“Que ninguém se resigne”

PorJorge Montezinho,14 jan 2017 6:00

Sofisticado, cosmopolita, democrata, europeísta convicto. Sempre se definiu como “homem de esquerda”, ou, mais detalhadamente, “republicano, laico e socialista”. Esteve em todo o lado e conheceu toda a gente. Foi fotografado de todos os ângulos e em todas as situações possíveis – fosse dentro de um jacto da Força Aérea Portuguesa, fosse embarcado num bote de pescadores da ilha do Corvo, fosse a olhar de lado para Cavaco Silva, fosse a mostrar a língua para a câmara. Foi figura central da luta contra os radicais de esquerda, da descolonização, da entrada de Portugal na CEE e criou uma nova forma de fazer política. Mais do que pai da democracia – título que não gostava particularmente – está na génese do Portugal moderno.

Num dos melhores textos depois da morte de Mário Soares, Joana Amaral Dias, ex-Bloco de Esquerda e antiga mandatária da juventude de Soares nas presidenciais de 2006, escrevia: “morreu como viveu, lutando, fértil, cintilante, inquietante. A gerar discussão, reflexão, pensamento. Como se nunca acabasse. Talvez não acabe. Na verdade, foi dos primeiros democratas e o primeiro que se pode odiar. Viveu e liderou tempo suficiente para isso, fez escolhas, bateu-se por alternativas, tomou decisões. Nada de neutralidades, molezas, nem sim nem sopas, assim-assim mais ou menos. Sobretudo, Soares foi o oposto da rigidez, certeza, pensamento único, terminal, círculo infernal do Estado Novo que nos faz ficar velhos”. Um epílogo quase perfeito do homem que sempre representou a figura do maior estadista português dos séculos XX e XXI.

A Revolução dos Cravos apanha Mário Soares em Bona, a dormir. Nesse dia, 25 de Abril de 1974, é acordado por um telefonema às 7h da manhã, o regime caiu, dizem-lhe. Dirige-se rapidamente a Paris – cidade onde vivia exilado desde 1970 – e no dia 27 apanha o comboio SudExpress para Lisboa. Chega a Santa Apolónia no dia 28, acompanhado pela companheira de sempre, Maria Barroso. Na bagagem trazia os três D: descolonizar, democratizar, desenvolver. Na estação tinha uma multidão à espera. Usa a varanda para dirigir as primeiras palavras às pessoas. Da rua, respondem-lhe com gritos de “Socialismo! Socialismo” e com a frase: “O povo unido jamais será vencido!”.

Aos 51 anos, Mário Soares embarcava na maior de todas as suas aventuras, apesar da vida política ter começado muito antes. Aliás, pode-se dizer que Mário Alberto Nobre Lopes Soares já nasceu politizado. O pai, João Soares, tinha sido político na I República, e toda a família era de cariz anti-salazarista. Foi por isso natural que ainda jovem, no início dos anos 40, Mário Soares tenha entrado em movimentos de contestação ao Estado Novo. Foi detido pela PIDE doze vezes, uma das quais em 1949, quando era secretário da Comissão Central da candidatura do General Norton de Matos à Presidência da República. É na prisão que casa com Maria de Jesus Barroso.

No início dos anos 50 afasta-se dos comunistas, “deixei de acreditar que o comunismo podia ser compatível com a democracia pluralista de tipo ocidental, o que, para mim, era, sem sombra de dúvidas, o que queria para Portugal.”. 

Ainda nos anos 50 tira o curso de Direito, após o de Letras e Filosofia, e cria um grupo informal de reflexão política, a Resistência Republicana e Socialista. Volta à intervenção política na candidatura presidencial de Humberto Delgado, como representante do Directório Democrata-Social. Uma década mais tarde, participa, com Piteira Santos e Francisco Ramos da Costa, no Programa da Democratização da República e, em 1964, cria, em Genebra, com Ramos da Costa e Manuel Tito de Morais, a Acção Socialista Portuguesa (ASP).

