de bom-tom relevar o teor da conversa entre dois chefes de Estado. Daí a minha dificuldade em revelar o conteúdo da mensagem de que fui portador. É por isso compreensível que não possa revelar a conversa entre os dois chefes de Estado, a não ser que estes me autorizassem a fazê-lo. Se estou aqui é porque há confidencialidade nesta matéria, senão, poderiam tratar essa questão pelo telefone.
Em que contexto surge a sua missão como enviado especial do PR da Guiné-Bissau a Cabo Verde?
Em si, são questões de rotina. Os dois países pertencem a vários espaços comuns nomeadamente a CPLP, a CEDEAO, a UA e a ONU; entre os dois países, para além das fortes ligações históricas, há também espaços de concertação e normalmente consultam-se. É nesta perspectiva que se desenrola a minha missão a Cabo Verde.
É também secretário-geral do Partido da Renovação Social (PRS). Com que formação política cabo-verdiana o seu partido se sente mais próximo?
Somos mais próximos do MpD, pertencemos à mesma família política internacional, a IDC (Internacional Democrata do Centro). Independentemente disto, o PRS e o MpD mantém relações de cooperação há muitos anos. Mas não temos más relações com outras formações políticas cabo-verdianas. O nosso objectivo, enquanto partido do arco do poder, é de colaborar e cooperar com todos os partidos políticos, instituições públicas, organizações da sociedade civil e com o próprio povo em geral. Enquanto partido do arco do poder no nosso país, somos obrigados a ter esse tipo de relacionamento. Mas é com o MpD que temos o relacionamento mais estreito, porque, como disse, pertencemos à mesma família política internacional, cimentada numa relação de longa data. Tal como o PAIGC também se encontra mais intimamente ligado ao PAICV, inclusive no contexto da filiação na Internacional Socialista.
Qual é a realidade política actual da Guiné-Bissau?
Como sabe, depois do Golpe de Estado de 2012 na Guiné-Bissau, houve um período de transição. Depois da transição realizámos as eleições gerais. Nestas eleições, o PRS obteve 41 deputados num universo de 102; o PAIGC elegeu 57 deputados e os pequenos partidos, o PND, 1 deputado, a União para a Mudança, 1 e o PCD, 2 deputados. E constituiu-se assim a Assembleia da República da Guiné-Bissau. Um ano depois da entrada em funções do governo, a crise interna no seio do partido maioritário [PAIGC] agravou-se e o relacionamento institucional entre órgãos de soberania, nomeadamente Governo, Assembleia Nacional Popular e Presidência da República, terminou pelo derrube do governo [de Domingos Simões Pereira] suportado pelo partido vencedor das eleições. O Presidente da República nomeou então um novo primeiro-ministro. O PAIGC contestou, tendo-se suscitado um incidente junto ao Supremo Tribunal de Justiça, o qual deu por provido o respectivo requerimento, provocando assim a queda de um primeiro e efémero governo de Baciro Djá. O Presidente da República acatou a decisão do STJ, solicitando ao partido maioritário a indicação de um novo quadro seu para ocupar o cargo de primeiro-ministro, tendo sido nomeado Carlos Correia. No entanto, passados quase nove meses, esse governo não conseguiu aprovar o seu programa na Assembleia Nacional Popular (ANP), não obstante a maioria absoluta que detinha até aí, devido às divisões e mal-estar no seu seio. Tal como disse no início, a crise interna no seio dessa maioria levou a que 15 dos seus deputados se abstivessem durante a votação do programa do governo e consequentemente o programa não foi aprovado. De acordo com a nossa Constituição, se o programa do governo não passar na primeira votação, deverá voltar no prazo de 15 dias. Se pela segunda vez não passar, o governo é demitido, porque fica claramente demonstrado que o governo não tem maioria e é portanto incapaz de governar. É que no sistema guineense o programa é aprovado, e não apreciado. E sendo um instrumento que deve ser aprovado, requer a maioria parlamentar para o fazer. O governo que não tem essa maioria, não pode fazer passar os seus instrumentos de governação e naturalmente tem de ser demitido. Acontece que com a não votação favorável ao programa do governo por parte dos 15 deputados do PAIGC, este partido decidiu expulsá-los e solicitou ao presidente da ANP para cassar o mandato a esses deputados. Foi nestas circunstâncias que o PRS decidiu entrar para defender a legalidade. Fizemos compreender aos nossos adversários políticos que têm todo o direito de expulsar os seus deputados do partido, mas não podem expulsá-los da Assembleia Nacional Popular, porque o deputado quando é eleito, torna-se nominalmente