Como referi na Introdução, as comemorações do centenário de A.C. têm tido como único objectivo glorificar o legado do revolucionário africano, sem abordar criticamente as contradições do cabralismo. Um debate mais equilibrado deveria ter permitido incluir uma análise crítica das suas ideias. Esse debate teria sido essencial para fomentar um pensamento crítico acerca do legado do cabralismo e uma compreensão mais complexa da história, evitando a instrumentalização da memória histórica para reforçar narrativas simplistas. Permitiria também uma melhor compreensão do legado no processo de independência e de desenvolvimento Cabo Verde, revelando as complexidades e contradições significativas que poderiam desafiar a visão amplamente positiva que se tem do mesmo.
Embora A.C. tenha tido um papel inegável na criação do PAIGC, sido uma figura central na luta pela independência de Guiné-Bissau e Cabo Verde, e um incontestável líder revolucionário pan-africanista, que pretendeu emancipar o continente africano e promover a ideia de uma nova ordem social mais justa para as populações, as suas propostas e práticas também merecem uma avaliação crítica em vários aspectos problemáticos relativamente à problemática específica a Cabo Verde, sobretudo no que tange o conturbado processo de independência e o subsequente regime político em vigor, que foi implantado de acordo com a visão cabralista do poder, e que moldaram a estrutura de poder do novo Estado cabo-verdiano, mesmo após o advento da democracia liberal.
Os principais aspectos controversos do cabralismo resumem-se nos seguintes pontos que destaco:
- A Imposição de uma via única para a independência: Prioridade da Guerra de libertação como uma via única e ferramenta para a independência, desconsiderando soluções políticas e diplomáticas mais graduais. Na Guiné-Bissau, a violência revolucionária deixou uma herança de instabilidade política e golpes de estado e ausência de democracia, com o exército atuando como principal força política.
- A criação de um partido binacional de libertação que pretendeu actuar em contextos e territórios distintos — Guiné-Bissau e Cabo Verde — sendo questionável do ponto de vista da legitimidade e do direito uma suposta luta armada de libertação de Cabo Verde por procuração realizada em território estrangeiro da Guiné, e sem apoio da população do arquipélago. Assim levanta dúvidas sobre a pertinência de alguns cabo-verdianos terem-se envolvido e participado num processo revolucionário realizado num território estrangeiro.
- A decisão de vincular as lutas de libertação da Guiné-Bissau e de Cabo Verde sob uma única bandeira gera também questionamentos sobre a legitimidade do PAIGC como representante de dois territórios.
- A falta de adesão significativa da populações cabo-verdiana ao PAIGC e o facto de a luta armada na Guiné-Bissau não ter tido o respaldo suficiente entre os cabo-verdianos, levanta questões sobre legitimidade e a representatividade do PAIGC como legítimo representante das aspirações dos cabo-verdianos, e são aspectos que desafiam a visão romântica da narrativa luta de libertação actualmente em voga em Cabo Verde.
- O Impedimento por parte do PAIGC da realização de um processo de consulta popular ou referendo livre de autodeterminação é, de facto, uma questão central que levanta sérias preocupações sobre a legitimidade do processo e constituiu um vício fundamental no processo de Independência de Cabo Verde. A consulta popular ou referendo livre de autodeterminação são geralmente considerados práticas legítimas para garantir que a população tenha voz ativa na definição de seu futuro. Tal facto levanta questões sobre a real representatividade do PAIGC, e a pretensão em 1974 de ser o legítimo representante da população cabo-verdiana, assim como a representatividade das decisões tomadas na época. Esta exclusividade levanta sérias questões de legitimidade democrática no processo de autodeterminação, tendo em consideração que o futuro dos cabo-verdianos foi decidido por um grupo relativamente restrito de revolucionários, sem que a população tivesse a oportunidade de se expressar livremente através de um debate amplo e democrático sobre diferentes opções para o futuro do país.
- A independência total e imediata, na ausência de uma transição mais alargada no tempo, inclusiva e bem negociada, e obtida sem uma discussão aberta e formal das suas vantagens e desvantagens ou de outras opções possíveis, sem um processo claro e democrático de escolha da população sobre o seu destino político, foi um vício de forma e de conteúdo, que resultou em problemas sociais, econômicos e políticos para Cabo Verde e que perduram nos dias de hoje.
