“É muito complicado desconstruir narrativas”

PorNuno Andrade Ferreira,4 mai 2019 9:22

Professor na Universidade de Genebra, na Suíça, com duas décadas dedicadas ao estudo da história das transições políticas na África Ocidental, Alexander Keese interessa-se há 15 anos por Cabo Verde. Ao Expresso das Ilhas e Rádio Morabeza, fala sobre a construção e desconstrução de narrativas históricas e a importância de estudar e compreender o passado para lá de visões “generalizadoras e limitadas”.

No século XX, os cabo-verdianos tiveram um papel particular, primeiro, enquanto funcionários das antigas administrações coloniais, mais tarde, tomando parte de movimentos e processos de independência, que não só de Cabo Verde. A que se deve essa preponderância?

De alguma maneira, os cabo-verdianos eram vistos, pela política colonial, como uma espécie de intermediários úteis. Isto, evidentemente, de um ponto de vista bem racista, como é a normalidade do quotidiano colonial. Um funcionário cabo-verdiano não era visto, exactamente, como um cidadão português, com direitos iguais, mas era encarado como um intermediário um pouco mais “civilizado”, ocupando lugares que os funcionários coloniais da metrópole não queriam.

Como é que estes trabalhadores cabo-verdianos eram recebidos nas outras colónias onde se fixavam?

Muitas vezes foi complicado. Havia casos em que estas pessoas conseguiam integrar-se, criar laços com outras partes da população local – isto explica o sucesso da guerrilha do PAIGC, no caso da Guiné-Bissau. Noutras partes, como por exemplo Angola, as relações ficaram bem complicadas depois da independência.

Num dos seus artigos fala de uma elite cabo-verdiana ambígua.

Existe uma geração de administradores cabo-verdianos que estiveram activos em funções relativamente altas, dentro da administração colonial. Nunca chegaram ao topo das carreiras, porque o racismo colonial não o permitia, mas mesmo assim eram vistos pelos novos dirigentes, com alguma razão, provavelmente, como uma espécie de colaboradores do antigo regime colonial. Infelizmente, quase não temos estudos sobre estas pessoas, mas são trajectórias muito interessantes, porque muitas delas eram bastante críticas face a alguns elementos da realidade colonial, por exemplo, contra o trabalho forçado nas outras colónias.

No caso concreto da luta armada na Guiné-Bissau, o papel do cabo-verdiano ainda hoje é discutido e este é muitas vezes colocado numa posição de chefia e coordenação, fora das matas.

Creio que é uma imagem criada. Quer dizer, é um facto empírico que na organização na cúpula do PAIGC havia muitos cabo-verdianos, uma sobre-representação, se quisermos, algo que a própria fundação do movimento explica, em parte. Agora, acusar os membros cabo-verdianos de não terem tido um papel dentro da luta, digamos, mais prática, seria injusto, não faz nenhum sentido. Evidentemente que do ponto de vista de uma certa narrativa nacional guineense, depois do golpe de 1980, é importante fazer essa afirmação.

O maior acesso relativo a educação formal por parte dos cabo-verdianos, no período colonial, comparativamente à situação noutras colónias, nomeadamente Guiné-Bissau, poderá ter contribuído, de alguma forma, para a criação da tal elite ambígua?

Eu penso que sim. O ensino tem um papel muito importante neste contexto. É uma combinação entre este factor e a própria visão racista colonial, por parte da metrópole, com a ideia de que os cabo-verdianos não são “africanos de verdade”, encontrando-se numa posição entre a metrópole e as outras colónias.

A década de 40 do século passado foi a década das fomes, das quais resultaram milhares de mortos. É um período que também lhe interessa.

Esses acontecimentos mostram até que ponto o poder colonial estava disposto a abandonar totalmente o arquipélago. Na verdade, não existia um plano de emergência. A seca e a fome deixaram uma impressão muito forte, que explica, em diferentes formas, uma certa mobilização anticolonial.

Sobre os primeiros anos pós-independência, num regime de partido único, o que denota, enquanto observador externo, de particularmente relevante?

