Caso CRASDT arranha imagem de várias instituições públicas

PorChissana Magalhaes,19 jun 2016 6:00

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Uma semana depois de ter transpirado para a comunicação social, o caso das confissões públicas de membros da Congregação Reformada dos Adventistas do Sétimo Dia de Tendas (CRASDT) continua a repercutir na sociedade cabo-verdiana. Esta segunda-feira o procurador Vital Moeda, membro daquela congregação criada por Inácio Cunha, apresentou a sua demissão ao Procurador-geral da República. Nesse mesmo dia, Óscar Tavares mandou abrir dois processos-crimes referentes ao caso, enquanto o juiz Amândio Brito, que desencadeou esta polémica, tornou pública mais uma confissão da irmã, Vera Brito.  

Cabo Verde só acordou para as “confissões públicas de pecados” dos membros da CRASDT – assembleia religiosa surgida em 2003, de uma cisão no seio da Igreja Adventista do 7º Dia - no início da semana passada quando, depois de duas semanas a tornar públicos os textos (através da plataforma Google Docs e da rede social Facebook), Amândio Brito partilhou duas confissões do colega Cândido Pina com descrição de orgias, consumo descontrolado de álcool e drogas. O conteúdo destas confissões, viria a ser desmentido por ex-membros da Congregação, inclusive Elsa Brito, outra irmã de Amândio.

O teor pornográfico dos textos, – onde se inclui suposta prática de incesto – e o facto de dois magistrados tidos como pessoas idóneas estarem envolvidos no caso, escandalizou o público e conseguiu aquilo que os membros confessores da CRASDT não tinham ainda alcançado, mesmo com as confissões a revelar uma conspiração para assassinar o líder do grupo, Inácio Cunha: a máxima exposição e atenção do público. 

Dois dias depois do caso repercutir, Amândio Brito seria suspenso do exercício da profissão pelo Conselho Superior de Magistratura, do qual ele próprio era membro. Já Vital Moeda, procurador do Ministério Público, que esteve à frente de casos contra o narcotráfico, fez na mesma altura uma breve declaração à TCV a confirmar que o texto com a sua confissão é mesmo da sua autoria, e prometeu para depois outras revelações fortes de pecados cometidos. 

Impedido pelo cargo que desempenha de dar entrevistas e fazer confissões públicas de certo teor, Moeda apresentou esta segunda-feira a sua demissão ao Procurador-geral da Republica. Segundo o ASemana online, evocou como razão para tal a existência, no momento, de incompatibilidade entre a sua prática religiosa e o exercício do magistério. Uma reunião extraordinária do Conselho Superior do Ministério Público foi já convocada para analisar o seu caso e “tomar as medidas cabíveis”.

Outra que aguarda decisão sobre o seu futuro profissional é Vera Brito. A irmã de Amândio Brito que, assim como este, era um membro destacado da Congregação. Terá sido temporariamente suspensa da sua actividade enquanto médica responsável pelo centro de saúde de Cova Figueira, na ilha do Fogo, e convocada ao Ministério da Saúde, na Praia. 

Na segunda-feira, Amândio publicara nova confissão da irmã, com data de início de Junho, em que ela refere-se a si mesma e a outros membros do grupo como “satanistas” e diz que recebeu instruções do irmão que deveria colocar em prática no seu trabalho no referido centro de saúde. O texto termina sem mencionar que instruções foram estas e se Vera Brito as colocou em prática ou não.  

 

Autoridades entram em acção

Nas confissões de alguns dos elementos da alegada seita, várias vezes aparecem referências a planos e intenções de violar crianças do centro de acolhimento que a CRASDT possui em Ponta d’Água. Foram estas referências e denúncias de ex-membros que levaram elementos do Ministério Público, Curadoria de Menores, Instituto Cabo-Verdiano da Criança e do Adolescente (ICCA) e da Comissão Nacional de Direitos Humanos e Cidadania (CNDHC) a tentarem entrar no local para se inteirarem da situação das crianças que aí se encontravam.