Em Março de 1968 Mário Soares é deportado pelo Estado Novo. Detido por ser o advogado da família de Humberto Delgado [assassinado pela PIDE a 13 de Fevereiro de 1965, na localidade de Villanueva del Fresno], o que lhe deu visibilidade como opositor da ditadura, é enviado para São Tomé e Príncipe. Impedido de trabalhar, começa a escrever o livro Portugal Amordaçado.

A Acção Socialista Portuguesa viria a ser aceite pela Internacional Socialista em 1972 e um ano depois, num premonitório mês de Abril, funda, na Alemanha, o Partido Socialista, de que Mário Soares foi o primeiro secretário-geral, cargo que ocuparia durante 13 anos.

Passados poucos dias do regresso a Portugal, em Abril de 74, é enviado pela Junta de Salvação Nacional às capitais europeias para obter o reconhecimento diplomático do novo regime democrático. Participou nos I, II e III Governos Provisórios, como Ministro dos Negócios Estrangeiros [responsável por parte da descolonização – ver próximo artigo], e no IV, como Ministro sem Pasta, de que se demitiu em protesto pelo chamado “caso República” e pela crescente tentativa de perversão totalitária da revolução.

Como Secretário-Geral do PS participou em todas as campanhas eleitorais, tendo sido deputado por Lisboa em todas as legislaturas, até 1986. Em consequência da vitória do PS nas primeiras eleições legislativas realizadas em 1976, foi nomeado Primeiro-Ministro do I Governo Constitucional (1976-77), tendo também presidido ao II (1978). Neste período, foi necessário enfrentar e resolver uma situação de quase ruptura financeira e de paralisia das actividades económicas do país, ultrapassada mediante a aplicação de um programa de estabilização e rigor, negociado com o FMI, graças ao qual foi possível celebrar um “grande empréstimo” e voltar a pôr a economia a funcionar.

Foi ainda durante o I Governo Constitucional que se procedeu à integração, com pleno êxito, de quase um milhão de portugueses retornados das ex-colónias. Durante 1976 e 1977 foram também aprovadas as primeiras leis que deram forma ao novo Estado de Direito (código civil, lei da delimitação dos sectores, lei de bases da reforma agrária, etc.) e começaram a funcionar, com regularidade, os mecanismos institucionais previstos na Constituição de 1976. Rompido que foi, por denúncia unilateral do CDS, o acordo político de incidência governamental em que assentava o II Governo Constitucional e demitido o Executivo pelo então Presidente da República, general Ramalho Eanes, Mário Soares liderou a oposição entre 1978 e 1983, tendo sido durante esse período viabilizada a primeira revisão da Constituição da República, na qual se empenhou fortemente. Esta revisão constitucional eliminou finalmente a tutela político-militar do Conselho da Revolução, que vinha dos primeiros tempos da Revolução, e consagrou o carácter civilista, pluripartidário e de tipo ocidental do regime. Foi então criado o Conselho de Estado, para o qual Mário Soares foi eleito pelo Parlamento.

Após nova dissolução da Assembleia da República, ocorrida em 1983, e na sequência das eleições legislativas que voltaram a dar a vitória ao PS, foi nomeado Primeiro-Ministro do IX Governo Constitucional, com base numa coligação partidária PS/PSD (1983-85). Este Governo viu-se confrontado também com uma dramática situação financeira e uma crise generalizada, que o levaram a pôr em prática um novo plano de emergência e recuperação que restabeleceu os equilíbrios financeiros externos. Coube ainda ao IX Governo Constitucional ultimar o processo de adesão de Portugal à CEE, conduzir as últimas negociações, que duraram no total quase 10 anos, e assinar o Tratado de Adesão, em Junho de 1985. Foi o último acto de Soares como Primeiro-Ministro do Bloco Central. No dia seguinte demitiu-se. Olhava já para outros destinos: a Presidência da República.