- A proposta de unir a Guiné-Bissau e Cabo Verde sob uma única nação, apesar de inspirada por um ideal pan-africanista, não tinha suporte na realidade dos países. As disparidades culturais, sociais e econômicas entre os dois países foram subestimadas por A.C. e o seu grupo, levando a um projeto insustentável. A integração proposta, com uma visão pan-africanista, acabou por se revelar inviável. O fracasso desta ideia pode ser atribuído à ignorância das realidades locais e à complexidade das identidades culturais envolvidas.
- A Exclusividade do PAIGC, sem abrir espaço para outras visões políticas ou formas alternativas de luta pela independência. Essa exclusividade limitou o debate e a participação popular, fazendo com que o processo de independência ficasse restrito a uma única via, sem pluralidade, contribuindo para a formação de um regime de partido único, centralizador e autoritário, e refletindo num modelo de governança que não promoveu o pluralismo democrático. A abordagem contribuiu para a concentração de poder e sua centralização, impedindo o desenvolvimento de instituições democráticas e o processo de descentralização de Cabo Verde.
- O conceito cabralista de criação de um "Homem Novo" e da reafricanização da identidade cabo-verdiana enfrentou resistências e desafios práticos. Cabo Verde, com uma herança cultural mista e uma identidade própria, não se enquadrava perfeitamente na moldura proposta por A.C. Além disso, a aplicação dessas ideias levou à imposição de formas de controle social que limitavam liberdades e o respeito pela dignidade humana e cultural de cada país.
- O conceito cabralista de "suicídio da burguesia" apesar das intenções de justiça social e igualdade acabou por justificar a repressão, a intolerância e os abusos de poder, sendo potencialmente autoritário.
- O conceito cabralista que consistiu na insistência da remoção das antigas elites e o desmantelamento das estruturas coloniais para criar uma ordem social baseada na igualdade e justiça, sem considerar a história e as especificidades e identidades locais, apesar do apelo forte por prometer romper com as injustiças do passado, provou-se, no entanto, incompatível com os valores democráticos-liberais actuais. Ela traz consigo intolerância e autoritarismo que suprime a pluralidade de opiniões, a diversidade política e social em nome de um ideal revolucionário.
- A visão política centralizada e autoritária de A.C. para o estado independente de Cabo Verde, fundamentada na criação de um regime de partido único, é uma falha grave do projecto político. Esta abordagem reflete um modelo soviético de governança, que resultou invariavelmente em regimes repressivos e na falta de liberdades individuais. Ela foi um sério obstáculo ao desenvolvimento de formas democráticas de governança, especialmente em Cabo Verde, que só mais tarde adoptaria um modelo de democracia liberal, devido ao contexto internacional. A centralização do poder, em vez de promover um desenvolvimento equilibrado e participativo, inibiu a capacidade de adaptação e crescimento das regiões/ilhas de Cabo Verde assim como as iniciativas privadas nacionais, especialmente porque a diversidade geográfica e social de um país arquipelágico requeria uma abordagem mais descentralizada e adaptativa.
Concluindo, o modelo cabralista sobre a criação do estado nacional, governança e desenvolvimento não se ajustava às realidades pós-independência e ao mundo contemporâneo. A experiência de sucesso de Cabo Verde, que conseguiu fazer uma bem-sucedida transição para uma democracia liberal, destaca a inadequação do modelo. Em contraste, as dificuldades contínuas da Guiné-Bissau, que continua a enfrentar desafios no caminho para a estabilidade democrática, ressaltam a complexidade em implementar projetos políticos teóricos, e a necessidade de estratégias que respondam efetivamente às realidades locais e as complexidades do mundo. A realidade contemporânea mostrou que modelos centralizadores e inspirados no marxismo-leninismo como os defendidos por Cabral, ou em outras ideologias afastadas do centro político, perderam relevância e estão hoje totalmente ultrapassadas.
Portugal, 28 de setembro de 2024
José Fortes Lopes