Ainda não eram 06h30 quando chegamos ao largo do Estádio da Várzea, o ponto de concentração para todos os que iriam participar do evento. Meia dúzia de madrugadores já lá estavam, a dar toques nas suas bicicletas. A pouco e pouco vai chegando mais gente da organização e mais ciclistas, estes equipados a rigor.
Entre eles está Domingos. O rosto descansado revela uma noite bem dormida. Importantíssima para quem vai enfrentar cerca de 70 quilómetros de percurso, confirma o jovem ciclista.
“Eu praticava atletismo e competia. Cheguei a ficar em terceiro lugar numa competição. Há dois anos decidi mudar para ciclismo. Treino regularmente, várias vezes por semana”.
Já Nuno é novato na modalidade. Diz ter começado a pedalar mais seriamente há três meses. Perguntamos se é tempo suficiente para encarar uma prova assim e, encolhendo os ombros conta que quando corria sentia dores no coração. A mudança para o ciclismo terá contribuído para que agora não se queixe de nada. É no que acredita.
“Faço parte de um grupo de 8 elementos que treina regularmente, o Los Manos. Foram os meus amigos que me avisaram sobre esta iniciativa e resolvi participar. Treinei muito e hoje tomei um bom pequeno-almoço – leite e bananas – para enfrentar a estrada”.
A divulgação deste “Bai Tarrafal” tour e mobilização dos ciclistas e outros participantes aconteceu pelas redes sociais. Por ali foi-se passando a informação de que não se tratava duma competição e sim de um passeio a fazer-se em conjunto. Recomendações sobre a alimentação mais adequada, hidratação constante, o uso de capacete e fazer-se acompanhar de algum material para manutenção da bicicleta foram sendo partilhadas.
A partida do largo da Várzea estava marcada para as 07 horas, porém às 07h30 ainda lá estamos. Chega mais gente, mais ciclistas. A polícia é que não.
Embora tenha agendado a viagem para um dia tranquilo, a organização pediu acompanhamento da polícia no percurso para garantir a segurança de todos. Apesar de atrasada, a escolta policial viria a juntar-se ao grupo a partir de São Domingos.
Ainda na Praia, enquanto aguardamos a ordem de partida, alguém nos aponta Kaká, um homem alto e magro, de barbas brancas. Aos 70 anos é o ciclista mais velho do grupo e um veterano do percurso Praia-Tarrafal que já cumpriu por 20 vezes. Nesse Domingo de Fevereiro prepara-se para realizar a 21ª viagem de bicicleta a ligar os dois extremos da ilha de Santiago.
Também somos apresentados a Ariana. Mais uma “personagem” marcante do entourage: é a única mulher no grupo de ciclistas e dona de uma energia que parece não ter fim. Com mais de 45 anos (“ é só o que posso dizer”, brinca) diz-se pronta para a prova que a aguarda.
“É um desafio, e eu gosto de desafios.”, assume ela que apaixonou-se pelo ciclismo ainda em criança. Conta que há quatro anos integrava um grupo de amigas que tinham em comum a prática do ciclismo como actividade física. É a única que resistiu às exigências do quotidiano e ainda pedala.
“Sobretudo aos sábados, fazíamos a circular [da Praia], às vezes fazíamos a Cidade Velha e houve uma vez que chegamos a fazer Circular-São Francisco. Espectacular!”, recorda com entusiamo para de seguida lamentar que não haja mais mulheres a fazerem ciclismo.
“Bem, é tudo amador. Talvez se houvesse clubes… algum tipo de incentivo para que mulheres adiram a este desporto.”
Parece haver finalmente sinal de que a saída vai acontecer. Chama-se os ciclistas para um briefing onde são repetidas as informações sobre o percurso, as paragens previstas e recomendações de segurança.
São 8horas e, finalmente partimos. Saem da Praia 55 ciclistas mas apenas cerca de metade vai já de bicicleta e seguem a via do Aeroporto Internacional Nelson Mandela. Os restantes vão no autocarro que faz parte da caravana, para iniciarem o passeio de bicicleta em Assomada onde mais uma dezena de ciclistas irá se juntar ao grupo.
Da organização do tour faz parte a Equipe Comunitária Saúde e Solidariedade, uma associação que actua na área do desporto e da saúde, promovendo feiras de saúde e recolha e distribuição de donativos. É desta associação a equipe de socorristas que acompanha os atletas e que é coordenada pelo sempre calmo Pedro Bettencourt.
Elemento chave da organização é Daniel Gonçalves, da associação de Ciclismo de Santiago Sul. É com os dois e com Marques Mendes, presidente da Federação Cabo-verdiana de Ciclismo que apanhamos boleia e seguimos ora na peugada ora na dianteira do grupo de velocipedistas.
Daniel fala com entusiasmo da ambição de fazer o ciclismo cabo-verdiano chegar a competições internacionais.
“Em 2018 conseguimos ter ciclistas cabo-verdianos a participaram de provas em Dakar. É preciso investir nos atletas, é preciso muito treino…Temos condições de ter grandes ciclistas cabo-verdianos, campeões”.
Uma hora depois faz-se a primeira paragem curta, em São Domingos, para esperar pelos mais lentos. A polícia da Praia chega com eles e finalmente acompanha a tour.
Daniel, sempre preocupado com todos, que ter a certeza de que os ciclistas que estão a parar para comer escolheram o snack certo. O recomendado nesses casos é mastigar alguns frutos secos, chocolate ou biscoitos. Há que repor as muitas calorias gastas.
Um dos que aproveita a pausa para hidratar-se é o “Motoqueiro Misterioso”, como decidimos chamá-lo. Ainda na Praia prendeu a nossa atenção com o seu singular traje. Algo entre o fato de um motociclista e de um samurai, onde sobressai um colete com várias mensagens escritas. Entre essas, a frase “Não mate o seu irmão”. O mistério fica por conta do capacete que nunca retirou durante as mais de 8 horas que durou o evento e que nos dificultou compreender o nome com que se apresentou.