Em Fevereiro de 1986 torna-se o primeiro Presidente da República civil, mas não foi uma eleição fácil. Na primeira volta ficou muito atrás do candidato apoiado pela direita, Freitas do Amaral. Na segunda volta, consegue o apoio de Álvaro Cunhal, o histórico dirigente comunista diz aos militantes para votarem em Soares. Ficou célebre a expressão do líder do PCP a pedir para taparem a cara de Soares no boletim de voto, mas para “porem a cruzinha no lugar certo”. Em Janeiro de 1991 a história é já outra, com o apoio do próprio PSD, Mário Soares é reeleito à primeira volta com 71 por cento dos votos. Durante os dez anos no Palácio de Belém, Soares cria uma nova forma de fazer política. As presidências abertas, que iniciou, não eram apenas visitas do Chefe de Estado a todo o país, mas serviam para mostrar o que ainda havia para resolver em Portugal. Em 2006, aos 80 anos, volta a candidatar-se a Presidente da República, mas a esquerda dividida, Manuel Alegre também decide avançar para Belém, é derrotada pelo candidato apoiado pela direita, Cavaco Silva.

Como escreveu o historiador Rui Ramos no Observador, Mário Soares foi também o seu “enfant terrible”: o “sapo” que muitos tiveram de engolir, a pedra no caminho de quase todos. No presente regime democrático, Soares enfrentou e contestou toda a gente: em 1975, Álvaro Cunhal; em 1980, o general Eanes, mas também Francisco Sá Carneiro; em 1994, Cavaco Silva, mas também António Guterres; em 2014, Pedro Passos Coelho, mas também António José Seguro.

“Para a direita nacionalista, Soares era o principal responsável civil da descolonização de 1974. Para o PCP, era o culpado do fracasso do PREC em 1975 (Álvaro Cunhal jamais lhe perdoou). Muitos dos seus correligionários socialistas lamentaram a sua negligência ideológica e o seu favorecimento da direita em 1978 (governo com o CDS), em 1983 (governo com o PSD) ou em 1987 (quando proporcionou a primeira maioria absoluta de Cavaco Silva). E a direita passou a encará-lo como um dos seus adversários mais radicais na fase final do governo de Cavaco Silva (1994-1995) e, mais tarde, durante o governo de Passos Coelho (2011-2015)”.

“Se quisermos encontrar um denominador comum capaz de explicar o que o motivou”, diz José Manuel Fernandes, também no Observador, “então esse denominador comum foi a liberdade. Por ela se bateu em 1974 e 1975. Em nome dela não deixou que a esquerda caísse na tentação radical e terceiro-mundista em 1986, quando derrotou essas tendências na primeira volta das Presidenciais desse ano. Para ter a garantia de que nunca mais a liberdade voltaria a ser questionada fez questão de nos ancorar na Europa, na CEE, no clube onde não se toleram derivas autoritárias”. “Ao longo da sua vida”, continua, “Mário Soares esteve mais à esquerda, depois mais à direita, terminou a vida muito à esquerda. Mudou de opiniões por vezes por instinto, outras vezes porque é um homem genuinamente livre. Que sempre gostou ilimitadamente do que fazia e, por isso, foi político com intervenção permanente no espaço público até muito perto do fim da sua vida. Nunca foi capaz de estar parado e por isso dele sempre era possível esperar uma surpresa”.

Voltamos ao texto de Joana Amaral Dias. “Mário Soares foi o estadista cidadão do mundo, desinibido e à vontadinha que tirou o português do pequeno defeso pelo protocolo e secretaria, do medo, do pobre e bem-agradecido, pobre mas honrado, lavadinho, e o atirou para o grande festim dos cravos, da democracia, da cultura, da curiosidade, da descoberta e experimentação. Mário Alberto Nobre Lopes Soares é infantil, é sabidão, energia sem fim, manha, sede, fome, vida. Futuro, sempre o futuro e menos fado. O presidente de todos os portugueses. Da parte boa dos portugueses, líder, optimista e empática. Do melhor de nós. A maioria nunca mais conhecerá outro desta dimensão. Soares diria que isso é um disparate, “claro que conhecerão”. A sua partida fecha uma época na nossa história. Soares diria que a seguinte será muito melhor”.

Uma das imagens que resume a despedida de Portugal ao homem que lhe deu a liberdade é a de uma rapariga, jovem, numa varanda. As mãos fechadas sobre o peito amparam um choro silencioso. Num pequeno cartaz, colado nas grades, lê-se: “Obrigado Mário Soares”.

 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 789 de 11 de Janeiro de 2016.

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Autoria:Jorge Montezinho,14 jan 2017 6:00

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  16 jan 2017 9:15

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