Para tentar encontrar respostas a estas, e outras questões, a Cidade da Praia recebeu, segunda e terça-feira, o seminário sobre regulação da sociedade digital, organizado pelo AICEP – Associação Internacional das Comunicações de Expressão Portuguesa.
É dado assente que o mercado evolui a um ritmo vertiginoso e a convergência entre as tecnologias da informação, as telecomunicações e os media deu lugar a um ecossistema digital muito complexo, com novos jogadores, impondo importantes desafios aos tradicionais modelos de negócio e de regulação.
A digitalização das actividades económicas e sociais está no centro da globalização. As possibilidades que hoje temos, enquanto agentes económicos, consumidores e cidadãos, de vendermos ou comprarmos bens ou serviços, ou de acedermos a informação e conteúdos, de qualquer natureza e em qualquer momento e em qualquer lugar, tornou o mundo mais pequeno e alterou radicalmente o modo como trabalhamos, como nos relacionamos e como interagimos.
Estamos a viver um mundo novo, que proporcionado pelas poderosas ferramentas e redes de comunicações electrónicas e por um ecossistema de desenvolvimento tecnológico nunca antes visto nos expõe a novos desafios, riscos e contingências, pelo que o desenvolvimento do digital carece de uma adequada regulamentação legal.
Num contexto de acelerada digitalização da sociedade, indutora da convergência entre comunicações e media, procuramos saber quais são hoje os principais desafios da regulação, quais as tendências, para onde nos dirigimos e quais as funções das várias autoridades reguladoras.
No centro do digital está o consumidor, que adquire online de forma muito intensa os seus bens e serviços, muitas vezes de forma desprotegida e desinformada. O consumidor digital carece de uma protecção adequada e diferenciada, com destaque para questões como a privacidade e a protecção dos dados pessoais.
Os conteúdos estão a evoluir e a transformar-se com o digital. E a forma como o acesso aos mesmos alterou-se. Passou a ser possível aceder a qualquer momento e em qualquer lugar. Os audiovisuais tornaram-se móveis. A digitalização tem revolucionado o próprio mundo do audiovisual informativo e de entretenimento e a forma de gerar receitas. A facilidade de acesso expõe o consumidor a novos desafios, nomeadamente em função da sua preparação cultural e da sua idade.
O movimento digital resultado da convergência está a ter efeitos, promovendo rápidos movimentos de reorganização sectorial e também de privatização, seguindo um padrão internacional de convergência e de saída do Estado das comunicações electrónicas.
Este é o cenário actual, desde que o termo economia digital foi cunhado por Nicholas Negroponte em 1995, e usando como metáfora a passagem do modelo dos átomo (matéria, massa, transporte) para o modelo de bits de processamento (imponderabilidade, virtuali-dade, instantâneo e global).
E agora, o regulador tem de se adaptar a novas áreas de regulação, como a privacidade e a segurança, hoje fundamentais. Como referiu Filipe Batista, Secretário-Geral da Associação de Reguladores das Comunicações e Telecomunicações da CPLP (ARCTEL-CPLP), o regulador tem de “ter uma perspectiva da defesa do elo mais fraco da equação, que são os consumidores”.
Outro desafio é: onde se devem centrar as políticas regulatórias? “É importante um alinhamento entre o poder político e os órgãos reguladores para poderem, em conjunto, coordenar a actividade que tem de ser desenvolvida. Porque a regulação só vai funcionar se estiver alinhada com a política de comunicações de qualquer país”.
É unânime entre os peritos que ainda não sabemos muito bem para onde caminhamos. Mas também é dito a uma única voz que não se podem tomar decisões sem perceber o que se passa à nossa volta. Seja dentro do próprio país, dentro da própria região e ao nível global. Por outro lado, se faz sentido pensar na forma como os reguladores se vão organizar no futuro, é prematuro definir modelos de regulação. Mas no meio de tanta incerteza há uma convicção: a regulação não pode continuar a ser a que existe e não sará possível os reguladores darem resposta aos desafios actuais se não perceberem de que forma a economia digital funciona, de que forma os operadores funcionam, de que forma as empresas de software funcionam. “É necessário que os reguladores consigam perceber e acompanhar o processo da inovação, não só do mercado, mas eles próprios inovarem a actividade da regulação”, sublinha Filipe Batista.
Portanto, o que podemos tentar é antecipar a tendência da regulação. “A regulação deverá ser um interface entre a indústria e os consumidores”, responde Filipe Batista, “e que tenha sempre presente a necessidade de servir melhor, com melhor regulação, com a menor intervenção possível, porque se não há introdução regulatória é porque as coisas estão a correr bem. Ao mesmo tempo, deve garantir que a actividade económica ligada ao sector das comunicações decorra da forma mais suave possível”.