Perante a falta de um mandato judicial, e atendendo às suas crenças e práticas religiosas (segundo às quais a Sexta-feira é dia de intensa actividade por forma a “santificarem” o Sábado), alguns membros da CRASDT impediram firmemente a entrada do grupo, acabando o curador de menores por ordenar a sua detenção por alegada desobediência e resistência.

O Procurador-Geral da República, Óscar Tavares, ontem, em declarações aos jornalistas, confirmou a ausência do mandato judicial e a detenção dos elementos decretada pelo curador de menores, sem esclarecer no entanto a legalidade da medida tomada por este. Entretanto, os detidos foram ouvidos pelo Tribunal e aguardam em liberdade o julgamento marcado para o dia 23 deste mês.

Tavares também confirmou que o ICCA e a Curadoria de Menores já acompanham as actividades do centro de acolhimento do CRASDT desde 2011, quando receberam as primeiras denúncias de que as crianças do centro estariam mal nutridas e a serem vítimas de abusos sexuais.

Tanto o ICCA como o CNDHC têm recebido duras críticas da sociedade civil por não terem actuado antes e “sacudirem a água do capote”. As presidentes das duas instituições defendem-se, alegando que nunca se conseguiram provar as acusações. Aguardam agora por uma decisão judicial para se dirigirem novamente ao centro de acolhimento da Congregação.

Na sequência de todas as informações vindas a público e das denúncias dos ex-membros da organização religiosa [ver texto seguinte] o Procurador-Geral da República ordenou na segunda-feira, a abertura de dois processos-crimes contra suspeitos identificados. Dado o segredo de justiça, só se pode adiantar que os suspeitos são uma pessoa colectiva e uma pessoa singular, podendo especular-se que a pessoa colectiva seja da CRASDT e a singular o próprio Inácio Cunha, o líder da congregação referido pelos membros como “Homem Santo” e “O Profeta”, e pelos dissidentes como autoritário e abusivo.

Óscar Tavares incumbiu dois procuradores de se dedicarem exclusivamente à investigação deste caso, tendo os magistrados 70 dias para apresentarem as conclusões da inquirição. Ou seja, no final da investigação o Ministério Público estará em condições de saber se avança, ou não, com as acusações contra os suspeitos por crimes de tortura e tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos, maus tratos a menor ou incapaz, maus tratos a cônjuge, sequestro, homicídio simples, calúnia e injúria. 

 

CRASDT: Ascensão e Queda

A Congregação Reformada dos Adventistas do Sétimo Dia, de Tendas (CRASDT) foi fundada por Inácio Cunha na Ponta D’Agua, cidade da Praia, com um grupo de divergentes, a Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD).

Cunha, de 51 anos e natural de São Domingos, segundo um dos sites do CRASDT (ComunicaçãoDivina) é filho de Silvério Cunha e Felesmina Semedo Brito. frequentou o esnino primário na mesma zona em que nasceu e cresceu, tendo deixado por concluir a 3ª classe. 

A biografia de Naty revela ainda que o mesmo trabalhou durante 17 anos no antigo jornal Voz di Povo, primeiro como jornaleiro e depois como funcionário. Durante esse período teve um filho e uma filha, de mãe diferentes. Não chegou a casar-se com nenhuma destas. 

Em 1989, o agora líder daCRASDT, que foi criado como católico, começou a frequentar a Igreja Adventista do 7º Dia por influência do irmão. 

Já na década de 90, totalmente convertido à IASD, Naty decide a aproveitar uma indenização do governo para iniciar um negócio de comércio a retálio. Nesse mesmo período começa a sentir-se “perseguido e defendido por seres sobrenaturais”. Um desses seres terá lhe dado a conhecer textos de Ellen White  e alertado para o facto da IASD alegadamente ter se desviado da doutrina original. Cunha não acreditou nisso.

