Dois anos de guerra no Tigray. Analistas descrentes quanto a fim próximo

PorExpresso das Ilhas, Lusa,2 nov 2022 8:13

Dois anos decorridos desde o início da guerra no Tigray e quando se completa uma semana de conversações de paz em Pretória, vários analistas e observadores contactados pela Lusa manifestam-se descrentes em relação ao fim próximo do conflito.

O cepticismo é justificado por múltiplas razões, mas à cabeça, todos apontam a mesma circunstância: a guerra não parou, pelo contrário, intensificou-se nas semanas anteriores e durante as conversações de paz na capital da África do Sul, mediadas pela União Africana (UA), e iniciadas no passado dia 25 de Outubro, com um dia de atraso devido à ausência simbólica do chefe da delegação etíope, o vice-primeiro-ministro Demeke Mekonnen.

Não só a Etiópia e a Eritreia, aliada de Adis Abeba nos combates no Tigray, não manifestam urgência num acordo de paz negociado, como dão mostras de preferir que o seu oponente, as forças estaduais leais à Frente de Libertação do Povo do Tigray (TPLF, na sigla em inglês, no poder em Mekele) assuma a capitulação, assinalam os analistas contactados.

Abiy Ahmed, o primeiro-ministro etíope, e o Presidente eritreu, Isaias Afewerki, "querem tornar as conversações de paz irrelevantes através de uma vitória pelas armas", afirma Kjetil Tronvoll, professor no departamento de Ciência Política e Relações Internacionais na Bjorknes University College, Noruega.

Os dois exércitos capturaram a cidade estratégica de Shire, no norte de Tigray no passado dia 17 de Outubro e em seguida as cidades históricas de Akum, Adwa, no avanço pelo norte do estado etíope, assim as cidades de Alamata, Korem e Adigrat, entre outros centros urbanos, nas ofensivas pelo sul e pelo leste nas últimas duas semanas.

O cerco aperta-se sobre Mekele, a capital tigrínia, onde o objectivo declarado por Abiy Ahmed de tomar o aeroporto pode mesmo vir a impedir o regresso a casa da delegação tigrínia enviada a Pretória, como assinala Jan Abbink, investigador no Centro de Estudos Africanos da Universidade de Leiden, na Holanda.

"Não vejo como irá regressar a delegação tigrínia que está em Pretória em conversações com a delegação da federação, mas eles devem ter colocado a hipótese de que provavelmente não iria haver maneira de regressarem a Tigray", afirmou.

Estas negociações e contexto em que decorrem destapam a "falácia" na máxima de Clausewitz, de que "a guerra é a continuação da política por outros meios", diz Manuel João Ramos, investigador no Centro de Estudos Internacionais do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa (CEI-IUL).

"Gostamos de pensar que é assim, mas a guerra é a anulação da política, e, neste caso, acho até que podemos ter em conta que a diplomacia é a continuação da guerra por outros meios", acrescenta o analista português, especialista na Etiópia e na região do Corno de África.

O teatro de guerra espelha a retórica belicista de um e outro lado, e a interpretação desse conjunto de palavras e actos é clara para Tronvoll: "parece não ser possível, de momento, conciliar qualquer tipo de compromisso".

O analista norueguês lembra que o ministro etíope para a Paz do governo etíope, Muferiat Kamil, afirmou em várias ocasiões que a única forma viável para a paz na Etiópia é "desarmar o TPLF e demolir ou dissolver a TPLF como organização partidária".

No lado tigrínio, o discurso não é mais conciliador. O líder da TPLF, Debretsion Gebremichael, fez um discurso em língua tigrínia no passado dia 24, em que "deixou bem claro que esta é uma guerra existencial para o Tigray", assinala Tronvoll.

"As forças inimigas conjuntas que entraram em Tigray serão derrotadas. A nossa vitória é inevitável, é uma questão de tempo", afirmou na altura Gebremichael.

Jan Abbink não só não antecipa este desfecho como considera que as forças leais ao TPLF estão "de rastos e já não têm estamina para continuar a guerra".

"Pode restar alguns grupos a resistir nas montanhas, mas o TPLF já não é uma opção para continuar a governar a região de Tigray", acrescenta o analista holandês.

Não é esta a percepção de nenhum outro analista contactado pela Lusa. "O melhor que podemos esperar é que, não obstante não consigamos perceber como poderá vir a ser alcançado um acordo político, as partes [beligerantes] percebam que nunca conseguirão os objectivos políticos através dos meios militares", afirma William Davison, analista para a Etiópia do Center for Strategic and International Studies (CSIS).

Manuel João Ramos recorda que, antes de se assumir como o principal partido dentro da Frente Democrática Revolucionária do Povo Etíope (EPRDF, na sigla em inglês), o TPLF, constituído em 1975, liderou "a partir das montanhas" a resistência que viria a assumir o poder na Etiópia em 1991.

E é para as montanhas que as forças da TPLF podem estar a preparar-se para regressar, alerta Tronvoll.

Segundo o analista norueguês, "se as forças federais etíopes e as forças aliadas da Eritreia tiverem êxito - o que significa que conseguirão retomar Mekele --, só pode haver consequência: as forças de defesa do Tigray converter-se-ão numa guerrilha e passarão a fazer uma guerra cem por cento assimétrica, que eles já estão a conduzir e a preparar".

"Trata-se apenas de uma continuação. Durante os últimos meses travaram uma guerra mais convencional, nas últimas semanas passaram para tácticas tanto convencionais como de guerrilha e agora estão a passar para uma guerra cada vez mais assimétrica", afirma o analista norueguês.

A situação tornou-se "incontrolável" e "a violência e a destruição estão a atingir níveis alarmantes", nos termos do secretário-geral da ONU, António Guterres, em meados de Outubro.

A confirmar-se o cenário de Tronvoll, a transição do conflito para uma "guerra assimétrica", com ataques bombistas indiscriminados que caracterizam este tipo de guerrilha, só traz mais sombras à afirmação de Guterres.

O conflito no Tigray começou em 04 de Novembro de 2020, quando o primeiro-ministro etíope, Abiy Ahmed, enviou o exército federal, apoiado por forças regionais de Amhara e do exército da Eritreia, para desalojar as autoridades estaduais lideradas pela TPLF.

Os dois anos de guerra no estado norte da Etiópia, com 6,5 milhões de habitantes no início do conflito, saldam-se por centenas de milhares de mortes, de acordo com os Estados Unidos - cerca de 600 milhões, segundo Kejtil Tronvoll, que não explicitou a origem do número -, e mais de dois milhões de deslocados internos, de acordo com dados das Nações Unidas não atualizados desde o reacendimento da guerra em agosto último, depois de cerca de cinco meses de tréguas.

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Autoria:Expresso das Ilhas, Lusa,2 nov 2022 8:13

Editado porSara Almeida  em  2 nov 2022 14:02

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