Cessar-fogo em Gaza pode falhar sob peso de contradições, dizem analistas

PorExpresso das Ilhas, Lusa,21 jan 2025 8:22

Com o Hamas a demonstrar capacidade militar e Israel a prometer destruir este movimento palestiniano, diversos analistas internacionais mostram-se divididos sobre as possibilidades de sucesso do acordo de cessar-fogo entre as duas partes.

Para Mostafa Salem, analista da CNN, com a libertação dos primeiros reféns israelitas o Hamas envia duas mensagens claras: por um lado, "está longe de ser destruído" e, por outro, assumindo-se como vitorioso, dá aos árabes a ideia de que Israel saiu derrotado nos 15 meses de conflito.

Apesar de admitir que o acordo abre também a porta a novas negociações que poderão conduzir a uma retirada total de Israel de Gaza e a um cessar-fogo permanente, Salem citou Osama Hamdan, alto responsável do Hamas, que disse, após a assinatura da trégua de 42 dias, que terá de se ter em conta as reacções da extrema-direita israelita.

"O principal objectivo de Israel no conflito era eliminar o Hamas. Alguns ministros israelitas, deputados e mesmo uma pequena minoria de famílias de reféns vêem a aceitação de um acordo como uma derrota israelita. O ministro de extrema-direita Itamar Ben Gvir e o seu partido demitiram-se do governo e do Knesset (parlamento), apelidando as tréguas de 'rendição'. O ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, também de direita, classificou o acordo como 'catastrófico' e um grupo de reservistas do exército rotulou-o de 'acordo de rendição'", sublinhou Salem.

No entanto, ressalvou, o Hamas, que outrora controlava militar e politicamente a Faixa de Gaza, ficou após a campanha de 15 meses de Israel reduzido a uma fracção do que era e, com o enfraquecimento significativo dos seus aliados regionais Hezbollah e Irão, o grupo ficou isolado.

"O movimento tem continuado a apresentar-se aos palestinianos como o mais formidável grupo de resistência armada contra Israel, repondo as suas fileiras através do recrutamento de quase tantos novos militantes como os que perdeu. Cada vez que Israel termina as suas operações militares e recua, os militantes do Hamas reagrupam-se e reaparecem porque não há mais nada para preencher o vazio", assumiu recentemente o secretário de Estado dos Estados Unidos, Antony Blinken.

"De facto, consideramos que o Hamas recrutou quase tantos novos militantes como os que perdeu. Esta é a receita para uma insurreição duradoura e uma guerra perpétua", lembra, por seu lado, Tahani Mustafa, analista sénior do International Crisis Group (ICG), argumentando que o sofrimento infligido aos palestinianos de Gaza pela guerra de Israel cria um "terreno fértil para o recrutamento".

"O Hamas não vê a sua sobrevivência como um objectivo nesta guerra, mas para Israel a própria sobrevivência do grupo pode ser considerada uma derrota", sublinhou.

Por seu lado, o investigador Binoy Kampmark considera, num artigo no Eurasia Review, que o cessar-fogo em Gaza representa "uma colheita amarga" e até pode parecer "uma piada obscena".

"A junção dos termos 'cessar-fogo' e 'Gaza' parece não só incongruente como uma piada obscena. Isto deve-se, em grande parte, ao facto de que o cessar-fogo poderia ter sido alcançado muito mais cedo por todas as partes envolvidas. Mas faltou vontade em Washington para forçar a mão de Israel, cujo primeiro-ministro foi repetidamente da opinião de que o Hamas tinha de ser incondicionalmente derrotado, se não mesmo extirpado por completo, para que se pudesse chegar a um acordo", sustentou o investigador na Universidade australiana RMIT.

Peter Beaumont, analista do The Guardian, sublinhou que, apesar de o cessar-fogo em Gaza ter entrado em vigor, tem dúvidas sobre se o acordo se manterá, pois qualquer uma das três fases requer novas negociações para avançar e "é altamente vulnerável num contexto de pouca confiança entre as partes".

"Os analistas e observadores salientaram que a concepção do acordo, construído em três fases que exigem a realização de novas negociações à medida que o cessar-fogo avança, parece estar estruturada para convidar a múltiplas crises à medida que se aproxima de um terreno cada vez mais difícil. A confiança de ambas as partes tem sido, na melhor das hipóteses, insignificante", sublinha Beaumont.

"O Hamas, sem surpresa, dadas as declarações públicas de altas individualidades israelitas, receia que Israel procure assegurar o regresso dos reféns mais vulneráveis, mulheres, crianças, doentes e idosos, para depois recomeçar a combater, talvez na altura da segunda fase, ideia reforçada no domingo, após o ministro das Finanças de extrema-direita de Israel, Bezalel Smotrich, ter afirmado que Netanyahu lhe tinha garantido que a guerra iria continuar.

Marc Lynch, diretor do programa de Estudos do Médio Oriente da Universidade George Washington, entrevistado na Foreign Affairs, está entre aqueles que não acreditam que as perspectivas de ir além da primeira fase do acordo sejam boas.

"Vai ser muito difícil. Infelizmente, a minha opinião é que é muito improvável que passemos da primeira fase e avancemos para uma paz permanente. Há infinitas possibilidades de desmancha-prazeres de ambos os lados, e continuam a existir sérias divergências sobre os pormenores dos próximos passos do acordo", sublinhou Lynch.

"Do lado palestiniano, há muitas oportunidades para a violência por parte da linha dura, de facções militantes que não gostam da forma como as coisas estão a correr e de pessoas que apenas se querem vingar de todas as coisas horríveis que lhes foram feitas. É importante sublinhar que o acordo é uma trégua frágil e não uma cessação do conflito. Exigirá um acompanhamento contínuo e a responsabilização das partes negociadoras", afirmou Sanam Vakil, da Chatham House.

Para Vakil, o que não é claro, no momento em que Trump assume o cargo pela segunda vez, é se essa responsabilidade existe ou se o cessar-fogo acabará por se desmoronar sob o peso das suas contradições.

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Autoria:Expresso das Ilhas, Lusa,21 jan 2025 8:22

Editado porAndre Amaral  em  21 jan 2025 12:20

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