O sonho de Luther King faz 50 anos

PorJorge Montezinho,31 ago 2013 0:05

Há meio século o mundo ouviu, em directo, o “I have a dream”, o discurso de Martin Luther King, pronunciado na escadaria do Monumento a Lincoln, em Washington, para mais de 250.000 pessoas de todas as etnias, depois da Marcha pelo Emprego e pela Liberdade. A manifestação foi pensada para divulgar, de uma forma dramática, as condições de vida desesperadas dos negros no Sul dos Estados Unidos e exigir ao poder federal um compromisso maior na segurança física dos negros e dos defensores dos direitos civis. 

 

Não havia nuvens no céu, a temperatura rondava os 30º, mas a humidade era excessiva, o que talvez explique os vários desmaios registados. A manhã começara tensa em Washington. As autoridades puseram os militares nas ruas, na expectativa que as coisas corressem mal. Os congressistas dos estados do sul passaram mensagens alarmistas e aconselharam as suas funcionárias brancas a trancarem-se em casa. Era este o cenário daquele dia 28 de Agosto de 1963, faz hoje 50 anos. O dia em que a capital dos Estados Unidos da América recebeu a Marcha pelo Emprego e pela Liberdade.

A manifestação juntou cerca de 250 mil pessoas, um quarto destas eram brancos, a maior jamais vista na cidade. Um quarto de milhão de cidadãos que caminharam do Washington Monument até ao Lincoln Memorial, pouco mais de um quilómetro. A forte presença policial revelou-se desnecessária, foi um protesto pacífico e civilizado. Foi também o dia em que o mundo ouviu o discurso de Martin Luther King, na altura com 34 anos, “Eu tenho um sonho”, também conhecido pelo discurso “Que soe o sino da liberdade”. Um momento decisivo na história do Movimento Americano pelos Direitos Civis.

O ano de 63 ficou marcado por vários outros protestos, um pouco por todos os Estados Unidos da América. Mas um em particular ultrajou os norte-americanos, o que decorreu em Birmingham, Alabama, onde a polícia largou os cães sobre os manifestantes, ao mesmo tempo que os bombeiros viravam as mangueiras contra eles. A grande maioria dos que participaram era adolescente, alguns mais novos ainda. Luther King foi preso nessa manifestação, escrevendo na cadeia a célebre “carta de Birmingham”, onde defendia a desobediência civil contra leis injustas.

Há cinquenta anos não era fácil ser negro na América [ver caixa]. No sul do país, arriscavam o linchamento se tentassem recensear-se, os bebedouros de água nas escolas eram separados, 60 por cento das mulheres negras eram empregadas domésticas. A marcha de Washington, organizada por A. Philip Randolph, veterano da luta pelos direitos civis, representou também a coligação de vários organismos ligados igualmente aos direitos civis e tinha como objectivo a aprovação de várias leis: eliminação da segregação racial nas escolas públicas, protecção contra a brutalidade policial, políticas públicas para o emprego, legislação que proibisse a discriminação racial nas contratações nos sectores público e privado e o estabelecimento de um ordenado mínimo de 2 dólares à hora. Devido a pressões políticas exercidas pela Presidência dos Estados Unidos - ocupada por John Kennedy -, as exigências a apresentar no comício tornaram-se mais moderadas.

Kennedy, aliás, tinha recusado inicialmente receber os líderes da marcha. O Presidente democrata acabara de introduzir no Congresso uma proposta de lei para abolir a discriminação racial e, em Junho, num encontro com os líderes do movimento dos direitos civis, incluindo Martin Luther King, disse que a marcha poderia comprometer o futuro dessa legislação. Só no final do dia, depois de assistir ao protesto pela televisão e de ter verificado que tudo correra de forma tranquila, é que aceitou conversar.

“Ele cumprimentou-nos um a um, à medida que entrámos na Sala Oval”, recorda John Lewis, um congressista afro-americano e o único dos oradores nesse dia que ainda é vivo. “Estava radiante, como um pai orgulhoso por tudo ter corrido tão bem. Não parava de dizer: ‘Bom trabalho!’” Quando chegou a vez de Martin Luther King, Kennedy disse-lhe, “and you have a dream” [e o senhor tem um sonho].

Menos de três meses depois, a 22 de Novembro, Kennedy morreu, assassinado a tiro durante uma visita a Dallas, no Texas. Esses dois momentos - a Marcha em Washington e a inesperada morte do Presidente Kennedy -, ocorridos há 50 anos, fizeram de 1963 um ano importantíssimo para a história dos direitos dos negros na América. A mega manifestação na capital americana trouxe a luta pelos direitos civis para um palco nacional. O discurso de King, com a sua mensagem de não-violência, contribuiu para “educar e sensibilizar uma grande maioria da população americana”, diz John Lewis. “Esse discurso continha uma mensagem de esperança, de optimismo. Ele teve a capacidade para levar as pessoas a partilhar e participar na sua visão. Provavelmente, ele livrou-nos de mais uma Guerra Civil.”