e em primeiro lugar deputado da nação, e não deputado do partido a, b ou c, ou sequer do círculo eleitoral pelo qual foi eleito. O estatuto dos deputados prevê as situações específicas que podem dar origem à perda de mandato dos deputados, as quais de forma alguma se verificavam, neste caso concreto, pois estes limitaram-se, na sua consciência, a optar pela abstenção. Isto foi objecto de várias discussões acaloradas e foram inclusivamente solicitados pareceres de grandes constitucionalistas do mundo lusófono, nomeadamente os professores Vital Moreira, Jorge Miranda e do assessor científico da Faculdade de Direito de Bissau. Todos foram unânimes em afirmar que, nessas circunstâncias, não tinha qualquer fundamento a perda de mandato dos deputados. No entanto, mesmo assim, a comissão permanente decidiu avançar com a perda de mandato desses deputados. Houve ainda várias tentativas de mediação por parte do PR convidando todas as partes em litígio na presença de representantes da comunidade internacional como observadores. O PAIGC, negando-se a promover a negociação, afirmou autoritariamente que quem não estivesse conformado com a decisão da comissão permanente da ANP, deveria recorrer ao tribunal. E foi precisamente isso que os 15 deputados fizeram: recorreram e o STJ decidiu a favor dos mesmos. No fundo, não há novidade neste caso. O STJ acabou por reiterar aquilo que todos nós sabemos: os deputados não perdem o mandato nessas circunstâncias. Foi assim que começou este problema político no país. Portanto, o PAIGC ficou fragilizado, ao expulsar ilegítima e ilegalmente os 15 deputados, que não podiam perder o mandato, conforme posteriormente confirmado pelo STJ. Ou seja, o PAIGC cavou a própria sepultura da sua maioria, ao tentar negar a crise interna. Face à tentativa de substituir os deputados e de colocar o país perante o facto consumado, a decisão judicial veio repor a legalidade e devolver os mandatos aos seus legítimos titulares. Neste cenário, o PR pediu ao PAIGC para apresentar uma solução governativa com base parlamentar segura que permitisse a aprovação do programa do governo, o que lhe daria garantias na nomeação de um novo governo suportado pelo PAIGC. Como o PAIGC não conseguiu apresentar as soluções solicitadas, e face à ausência de vontade política para o desbloqueio da situação criada, o PR solicitou à segunda maior força política guineense, neste caso o PRS, para apresentar uma solução governativa, nas mesmas condições de sustentabilidade parlamentar. O PRS conseguiu negociar com os 15 deputados e apresentou uma base maioritária constituída pelos 41 deputados do PRS, os 15 deputados dissidentes do PAIGC e um deputado do PND. Posteriormente, mais dois deputados do PCD se juntaram à nova maioria, a qual estava assim em condições de apoiar qualquer governo. Depois da formação desse governo sustentado pelos partidos acima referidos, houve novo incidente suscitado junto do STJ, o qual mais uma vez confirmou a constitucionalidade desse governo. No fundo, estamos a viver uma situação semelhante à vivida em Portugal, ou no Luxemburgo, onde os partidos que ganharam as eleições não estão hoje a governar. Quem está a governar em Portugal é a segunda força política, porque não basta ganhar as eleições para governar. No nosso sistema é fundamental garantir uma maioria para suportar o governo. Não obstante o pronunciamento do STJ considerando legal o governo formado pelo PR, os nossos adversários políticos, após remeterem para o Tribunal Supremo, nunca acataram as suas decisões, tanto em termos de reconhecimento dos 15 como deputados efectivos na ANP, como da constitucionalidade do novo governo. E assim a situação continua sem fim à vista, com uma continuada usurpação dos poderes do Plenário da ANP, quando a Comissão Permanente já não reflecte sequer a actual configuração parlamentar. O PRS, enquanto partido responsável, ao sustentar soluções de governabilidade razoáveis e exequíveis que permitam fazer funcionar o país, foi de novo obrigado a dialogar para encontrar saídas para o impasse artificialmente criado, cuja responsabilidade não pode, de forma alguma, ser assacada ao nosso Partido. Foi nessa perspectiva que, numa das reuniões dos chefes de Estado da CEDEAO, em Dakar, foi decidido enviar uma missão de alto nível de três chefes de Estado para constatar in loco o que se estava a passar no terreno. Depois de ouvirem todas as partes envolvidas na crise, as representações diplomáticas acreditadas na Guiné-Bissau e a sociedade civil apresentaram uma proposta de acordo para a saída da crise.
Qual foi a proposta para a saída da crise?
