Efeitos da mudança climática já são uma realidade na Guiné-Bissau

PorExpresso das Ilhas, ONU News,21 set 2019 11:07

82% dos guineenses são agricultores de subsistência
82% dos guineenses são agricultores de subsistência

Com a sua costa abaixo do nível do mar, o país é um dos mais ameaçados pela subida do nível dos oceanos. Entretanto, 26% do seu território já é reserva natural, o valor mais alto em toda a África Ocidental

Alguns dias por semana, Paulita Cabral sai da escola onde é professora, em Bissau, e trabalha durante umas horas na bolanha do bairro de Antula.

As bolanhas são terrenos húmidos, férteis, que a população usa para cultivar arroz e outros produtos hortícolas. Na sua horta, Paulita tem alfaces, repolhos, pepinos, tomates e couves, que usa para alimentar os filhos. Os legumes que não consome vende depois no mercado, para ajudar a completar o orçamento familiar.

A guineense diz que este trabalho é essencial para ela e para as outras famílias que usam o terreno, mas ela pode tornar-se em breve uma das mais recentes vítimas da mudança climática em todo o mundo.

Nos últimos anos, com a subida do nível dos mares, várias bolanhas da Guiné-Bissau foram invadidas por água salgada. Os terrenos ficaram inutilizados. Paulita diz que se estas terras forem inundadas, será “a decadência”, porque não tem “outra forma de sobreviver.”, diz à reportagem da ONU News.

Segundo as Nações Unidas, cerca de 82% dos guineenses são agricultores de subsistência. Nos últimos anos, um pouco por todo o país, muitos tiveram de mudar de atividade quando a água salgada começou a inundar estas terras. Mas este não é a única consequência da mudança climática no país.

O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, Pnud, diz que os efeitos “já são sentidos na economia há algum tempo, especialmente devido à diminuição das chuvas e ao aumento gradual da temperatura.”

Os aquíferos têm cada vez menos água e são mais facilmente inundados por água salgada. No setor da agricultura, o cultivo de alimentos básicos, como o arroz, diminuiu acentuadamente. A produção de castanha de caju, responsável por 88% das exportações nacionais, também sofreu.

Quanto às florestas, as autoridades nacionais dizem que taxa de degradação é entre os 60 e 80 mil hectares por ano.

Para o ativista Miguel de Barros, as bolanhas são “espaços sagrados”. Além do papel que têm de proteção durante as cheias, por exemplo, também permitem “a possibilidade de coesão social à volta daquilo que são os compromissos entre a responsabilidade social e a responsabilidade ambiental.”

Miguel de Barros é diretor executivo da Tiriguena. Criada há quase 30 anos, em 1991, esta organização não-governamental foi uma das primeiras associações a destacar a necessidade de proteger e defender o ambiente na Guiné-Bissau.

O ativista explica que toda a costa do país está abaixo do nível do oceano e cita um estudo da consultora Maplecroft, de 2014, que aponta o país como o segundo Estado mais vulnerável à subida do nível dos mares, apenas atrás do Bangladesh.

As Nações Unidas dizem que com um aumento de 0,13 metros, previsto para 2025, 77,8 mil pessoas viverão em zonas inundadas. Com um aumento de 0,35 metros, indicado para 2050, o número sobe para 179,8 mil.

O custo total desse aumento será de 8 milhões de dólares por ano já em 2025. Até 2010, deve chegar a 361 milhões de dólares. Esse valor representa mais de 80% da despesa do Estado orçamentada em 2018, 428 milhões de euros.

O representante do Pnud no país, Gabriel Dava, diz que impedir a subida do nível do mar e outros efeitos da mudança climática “é um trabalho que nenhum país pode fazer sozinho”, mas as Nações Unidas têm várias iniciativas que ajudam a aumentar a resiliência das populações guineenses.

A agência identificou os setores mais ameaçados e, na última década, apoiou pelo menos 14 projetos nessas áreas.

O Pnud aponta a exposição física e a dependência da agricultura e pesca como os maiores fatores de risco. As licenças de pescas representam 35% das receitas do Estado guineense, mas segundo a ONU o aumento das temperaturas do oceano e outras mudanças devem reduzir as populações de peixe na região.

Estes setores representam perto de 50% do Produto Interno Bruto, PIB, do país. A agência afirma que “a riqueza económica da Guiné-Bissau baseia-se essencialmente no seu capital natural.”