Explicou-nos que fora de casa usa sempre o capacete e o fato para sensibilizar os ciclistas, motoqueiros e outros, sobre segurança na estrada. Há anos, sofreu um acidente grave que quase lhe custava a vida por estar sem capacete, e por isso hoje faz do alerta á segurança rodoviária a sua missão. Mas não é só isso. Ele também é um incentivador da prática do ciclismo que na sua zona, Alto da Glória, promove eventos de ciclismo e motoclismo acrobático.
Duzentos metros para entrarmos em Assomada. As viaturas da equipe de apoio param e os integrantes posicionam-se à beira da estrada para animar os ciclistas que já dão mostra de cansaço. Seguram placas onde se lêem frases motivadoras e a indicar o pouco que falta para a paragem. Há até quem dê uma força literalmente, empurrando a bicicleta de um e outro ciclista mais exausto.
O tema “Vida é um life” do cantor Legemea é o “hino” motivacional que embala as últimas pedaladas antes da paragem no famoso sinal “I Love Somada” onde todos posam para fotografias. São 11 horas.
Daniel mostra-se satisfeito com o facto de ninguém ter ficado pelo caminho. “Ninguém desistiu!”, exclama satisfeito. “Isso é muito importante. É um momento que o ciclista que faz Praia-Assomada pela primeira vez não vai esquecer. Também é importante perceberem que isto não é uma corrida. É um passeio e é muito importante que façam o percurso juntos, em grupos”.
Dali rumam todos a Nhâgar onde, no pavilhão desportivo, faz-se a pausa longa para lanche e re-organização. Alguns queixam-se de dores musculares. Há massagens, alongamentos, etc. Há ainda tempo para mais selfies e fotografias, abraços e festejos pela conclusão da primeira etapa.
Os ciclistas que viajaram de autocarro finalmente tiram as suas bicicletas da carrinha para seguirem viagem com o grupo. Ariana é uma das que vai iniciar o tour no percurso Assomada-Tarrafal. Está eufórica e cheia de moral anima os colegas.
Em Nhâgar encontramos a senhora Ângela Silva, da agência de viagens Nova Tour.É uma das parceiras desta iniciativa que apoiou com a disponibilização do autocarro que transporta os ciclistas. Diz que a agência está agora a iniciar uma aposta no turismo desportivo.
“ Nós trabalhamos sobretudo com turismo de cruzeiro e os nossos clientes interessam-se por esse tipo de actividades, alguns até trazem a sua bicicleta”. E por isso vai investir na aquisição de bicicletas que disponibilizará para aluguer.
Às 11h50 os velocípedes voltam a riscar a estrada agora rumo à Serra Malagueta. Para além dos que já estavam previamente inscritos, alguns ciclistas da cidade do planalto juntam-se “clandestinamente” ao grupo. Também há crianças que, por um bocado, seguem a comitiva nas suas pequenas bicicletas, quiçá sonhando o dia em que também irão fazer a prova.
Esta é a etapa mais dura do passeio. Perto das 13horas, e depois de 19 curvas e contra curvas (informação da organização) a subir, paragem no belíssimo Parque Natural da Serra da Malagueta. Alguns, de tão frescos e relaxados, nem parecem ter enfrentado parte dos 1.064 m de altitude da serra. Água, bananas, riso e alívio para os mais fustigados pela dureza da etapa. Agora é só a descer, rumo à Cidade de Mangue, Tarrafal.
É então que acontece o momento mais dramático da aventura: mesmo com o alerta dado durante o briefing na cidade da Praia, onde foi recomendada especial cautela na descida da Serra - por causa da tentação da velocidade aliada aos fortes ventos cruzados - um jovem ciclista acaba mesmo por ter uma queda feia. Os que vinham a seguir vão parando para se inteirar do acontecido. O susto é maior do que as sequelas: apenas algumas escoriações pela cara e corpo e um dedo da mão partido.
A equipe de socorristas fica com o ciclista, á espera da ambulância. Nós seguimos viagem na peugada dos outros atletas. Mais tarde somos informados de que o jovem foi transportado para o hospital de Santiago Norte e encontra-se estável.
Antes das 13h30 o pelotão da frente entra na cidade do Tarrafal. Aos poucos os outros vão chegando. Ariana festeja o seu feito e diz que para a próxima inicia o percurso na Praia.
Rumamos ao Parque das Merendas para o almoço. O ambiente é leve e descontraído. Contam-se piadas. Missão cumprida. Hora de repor energias.
Depois do almoço, é o momento de homenagear Kaká. O veterano cumpriu até ao fim a sua 21ª viagem de bicicleta Praia-Tarrafal. Rijo, aguentou o desafio melhor do que alguns dos jovens do grupo. A seguir, sorteia-se um bilhete de avião Praia-Dakar-Praia.
Quem foi com ideia num banho de mar, numa das sempre sedutoras praias deste recanto da ilha… fica a ver navios. Não há tempo. Começa logo a complicada operação de fazer caber as mais de 60 bicicletas na carrinha de transporte já que o regresso será, para todos, de carro. Todos os ciclistas acompanham a operação de perto, a preocupação com as suas bicicletas estampada no rosto.
A viagem de regresso não foi livre de alguns constrangimentos - uma avaria no carro de transporte das amadas bicicletas atrasou a chegada a Praia – mas foi consensual a avaliação positiva deste primeiro “Bai Tarrafal” bike tour. Tanto que há quem esteja disposto a repetir as cerca de 5 horas a pedalar. Em breve. Haja paixão.