Por outro lado, há quem acredite que as duas legislações históricas que puseram fim à discriminação racial nos Estados Unidos, a Lei dos Direitos Civis de 1964 (Civil Rights Act) e a Lei do Direito de Voto de 1965 (Voting Rights Act), dificilmente teriam recebido luz verde no Congresso se Kennedy não tivesse morrido tão súbita e tragicamente. “Essa é uma questão em aberto”, explica no Público Harris Wofford, de 87 anos, que foi o assistente especial do Presidente Kennedy para os direitos civis e um amigo de King. “Muitas pessoas acreditam que Kennedy estava a dar o seu melhor, mas que o Congresso ainda estava longe de o acompanhar no que diz respeito aos direitos civis. Foi o choque do seu assassinato e a habilidade de Lyndon Johnson, o seu sucessor, em passar esse testemunho que fizeram com que essas leis se tornassem realidade.” Questionado sobre os efeitos da morte de Kennedy na altura, o próprio King comentou que ela tinha beneficiado os direitos civis. “Estou convencido de que se ele tivesse vivido, teria havido adiamentos constantes e tentativas para evadi-lo o tempo todo, ou torná-lo inócuo.”

Mas, a marcha teve dois grandes opositores. De um lado, os grupos que defendiam a supremacia branca, com o Ku Klux Klan à cabeça, e que eram contra qualquer igualdade racial. Do outro, Malcolm X, que não via com bons olhos que negros e brancos marchassem ombro a ombro pela igualdade de direitos. Chegou mesmo a chamar à marcha a “farsa de Washington” e os membros da Nação do Islão que participaram foram posteriormente suspensos por algum tempo.

 

I have a dream

 

O discurso do reverendo Martin Luther King era apenas mais um de um longo dia com várias intervenções. Era, talvez, o mais aguardado, mas era apenas mais um. Mesmo a frase que o tornou famoso: “eu tenho um sonho”, não era nova. Já a tinha repetido outras vezes, em outras aparições públicas. O que foi diferente nesse dia, em Washington DC, foi a cobertura mediática. Antes de King, já o congressista John Lewis, tinha pronunciado palavras igualmente fortes, dirigidas directamente ao presidente Kennedy e ao Congresso: “estão a tentar tirar a revolução das ruas e a pô-la nos tribunais. Dizem-nos para esperar, para sermos pacientes. Eu digo-lhes: não podemos esperar. Não queremos a nossa liberdade de forma gradual. Queremos a nossa liberdade agora!”.

Mas para a história ficou mesmo o I have a dream, e a frase: “eu tenho um sonho, que as minhas quatro crianças possam viver numa nação onde não serão julgados pela cor da sua pele mas pela qualidade do seu carácter”. Como recorda Lewis, Luther King teve o poder e a capacidade de transformar os degraus do Lincoln Center num púlpito, “ele educou, inspirou e informou as pessoas que lá estavam, mas também as pessoas de todo o país e mesmo as gerações futuras”.

Quem hoje sobe os degraus do Lincoln Memorial, em Washington, pode ver onde é que Martin Luther King estava quando proclamou “I have a dream...”. Uma inscrição no granito marca o lugar onde ele repetiu essas palavras uma e outra vez, como num estado de transe, a 28 de Agosto de 1963.

Mas o mais icónico discurso de King quase não aconteceu. King e os seus assessores trabalharam no texto durante uma semana e o reverendo continuou a refazer o discurso até ao último minuto, eliminando palavras e introduzindo novas frases. Na véspera do discurso, o rascunho não continha qualquer referência a um “sonho”.

Martin Luther King procurava sempre um final perfeito para os seus discursos. Uma das teorias sobre isso é que, como ele sofria constantes ameaças à sua vida, insistia num tom profético quando estava a terminar um discurso, como se estivesse a dizer as suas últimas palavras. Na véspera da Marcha em Washington, ele ponderou se deveria falar do “sonho” e se este seria um final emotivo para o seu discurso. Há meses que ele vinha falando do seu “sonho” em discursos por todo o país, defendendo a sua visão de uma coexistência racial harmoniosa. King pediu a opinião de dois dos seus assessores. Um deles, Wyatt Tee Walker, aconselhou-o a não mencionar a frase “I have a dream”. Era demasiado cliché. King já a tinha usado demasiadas vezes, disse. O segundo assessor, Andrew Young, concordou. King não disse nada. Mas nessa noite alguém o ouviu repetir as mesmas palavras, uma e outra vez, no seu quarto de hotel, depois de toda a gente se deitar: “Eu tenho um sonho... Eu tenho um sonho... Eu tenho um sonho...”