Cabo Verde, nos primeiros anos depois da independência, luta mais uma vez contra uma situação económica e social muito difícil, novamente anos de seca. Há uma situação em que a população das diferentes ilhas espera que se cumpram as promessas feitas pelo PAIGC. Localmente, as mudanças da organização do poder, a questão da evolução material das populações nas várias ilhas. Depois, capítulos que são bastante dolorosos, como a reforma agrária. São questões que poderiam merecer mais estudos. Um dos problemas que se coloca, e que existe em muitos países independentes nos anos 60 ou 70, é a questão de como construir, nesse contexto, a narrativa nacional. Parece haver esta necessidade de ter uma narrativa nacional clara, sabendo muito bem quem são aqueles que contribuíram, quem são os inimigos, os bons e os maus. Isto facilita tudo, mas não faz justiça às complexidades da história e também não faz justiça às pessoas. É importante compreender as experiências quotidianas, as experiências sociais.

As narrativas são criadas e alimentadas para garantir o próprio situacionismo. O poder necessita dessas narrativas.

Isto muitas vezes faz parte do problema. Quando um país nasce, é normal que a situação seja ainda mais politizada, mais ainda com uma situação de luta para se assumir o controlo político. Isto é fortemente acompanhado por narrativas históricas, construídas para justificar a experiência do próprio movimento, depois transformado, eventualmente, em governo. Não só em Cabo Verde. Agora, mais de 40 anos depois da independência, não podemos estar satisfeitos com narrativas que são muito generalizadoras e limitadas.

Em que momento se deve compreender que essas narrativas já não fazem sentido?

É muito complicado desconstruir narrativas. Com uma distância de 30 ou 40 anos, já se pode começar a estudar a história do fim do colonialismo.

É muito difícil que sejam os protagonistas a escrever a história.

Isso é outro problema e é por essa razão que é tão importante ter uma contribuição internacional. Eu compreendo que os nacionais de um país queiram escrever a história do seu país, mas é importante que tenham contributos de fora. Caso contrário, pode ser uma coisa muito condicionada pelo quotidiano.

A questão do acesso à informação é premente na sociedade cabo-verdiana. Além dos arquivos oficiais, nacional e câmaras municipais, o PAICV terá também um acervo histórico. Consegue ter acesso a ele?

Tive o prazer de falar com as pessoas que tinham a responsabilidades dos arquivos, na Praia, mas o que me foi dito é que se tinha que esperar porque havia interesse em interpretar internamente, primeiro. É uma pena. Uma sociedade, várias décadas depois, deve ter a capacidade de permitir a análise, mesmo que alguma informação não seja agradável. O nosso papel, como historiadores, não é julgar actos históricos, mas sim compreender processos, estruturas e situações que existiam na altura. Acho que não abrir os arquivos não faz muito sentido.

Em ex-potências coloniais, como França ou Portugal, decorre uma discussão sobre a forma como a história desses países narra esses períodos.

Isto mostra, efectivamente, que pode ser doloroso questionar a narrativa nacional, mas numa sociedade madura é algo que tem toda a justificação. Cabo Verde tem a possibilidade de ser um país quase modelo. Quer dizer, tem uma riqueza de fontes, tanto orais como arquivísticas, que se podem utilizar para fazer um trabalho exemplar a vários níveis, tanto local, como a nível da grande política. É uma pena se isto não for feito e acho que ainda há bastantes coisas por fazer.

As identidades e o nacionalismo são discussões actuais. Os últimos anos têm sido pródigos em exemplos de sociedades democráticas que elegem líderes populistas que fazem uso de discursos de exacerbação de valores identitários e nacionalistas.

Em primeiro lugar, aparece aqui um sentimento de incerteza em relação ao mundo. Isto é talvez um comentário um pouco banal mas que explica como é que a nação, os valores nacionais, numa variante muito populista, podem funcionar e mobilizar. É uma coisa, na verdade, muito frustrante. Agora, a questão é como se deve posicionar um historiador nestes processos. Não é fácil chegar às pessoas que aceitam as narrativas simples. Uma maneira muito aberta de tratar a história, que pareça agradar a todos, não tratando os assuntos dolorosos, pode parecer interessante, em primeiro lugar, mas não faz muito sentido a médio prazo. A médio prazo, é importante mostrar que as sociedades têm clivagens, têm problemas, têm conflitos, para depois, a partir da interpretação histórica, procurar caminhos para a solução.

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 909 de 01 de Maio de 2019.

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Autoria:Nuno Andrade Ferreira,4 mai 2019 9:22

Editado porSara Almeida  em  7 mai 2019 8:21

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