Ainda segundo a biografia divulgada pela CRASDT, pouco tempo depois vários jovens aderiram ao IASD e começaram a reunir-se á volta de Naty, criando um movimento a que deram o nome de Movimento de Acção para a Unidade dos Jovens Adventistas.

Em 1993, estando ainda a conciliar a vida religiosa com a actividade comercial, Cunha casou-se com uma crente do IASD da ilha do Fogo de quem se separaria em 1995 por suposta conduta imprópria. 

Ao longo do seu percurso no IASD, Inácio Cunha terá convivido de perto com crentes muçulmanos e mórmons, quando trabalhou durante 5 anos numa fábrica de colchões (após a falência do seu negócio). 

Foi a partir do ano 2000 que Cunha, supostamente  convidado para trabalhar com a Associação dos Adventistas do 7º Dia de Cabo Verde (AADCV), começou realmente a questionar   a fidelidade da IASD. Dois anos depois, terá regressado da Ilha do Maio onde estaria a viver e apresentado a sua demissão como membro da AADCV.

Foi depois disto que Naty, começou a acusar os responsáveis da IASD de se terem tornado apostatas. Ou seja, ter-se-iam “desviado das verdades bíblicas”, ao contrário dele e dos seus acólitos, que por isso se autodenominavam “herdeiros dos judeus remanescentes”.

A ruptura definitiva deu-se a 31 de Maio de 2003. Com Cunha abandonaram a IASD 27 pessoas que com ele fundaram a CRASDT, depois de ter falhado no intento de legalizar o grupo como Igreja. O firme propósito desta assembleia era em tudo similar a uma Igreja registada: estudar a bíblia e “rever as doutrinas por forma a transmiti-las corretamente”, diz o próprio site oficial da Congregação.

Em finais da década, iniciou-se a decadência com a saída de vários membros, seguidas de denúncias do comportamento autoritário e abusivo por parte de Inácio Cunha e de outros elementos da “Igreja” . 

Nessa altura, as confissões públicas que já aconteciam pelo menos desde 2006 tornaram-se mais intensas e começaram a incluir Sos nomes de elementos dissidentes. Culminando agora com as confissões que escandalizaram o país pelo seu teor e pelo envolvimento de figuras destacadas da nossa sociedade.

Tanto que até o primeiro-ministro comentou o caso, dizendo em relação à CRASDT que se iria “avaliar se se trata de uma confissão religiosa organizada e se tem licença para funcionar”, bem como “investigar as motivações das pessoas envolvidas”. Ulisses Correia e Silva referiu na sua declaração que a legislação cabo-verdiana não permite a existência de seitas.

Fontes confirmam que a CRASDT nunca foi registada como Igreja. Assim sendo, e conforme a legislação cabo-verdiana, certas práticas estão-lhe vedadas.

Em 2014, a Assembleia Nacional aprovou a lei 64/ VIII/2014 cujo artigo 35º regula a criação da comissão da liberdade religiosa. Esta ainda não existe e por isso, caberá unicamente ao Ministério Público investigar e, se se justificar, instruir o caso e encaminhá-lo ao Tribunal.

O Procurador-Geral da República frisou nas suas declarações ser necessário “ter cuidado para não se tomar decisões populares mas que não sejam legais” por forma a garantir o “escrupuloso cumprimento da lei”. 

É que o nº 1 do artigo 49º da Constituição da República estabelece que “é inviolável a liberdade de consciência, de religião e de culto, todos tendo o direito de, individual ou colectivamente, professar ou não uma religião, ter uma convicção religiosa da sua escolha, participar em actos de culto e livremente exprimir a sua fé e divulgar a sua doutrina ou convicção, contanto que não lese os direitos dos outros e o bem comum”.

 

 

       

           Inácio Cunha                           Vital Moeda                                                Amândio Brito

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Autoria:Chissana Magalhaes,19 jun 2016 6:00

Editado porRendy Santos  em  17 jun 2016 14:00

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