A questão central do seu discurso era a ideia de reconciliação racial numa altura em que muitos activistas negros começavam a questionar se a não-violência pregada por King estava a ser eficaz contra um racismo profundo. Muitos deles perguntavam-se até quando é que poderiam participar num movimento ancorado no princípio da resistência não-violenta quando enfrentavam agressões e brutalidade todos os dias em lugares como Birmingham, Alabama, ou Jackson, Mississípi, ou passavam longas temporadas na prisão pelo simples facto de participarem em manifestações. No Sul americano, que lutara na Guerra Civil um século antes em defesa da escravatura e perdera, a segregação racial continuava a ser lei em 1963.

O discurso de King lidera a lista dos 100 melhores discursos no século XX nos Estados Unidos da América, segundo uma compilação feita por investigadores da Universidade Wisconsin-Madison e pela Universidade Texas A&M tendo como base o impacto social, político e a arte da retórica. Mas como recorda a professora Guy-Sheftall, do Women’s Research and Resource Center Anna Julia Cooper, um dos subtextos do discurso de King era o desemprego, a pobreza e o sofrimento enorme da comunidade negra, questões que acabam por ser apagadas pelo célebre final.

Os primeiros dois terços do discurso têm aliás um cariz reivindicativo bastante acentuado, com King a afirmar que cem anos depois do fim da escravatura, “a vida do Negro é ainda lamentavelmente dilacerada pelas algemas da segregação e pelas correntes da discriminação. Cem anos mais tarde, o Negro continua a viver numa ilha isolada de pobreza, no meio de um vasto oceano de prosperidade material. Cem anos mais tarde, o Negro ainda definha nas margens da sociedade americana, estando exilado na sua própria terra”.

King continua dizendo que estavam na capital para descontar um cheque. “Quando os arquitectos da nossa república escreveram as magníficas palavras da Constituição e da Declaração de independência, estavam a assinar uma promissória de que cada cidadão americano se tornaria herdeiro. Este documento era uma promessa de que todos os homens veriam garantidos os direitos inalienáveis à vida, à liberdade e à procura da felicidade. É óbvio que a América ainda hoje não pagou tal promissória no que concerne aos seus cidadãos de cor”.

“Em vez de honrar este compromisso sagrado, a América deu ao Negro um cheque sem cobertura; um cheque que foi devolvido com a seguinte inscrição: ‘saldo insuficiente’.

Porém nós recusamo-nos a aceitar a ideia de que o banco da justiça esteja falido. Recusamo-nos a acreditar que não exista dinheiro suficiente nos grandes cofres de oportunidades deste país”, sublinha ainda King.

O reverendo chega mesmo a garantir que não haverá tranquilidade na América enquanto os negros não tiverem todos os seus direitos de cidadania. “Os turbilhões da revolta continuarão a sacudir as fundações do nosso País até que desponte o luminoso dia da justiça”. Ao mesmo tempo, nota-se o cuidado de King em evitar qualquer acto de violência. Além de pedir para “não satisfazer a sede de liberdade bebendo da taça da amargura e do ódio”, recorda ainda que não se deve desconfiar de todas as pessoas brancas, “pois muitos dos nossos irmãos brancos, como é claro pela sua presença aqui, hoje, estão conscientes de que os seus destinos estão ligados ao nosso destino, e que sua liberdade está intrinsecamente ligada à nossa liberdade”.

Como já foi referido, só na parte final da intervenção é que surge a frase “eu tenho um sonho”, que é repetida mais nove vezes. Um final de discurso, como sublinhou a professora Guy-Sheftall, que ilustra a capacidade de improvisação e o “génio oratório dos pastores afro-americanos”. A sua mensagem, no fundo, era a clarificação da promessa dos pais fundadores: “todos os homens nascem iguais e têm direito à vida, à liberdade e à procura da felicidade” [o discurso completo de Martin Luther King, o original e a tradução para português, pode ser lido em www.expressodasilhas.publ.cv].

Nesse mesmo ano de 1963, Luther King foi nomeado Homem do Ano pela revista Time. Em 1964, King tornou-se no mais novo laureado com o Prémio Nobel da Paz. No dia 4 de Abril de 1968, aos 39 anos, Martin Luther King Jr. foi assassinado em Memphis, no Tennessee.