Dava diz que estes recursos podem ser vistos sob duas perspectivas. Primeiro, como “uma oportunidade para o desenvolvimento e podem criar riqueza.” Mas, por outro lado, se essa exploração “não for cuidada pode criar um grande problema para o país.”

Com o apoio das Nações Unidas, o país criou em 2004 o Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas, Ibap. A instituição deve zelar pela boa gestão das áreas protegidas e pela conservação da biodiversidade.

Nas últimas décadas, foram estabelecidas oito áreas protegidas. O primeiro parque, a Reserva de Biosfera do Arquipélago Bolama Bijagós, nasceu em 1996. Seguiram-se outros, como o Parque Natural dos Tarrafes de Cacheu ou o Parque Nacional das Ilhas de Orango.

Neste momento, cerca de 26% do território está protegido, o valor mais alto de toda a África Ocidental.

Gabriel Dava diz que “o processo teve o apoio do Pnud, quer em termos de produção da legislação necessária, e sua aprovação, quer em termos da capacitação dos gestores desses mesmos parques e dos seus trabalhadores.”

A agência também ajudou “na criação de alternativas de vida das populações que vivem em redor dos parques, ou dentro, para que possam, de facto, realizar as suas atividades sem prejudicar o ambiente.”

Para Miguel de Barros, o sistema de gestão dos parques é um dos melhores exemplos da atividade de proteção do ambiente na Guiné-Bissau.

O especialista diz que o “mecanismo de gestão territorial integra as comunidades que vivem lá dentro no processo de gestão do seu espaço e recursos naturais.” Para Barros, essa escolha permite respeitar “as estruturas comunitárias autóctones e tradicionais” e permite “um diálogo muito mais profícuo.”

O especialista afirma que estes parques podem ser usados como exemplo para gestão dos recursos do país.

“Se conseguirmos projetar a ideia de gestão participativa de áreas protegidas em regime comunitário, e orientar essa lógica numa perspectiva de produção orientada para o mercado local, vamos ter capacidade de geração de emprego, geração de renda e capacidade de promoção de investimento social.”

Gabriel Dava diz que outros projetos tiveram o objetivo de “prevenir o impacto” destas mudanças e “aumentar a resiliência das populações.”

Foram criados sistemas de previsão meteorológica, para que as populações possam estar informadas em situações de secas e chuvas, além de terem sido criados métodos alternativos de produção. Na região de Gabu, por exemplo, o Pnud criou reservatórios para conservar a água da chuva, que podem ser usados como bebedouros para os animais e em situações de seca.

Os guineenses usam lenha para produzir sal, mas a agência da ONU ajudou a introduzir o sistema de salinas, que utiliza a luz solar. Gabriel Dava diz que “as populações já adotaram estes novos métodos.”

O sistema da ONU também ajuda o país a gerir as suas florestas. Em 2015, devido ao aumento de cortes de árvores verificado depois do golpe de Estado de 12 de abril de 2012, o governo decretou uma moratória de cinco anos para o corte de árvores em todo o país. As agências da ONU promoveram campanhas de sensibilização e informação.

Todo este trabalho deixa Miguel de Barros com esperança.

O ativista estudou e trabalhou em Lisboa, Rio de Janeiro e correu o mundo a apresentar o resultado das suas investigações em sociologia, mas voltou a Bissau. Regressa sempre.

Barros, que foi considerado a personalidade mais influente do ano 2018 pela Confederação da Juventude da África Ocidental, começou a defender a proteção do ambiente quando ainda era um tema pouco popular no país.

Num dos países mais pobres do mundo, que ocupava a 13ª posição mais baixa do Índice de Desenvolvimento Humano em 2018, as questões ambientais não eram consideradas uma prioridade. Hoje, Barros diz que “existem mais combatentes pela causa do ambiente.”

Segundo ele, os guineenses “não estão só a olhar para os espaços numa lógica de preservação, mas a olhar para todo o ecossistema, implementando modelos de gestão participativa baseada numa exploração racional” dos seus recursos.

Para o especialista, tudo “dá maior motivação para levar esse trabalho para a frente.” Ele acredita que o país pode vencer a luta contra a mudança climática.

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Autoria:Expresso das Ilhas, ONU News,21 set 2019 11:07

Editado porJorge Montezinho  em  9 jun 2020 23:21

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