A complexa migração subsaariana

PorJorge Montezinho,27 jan 2018 6:53

​Dois documentos fundamentais para se perceber o movimento migratório no mundo, em África e na região subsaariana, particularmente, foram editados no final do ano passado: o relatório das migrações em 2017, das Nações Unidas, e o estudo África em movimento – Dinâmica e motores da migração ao sul do Sahara, da FAO (agência da ONU para a alimentação e a agricultura) e do Cirad (Centro de Investigação Agrícola para o Desenvolvimento). Estes documentos voltaram a ficar actuais nos últimos dias, principalmente depois das palavras pouco abonatórias do Presidente dos Estados Unidos sobre os países de origem dos migrantes.

 O adjectivo dirigido aos países africanos foi especificamente insultuoso. O que estes papéis, no fundo, vieram mostrar foi uma realidade que está longe das percepções comuns. Não só a maioria dos africanos migra dentro do continente, como África nem sequer é o local de origem da maior parte dos que saem à procura de uma vida melhor.

O Atlas da África rural em movimento surge numa altura em que os desafios associados aos grandes movimentos de refugiados e de migrantes arriscam-se a mascarar os benefícios da migração. É importante realçar que as migrações fazem parte do processo de desenvolvimento e deram forma ao mundo em que hoje vivemos.

Através de vários mapas e do estudo aprofundado de quatro exemplos (Senegal, Madagáscar, África do Sul e Zâmbia), a publicação facilita a compreensão das dinâmicas e tendências dos fluxos migratórios e mostra como os migrantes têm impulsionado o progresso. E estas movimentações humanas não vão parar, por isso mesmo é preferível impulsionar acções que aumentem o seu potencial. No fundo, políticas mais eficientes.

O objectivo deste Atlas é ser mais um instrumento para perceber os complexos e heterogéneos padrões e motivos das migrações e assim ajudar à criação de acções mais coordenadas e coerentes.

Em 2015, o número de pessoas que atravessou fronteiras internacionais chegou aos 258 milhões, no entanto, apesar da percepção pública, a grande maioria de migrantes, cerca de 763 milhões, moveu-se nos próprios países, ou para cidades ou para outros locais rurais.

À volta de 15 por cento de todos os migrantes internacionais tem origem em África. Em 2015 foram 33 milhões, metade deles moveu-se dentro do continente. No entanto, na África subsaariana, este número, dos que não saíram do continente, sobe para os 75 por cento. E é provável que estes valores se mantenham no futuro.

São vários e complexos os motivos que fazem com que as pessoas se mudem de um lugar para o outro. Os seres humanos migram para melhorarem a sua qualidade de vida e para procurarem um futuro mais risonho. Movem-se para fugir à pobreza, à insegurança alimentar, à falta de oportunidades de trabalho, assim como para escaparem a discriminações étnicas ou de género.

Um número cada vez maior de pessoas deixa as suas casas para fugir a conflitos, violência, perseguições e abusos de direitos humanos. As mudanças climáticas adicionam mais complexidade ao fenómeno e a combinação de eventos meteorológicos a factores socioeconómicos estão a provocar o êxodo do mundo rural e o abandono da agricultura.

Os jovens estão particularmente abertos à ideia de migrarem, na procura de melhores oportunidades e do preenchimento dos seus objectivos pessoais e aspirações. Os jovens africanos estão a enfrentar altas taxas de desemprego e de subemprego e muitos estão a fugir do mundo rural devido à pouca atractividade de uma agricultura praticamente de subsistência.

Em 2030, cerca de 380 milhões de pessoas vão entrar no mercado laboral e o grande desafio que a África subsaariana enfrenta é o de gerar empregos suficientes para esta enorme leva de força de trabalho. Qualquer plano que tenha por objectivo fazer face aos desafios inerentes às migrações tem de ter em conta a agricultura e o mundo rural.

Ao longo da história, os migrantes contribuíram para o desenvolvimento humano, despertaram inovações, espalharam ideias e moldaram o mundo em que hoje vivemos. Os migrantes contribuíram para o desenvolvimento económico dos países de origem, de passagem e de destino, através da transferência de conhecimentos, competências e tecnologia.