“O mercado digital vai estar sempre dependente de mais acessibilidade, conectividade e capacidade de rede, é isso que é imposto todos os dias aos operadores e é essa a pressão diária do consumidor, que cada vez quer mais largura de banda, mais qualidade de serviço e os reguladores têm de entrar num equilíbrio entre as reais necessidades do mercado e aquilo que são as pressões de quem está acima do mercado”.
Por outro lado, não basta estarmos preocupados só em dar acesso e largura de banda, é preciso preparar as pessoas para a economia digital. A questão da capacitação e da literacia digital é absolutamente fundamental e tem de estar na agenda dos decisores políticos e do regulador.
E aqui entramos no derradeiro desafio: colaboração e previsibilidade, num mercado imprevisível por natureza. Se não é possível implementar políticas regulatórias sem diálogo com os operadores, também não é possível diminuir o inesperado. Mas pode-se condicioná-lo. “Não nos podemos resignar e assistir impávidos e serenos à imprevisibilidade. Ela existe. O que podemos fazer? Contornar essa mesma imprevisibilidade e definir passos intermédios que nos possam fazer chegar onde queremos. Isso só é possível se houver cooperação entre reguladores e operadores e, importante, entre consumidores. Nesta tentativa de antecipação à imprevisibilidade não vamos conseguir controlar o caminho das coisas, mas podemos criar alguma previsibilidade”, sublinha o secretário-geral da ARCTEL.
As leis de regulação cabo-verdianas têm 13 anos. Um quadro ultrapassado que prejudica consumidores e operadores. Para além da questão da convergência, várias vezes levantada, José Luís Livramento, Presidente do Conselho de Administração da CV Telecom dá dois exemplos da necessidade de regulação. A primeira é a computação na nuvem. “Como se faz auditoria à Cloud? Quais são as questões de direito e de acesso em relação ao Cloud?”. A segunda são as OTT. “Toda a gente usa OTT e as OTT têm as seguintes características: modelo de negócios? Não é regulado. Licenciamento? Não precisam de licenças. Impostos e taxas? Nenhuma taxa específica para o sector. Privacidade e segurança? Execução incerta, não sabemos o que se passa. Protecção do consumidor? Nenhuma”.
Mudar o quadro regulatório é também um dos objectivos do governo. “Temos de estar alinhados com as melhores práticas”, disse o Ministro das Finanças Olavo Correia, “mas temos um quadro legal que vem de 2005. Já se passaram muitos anos, temos um modelo caducado. Continuamos a actuar como se o mundo estivesse parado em 2005, não pode ser, temos de actuar e rapidamente”.
O executivo actual tem usado o lema do país 4.0, focando a aposta na revolução e na inovação tecnológica com o objectivo de criar oportunidades e atrair investidores. Mas o ecossistema ainda não está criado e a evolução faz-se lentamente. Algo que está a desagradar Olavo Correia.
“Temos de fazer da banda larga um bem essencial. Os cidadãos devem poder ter acesso a banda larga com qualidade, com regularidade e a um preço que seja acessível, para que possamos ter acesso à tecnologia, à informação e às oportunidades de negócio à escala global. Quem não entender isto seguramente estará a bloquear o desenvolvimento futuro do país”.
“Não podemos ambicionar ser um país moderno e ainda ancorados no sistema 3G. Temos de avançar rapidamente para o 4G e isso coloca desafios não só para as operadoras, para o Estado, mas também para o quadro regulatório”, disse ainda o Ministro das Finanças.
“Tudo o que estamos a querer fazer em Cabo Verde, centenas de países estão também a tentar. Só seremos bem-sucedidos se formos os melhores, os mais competitivos, os mais inovadores. Sem isso não será possível competir, nem à escola global, nem à escala regional”, concluiu o governante.
Ou como resumiu José Luís Livramento: “Vemos o mundo a andar e nós aqui serenos”.
Quando se olha para o índex da conectividade global, do Fórum Económico Mundial, nota-se que Cabo Verde tem ainda um longo caminho a percorrer. O país fica no fundo da tabela em categorias como o número de casas com computador, assinantes de serviço móvel com acesso à net, ou uso que se dá às redes sociais. No sector privado o cenário é ainda mais desolador, com más classificações na exportação de tecnologia de ponta e na capacidade de inovação. Itens relacionados com patentes nem sequer têm qualquer classificação.
A economia mundial mudou com a tecnologia. 40 por cento do comércio mundial faz-se, actualmente, por via digital e os números vão aumentar. Os peritos já avisaram que estas transformações são irreversíveis e vão marcar as dinâmicas económicas deste século.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 849 de 07 de Março de 2018.