Esta mediação levou-nos à Guiné-Conacry, onde rubricámos um acordo de dez pontos, o famoso Acordo de Conacry. Este acordo estabelecia no seu primeiro ponto que o primeiro-ministro seria nomeado na base do consenso, mas teria de ser uma pessoa de confiança do PR. Estabelecia no ponto segundo que as partes deveriam integrar o governo constituído por todos os partidos com assento parlamentar, proporcionalmente à sua representação. Há vários outros pontos no Acordo, mas os mais conflituosos têm a ver com o primeiro e o décimo ponto. O décimo e último ponto estipulava que os 15 deputados dissidentes deveriam reintegrar sem condições o PAIGC, o que reporia a sua maioria e resolveria esta situação. No entanto, tal não aconteceu. Repare que o primeiro ponto estabelecia que a nomeação do primeiro-ministro devia recair numa pessoa de confiança do PR, mas gozando do consenso das partes. Pois bem, o PR submeteu três nomes, nomeadamente o General Umaro Sissoco, Dr. Alaje Fadiá e o Dr. Augusto Olivais. Entretanto, durante as audiências na Guiné-Conacry, o PRS apontou o Sr. Umaro Sissoco ou o Dr. Alaje Fadiá, o Grupo dos 15 apontou Umaro Sissoco e o PND apontou Umaro Sissoco. Nas primeiras reuniões a que nós assistimos, nem o PAIGC, nem o presidente da ANP, nem o Governo, nem a sociedade civil, apontaram qualquer dos três nomes submetidos pelo PR. Se isso aconteceu, foi depois de termos regressado a Guiné-Bissau. Na nossa presença, isso nunca aconteceu. Aliás, antes de deixarmos Conacry, fomos chamados pelo mediador, que informou da inexistência de um consenso. Pois bem, o nome que recolheu de forma expressa o posicionamento parlamentar maioritário foi Umaro Sissoko. E porquê? Porque se corrêssemos o risco de voltar a nomear uma outra figura que não reunisse maioria parlamentar, como é que esta poderia passar na ANP o seu programa de governo? Impossível! Foi precisamente por essa razão que caiu o Governo anterior de Carlos Correia e era esse o problema de fundo que este acordo era suposto resolver. Foi nessa base que o Presidente da República decidiu nomear Umaro Sissoco, porque era este que lhe garantia a maioria parlamentar para o lugar de primeiro-ministro. Só depois de termos saído da Guiné-Conacry é que ouvimos falar no nome de Augusto Olivais. E em Conacry apenas ouvimos falar do seu nome por pertencer à lista dos três nomes submetidos pelo PR. Eu estive lá, chefiando a delegação do meu partido, e posso portanto afiançar que qualquer informação contrária, simplesmente não corresponde à realidade dos factos. Aquilo que foi depois veiculado, posso jurar que não é verdade. A verdade é essa, como lhe estou a dizer. Tudo o resto não passam de jogos destinados a confundir a opinião pública, os quais não fazem qualquer sentido. É um contra-senso pretender que teria ter sido Augusto Olivais o nome de consenso, quando o PRS e os 15, representando uma clara maioria, designaram outro nome.
Mas então onde está o impasse?
De acordo com o regimento da ANP, o Governo tem 60 dias, depois da tomada de posse, para submeter o seu programa, com a exposição do Primeiro-Ministro à Assembleia, sendo então agendada a sua discussão, por acordo entre o Primeiro-Ministro e o Presidente da Assembleia. Este Governo fez a sua parte, apresentando o seu Programa no prazo legalmente previsto. Competia depois à ANP convocar o Plenário para essa discussão. O número dois do artigo 139 do Regimento, acrescenta que o Presidente da ANP, convoca obrigatoriamente o Plenário para o efeito, mesmo que este não esteja em funcionamento. A Comissão Permanente tem sido utilizada para impedir a convocação da sessão plenária. Ora este órgão não possui essa competência, sendo a sua atuação limitada aos intervalos das sessões legislativas e ao período em que a ANP se encontra dissolvida. Todas as decisões tomadas fora deste quadro são portanto nulas e inexistentes. Estamos perante um bloqueio institucional, resultante de um boicote das mais elementares regras democráticas. Estamos num Estado de Direito democrático e é preciso respeitar as decisões legais dos órgãos de soberania. É inconcebível que a Assembleia Nacional não se reúna há quase dois anos, nem em sessões ordinárias nem extraordinárias. O Plenário é soberano e a Assembleia só pode deliberar com a maioria dos votos dos deputados que a integram. Quaisquer outras decisões, tomadas pela mesa ou pela Comissão Permanente à margem do Plenário, são ilegítimas e ilegais. O PRS reitera o seu compromisso no âmbito do cumprimento do Acordo de Conacry, apelando à comunidade internacional para apoiar a consolidação da legalidade democrática. Mesmo com um Primeiro-Ministro que não pertence ao nosso Partido, continuamos empenhados, graças à nossa modesta participação no atual governo, em criar a estabilidade necessária ao desenvolvimento sustentável do país. A Guiné-Bissau é um país calmo, seguro e bastante atraente para o investimento externo, pelo que consideramos um atentado contra a economia que alguns políticos promovam campanhas no exterior para desacreditar o próprio país.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 802 de 12 de Abril de 2017.