Remessas como medida do impacto das migrações

África está a mover-se, mas não para a Europa ou para outro continente, como é comum pensar-se. A motivação chave para a migração doméstica e internacional é a procura de oportunidades, particularmente por emprego. A melhor maneira de medir o impacto das migrações é o dinheiro que os emigrantes mandam de volta para os respectivos países. No entanto, África recebeu apenas 11 por cento do total de remessas em todo o mundo (63 biliões de dólares, de um total de 580 biliões) e a África subsaariana recebeu cerca de 32 biliões, 6 por cento do total.

Investir uma parte destas receitas pode criar um círculo virtuoso de criação de emprego e de crescimento económico sustentável. Mas nada acontece de forma automática. Os benefícios das migrações devem ser promovidos de forma positiva através de políticas que aumentem o seu potencial e minimizem os efeitos negativos.

Geralmente, o valor das remessas depende do tipo de migração (curto ou longo prazo) e, essencialmente, do destino desses mesmos migrantes (doméstico ou internacional). A importância da migração dentro do continente explica, em parte, o limitado valor das transferências, quando comparado com outros lugares do mundo. No entanto, o valor real das remessas internas pode ser substancialmente mais alto, porque grande parte dos migrantes é indocumentada e outros não podem pagar o envio do dinheiro através dos canais oficiais. Por outro lado ainda, muitos migrantes africanos mandam remessas em forma de bens e não dinheiro e estas remessas, geralmente, não entram nas estatísticas. É normal os migrantes enviarem comida, roupa, aparelhos eléctricos, ou mobília, que transformam de forma positiva as vidas dos familiares que ficaram. Calcula-se que estas remessas em bens representem entre 20% e 35% do total.

A população da África subsaariana deve atingir os 1,4 biliões de pessoas até 2050, um salto demográfico sem precedentes. Apesar de todo o processo rápido de urbanização, a região continuar a ser rural. Aliás, a população rural continua a aumentar, o que tem resultado numa excessiva densificação do espaço rural, mexendo inclusive com o estilo de vida das pessoas. Esta dinâmica populacional única traduz-se no aumento massivo da força de trabalho.

Enquanto o mundo caminha para países cada vez mais urbanizados, a região subsaariana só deve chegar a um ponto de equilíbrio urbano/rural nos finais de 2030. Em 2015, 62 por cento das suas populações vivia ainda em zonas rurais. Isto não quer dizer que a população urbana não tenha aumentado, aliás, tem vindo a crescer desde os anos 60, mas a limitada transformação estrutural das economias subsaarianas pôs um travão a este aumento a partir dos anos 80.

Outra singularidade da transformação económica da África subsaariana é que a sua urbanização está a desenvolver-se sem industrialização. O crescimento das cidades tem sido sustentado, essencialmente, pela expansão das actividades informais, o que resulta no reduzido ganho de poder de compra e na persistência dos níveis de pobreza. A base fiscal diminuta limita a capacidade das cidades e dos governos em fornecer os serviços públicos necessários à escala exigida.

Este contexto único faz com que a migração na África subsaariana seja diferente da observada noutras regiões do globo, onde as migrações definitivas do mundo rural para as cidades alimentam directamente o processo de transformação. A migração africana é assim um processo mais complexo, com mais categorias de pessoas em movimento, que se dirigem para um número maior de destinos, tanto dentro dos próprios países como do próprio continente. Se a migração do mundo rural para as cidades é um dos factores de urbanização, em África devido às poucas oportunidades de trabalho e ao sector informal esta mobilidade não é dirigida apenas para as cidades, mas também para fora delas.

A decisão de migrar é complexa e influenciada por uma miríade de factores interligados. Muitas vezes, a migração é percebida como um fenómeno errático motivado por uma procura desesperada por melhores condições de vida nas cidades. Mas este modelo é insuficiente para perceber a totalidade do processo migratório em África. Ignora, por exemplo, os factores não económicos, culturais, sociais ou políticos, que têm um papel decisivo não apenas em determinar a direcção das migrações como também nas suas características (género, idade, educação, etc.). Muitos migrantes não são apenas motivados por procura de trabalho, mas também pela percepção de oportunidades económicas ou educativas.

Esta dinâmica populacional irá aumentar exponencialmente a pressão sobre as economias rurais. Devido à sua pouca diversificação, a evolução do sector será decisiva, com os caminhos possíveis a dependerem da pressão sobre os recursos naturais e a sua gestão, assim como de inovações técnicas e organizacionais, que poderão ser facilitadas pelo ambiente institucional e económico.