Charles Booth, reverendo em Columbus, Ohio, acredita que o assassinato de King contribuiu para o converter no herói nacional que é hoje e que “ele nunca teria sido se tivesse vivido mais tempo”. “Quando ele foi morto, já o Presidente Lyndon Johnson tinha deixado de o convidar para a Casa Branca. As universidades tinham deixado de o convidar para falar em eventos. Os outros líderes do establishment negro tinham-se distanciado dele. À época da sua morte, ele tinha-se tornado imensamente impopular por causa da sua oposição à guerra do Vietname.” O reverendo Jesse Jackson chegou a dizer que, à altura da sua morte, Martin Luther King era o homem mais odiado na América.

“Apesar de Martin Luther King ser um herói nos Estados Unidos hoje em dia, nem sempre ele foi visto dessa forma”, reitera a escritora Isabel Wilkerson. “Muitos americanos sentiam ressentimento em relação a ele, em particular sulistas brancos. Não deixa de ser curioso que para sucessivas gerações ele tenha assumido um papel que na altura em que ele era vivo não correspondia à forma como era visto. Ele disse muitas, muitas coisas ao longo do seu trajecto de liderança dos direitos civis, mas foi uma frase, “I have a dream...”, que se tornou no símbolo de tudo aquilo que representava. Não por acaso, esse discurso é centrado num sonho e não numa realidade. Ele mantém as pessoas concentradas em algo longínquo que pode acontecer mas ainda não aconteceu. Como se sugerisse que não é preciso ir mais longe, porque o sonho é suficiente. É curioso que essa tenha sido a frase em que toda a gente se fixou.”

 

1963, um ano perigoso para se ser afro-americano

“1963 ainda era um ano perigoso para se ser afro-americano no Sul”, diz à Revista 2, citada pelo Público, Isabel Wilkerson, que já foi jornalista e é autora de The Warmth of Other Suns: The Epic Story of America”s Great Migration, (O Calor de Outros Sóis: A História Épica da Grande Migração Americana), um bestseller de 2010 sobre a migração de uma larga proporção de negros americanos do Sul para o Norte do país no período das duas guerras mundiais. “Eles viviam num mundo que é difícil as pessoas imaginarem hoje em dia. Um mundo em que era ilegal um negro e um branco jogarem damas juntos. Um mundo em que, durante boa parte do século XX, de quatro em quatro dias um afro-americano era linchado em público, quase sempre por razões infundadas”, diz Wilkerson. “Os afro-americanos tinham de sair do passeio quando uma pessoa branca se aproximava. Nos tribunais por todo o Sul, havia uma Bíblia “negra” e uma Bíblia “branca” para as testemunhas fazerem o seu juramento judicial - até a palavra de Deus estava segregada. Havia escadarias diferentes para negros e brancos quando tinham de usar o mesmo espaço. Tudo o que se possa imaginar que podia ser separado estava separado. Muitas pessoas perderam a vida ao tentar romper esse sistema de castas. Em 1964, um ano após a Marcha em Washington, três jovens activistas dos direitos civis, dois deles brancos e um negro, foram raptados no Mississípi quando tentavam inscrever negros no recenseamento eleitoral e foram assassinados. Os seus corpos foram encontrados ao fim de 44 dias. É quase como se houvesse uma guerra não-declarada nesta região do país. É importante reconhecer que isto não aconteceu há tanto tempo quanto isso; isto aconteceu durante o tempo de vida de muitos americanos que ainda estão vivos hoje. Isto não é mais do que um abrir e fechar de olhos no longo arco da história.”

Cinquenta anos depois, e segundo os números da The Economist, 1 em cada 10 homens negros, entre os 30 e os 34 anos, está preso. Esta média nos brancos é de 1 em cada 61. Em 1960, 25 por cento das crianças negras nascia fora do casamento. Hoje, essa média é de 72 por cento (29 por cento entre os brancos) e a maioria dessas crianças é criada apenas pelas mães. Um jovem afro-americano de 17 anos tem as mesmas capacidades de leitura e de matemática de um jovem branco de 13 anos.

Americanos que terminem o ensino superior, tenham um trabalho a tempo inteiro e que tenham filhos depois do casamento têm apenas 2 por cento de hipóteses de caírem na pobreza. Hoje, são ainda poucos os afro-americanos que cumprem estas três condições básicas.

Barack Obama, que no início chegou a ser referenciado por não ser “suficientemente negro”, disse recentemente que muitos alunos afro-americanos quando vêem os colegas a ler acusam-nos de terem um “comportamento de branco. Há uma espécie de norma cultural auto-destrutiva”.

 

 

 

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Autoria:Jorge Montezinho,31 ago 2013 0:05

Editado porExpresso das Ilhas  em  31 dez 1969 23:00

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