Uma densidade demográfica ascendente será outro desafio, até porque a África subsaariana foi, durante muito tempo, pouco populosa. Nos anos 50, a densidade populacional era de 8.2 habitantes por quilómetro quadrado. Em 2015, este valor já chega aos 44.3 habitantes por quilómetro quadrado. Mas os números escondem enormes diferenças entre diferentes regiões, onde áreas escassamente povoadas coexistem com assentamentos densamente habitados. Com a evolução demográfica esperada, em 2050 a densidade populacional na África subsaariana será de 100 habitantes por quilómetro quadrado, com situações críticas em países específicos (por exemplo, no Burundi este número deverá subir para 1000 habitantes por Km2, 530 no Uganda e 440 no Malawi). Isto significará enormes pressões e tensões entre usos (agricultura versus urbanização, ou mineração) e entre utilizadores de terra e de água, problemas que serão exacerbados pelas mudanças climáticas.

Estas novas realidades territoriais vão exigir políticas públicas que adoptem novas estratégias que permitam usar as oportunidades destes ciclos migratórios, muitas vezes temporários.

As mudanças climáticas são um fenómeno global cada vez mais prejudicial para os humanos. O aumento das temperaturas e a diminuição da chuva poderão ter graves repercussões nos meios de subsistência. Estima-se que as perdas só nos cereais poderão rondar os 20 por cento e a região subsaariana será uma das mais atingidas, com cenários que projectam um aumento de 20 por cento na desnutrição em 2050 se não se tomarem medidas.

Em países de alto risco, mas com bons mecanismos de alívio, as pessoas poderão sobreviver melhor a este fenómeno. A capacidade de resposta dos governos aos desastres naturais poderia, por exemplo, permitir às pessoas reconstruir as suas vidas sem terem de passar pela necessidade de migrar. Mas, na maioria dos países da África subsaariana persistem problemas como a instabilidade política e a má governação. A falta de capacidade de resposta e os recursos limitados impedem o uso efectivo, e a boa implementação, de mecanismos de prevenção e adaptação. Serão necessárias estratégias de desenvolvimento voltadas para o longo prazo para conseguir um desenho adequado e eficiente das políticas públicas.


Factos-chave das migrações em 2017

O número de migrantes internacionais continua a crescer
O número de migrantes internacionais continua a crescer

O número de migrantes internacionais continua a crescer, atingindo os 258 milhões em 2017, superior aos 220 milhões de 2010 e aos 173 milhões do ano 2000.

Mais de 60 por cento dos migrantes internacionais vive na Ásia (80 milhões), seguido da Europa (78 milhões) e da América do Norte (58 milhões).

Em 2017 dois terços de todos os migrantes internacionais viviam em apenas 20 países. O maior número residia nos Estados Unidos da América, na Arábia Saudita, na Alemanha e na Federação Russa.

Dos 258 milhões de migrantes internacionais, 106 milhões têm a Ásia como continente de origem, 61 milhões nasceram na Europa, 38 milhões são da América Latina e das Caraíbas e apenas 36 milhões têm África como origem.

Em 2017, a Índia foi o país de origem do maior número de migrantes internacionais (17 milhões), seguido do México (13 milhões) da Federação Russa (11 milhões), da China (10 milhões), do Bangladesh e da Síria (7 milhões) e do Paquistão e da Ucrânia (6 milhões).

As mulheres são menos de metade do total de migrantes internacionais, passando de 49 por cento em 2000 para 48 por cento em 2017. Já a média de idades rondou os 39 anos. Por outro lado, há regiões onde os migrantes são cada vez mais jovens, com a média de idades a cair na Ásia, América Latina e Caraíbas e na Oceânia.

Entre 2000 e 2015, a migração contribuiu para o crescimento demográfico de 42 por cento observado na América do Norte e para o aumento populacional de 31 por cento na Oceânia. Já a Europa perdeu um por cento da população devido à falta de entrada de migrantes.

Apesar dos benefícios significativos da migração, quem procura trabalho longe de casa continua entre os mais vulneráveis membros da sociedade. Geralmente, são os primeiros a perder o trabalho em situação de crise económica, trabalham por ordenados menores, por mais horas e em piores condições do que os naturais dos países onde vivem.


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 843 de 24 de Janeiro de 2017.

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Autoria:Jorge Montezinho,27 jan 2018 6:53

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  27 jan 2018 13:36

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