Um corpo docente pouco habilitado, algumas confusões à volta do conceito de e-learning, pesquisa inexistente e currículos mal adaptados às necessidades laborais do arquipélago, este é o resumo das conclusões de um estudo sobre o Ensino Superior em Cabo Verde, feito pelo Banco Mundial, no final de 2011.
Em 2010, estavam inscritos em instituições de ensino superior em Cabo Verde 10.200 alunos. Um contingente adicional de 6.000 estudantes prosseguia estudos superiores no exterior. As matrículas totais em Cabo Verde estavam repartidas igualmente entre as instituições públicas e privadas.
No estudo lê-se que apesar dos “ganhos claros” e de “melhorias louváveis”, o sistema educativo enfrenta novas dificuldades. Um desafio importante, sublinha, em todo o sistema educativo é a sua gestão, devido às limitações decorrentes de deficiências no planeamento (a nível micro e macro), a falta de planos de desenvolvimento escolar, o desenvolvimento curricular e a urgência da boa adequação dos currículos às necessidades de aprendizagem das crianças. Além disso, o sistema educativo ainda carece de um mecanismo fiável de avaliação das aprendizagens para acompanhar a qualidade do aprendizado.
Qualidade do ensino
O que é a qualidade do ensino e como ela é medida? Não há uma resposta simples. Até ao final do século XX, a qualidade dos insumos (por exemplo, pessoal, bibliotecas, equipamentos de laboratório e instalações físicas) no ensino superior era assumida como determinante da qualidade dos seus resultados, ou seja, graduados e pesquisa. Nos últimos anos, um novo paradigma tem argumentado que os insumos de qualidade não garantem necessariamente resultados de qualidade. A única maneira segura de avaliar a qualidade do ensino é avaliar o resultado da educação pelo desempenho de aprendizagem dos alunos. Para esse efeito, quatro avaliações internacionais de aprendizagem foram desenvolvidos: (i) as Tendências Internacionais no Estudo de Matemáticas e Ciências (TIMSS), que avalia os alunos do 4º e 8º anos de 48 países desde 1995, (ii) o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA), uma avaliação dos alunos de 15 anos de idade de 74 países, que começou em 1997, (iii) o Progresso no Estudo Internacional sobre Leitura (PIRLS), que avalia os alunos do 4 º ano de 35 países, e (iv) o Programa da Avaliação Internacional das Competências dos Adultos (PIAAC) que, a partir de 2011, usa pesquisas nos países sobre a população adulta para medir as habilidades e competências que os indivíduos precisam possuir para uma maior participação na sociedade e para que as economias prosperem.
Qualificações académicas dos docentes.
Acredita-se que a qualidade do professor universitário seja muitas vezes fundamental na determinação da qualidade do ensino oferecida num curso particular ou universidade. O professor, tendo adquirido conhecimentos disciplinares consideráveis através de longos anos de estudo, deve ser capaz de capturar e manter o interesse do aluno, comunicando o seu conhecimento com clareza aos alunos, inspirando-os e motivando-os a aprender, e determinar se conseguiram ou não aprender. Porque a relação professor/aluno é uma relação humana, as habilidades interpessoais são essenciais para um ensino eficaz. Estas podem ser julgadas através de avaliações dos alunos e/ou observação de pares. Ainda assim, o indicador mais comum de qualidade do professor é o grau académico que ele ou ela adquiriu (e para algumas pessoas também o estatuto da instituição que o conferiu).
Em Cabo Verde, um total de 926 docentes estavam contratualmente vinculados ao sistema de ensino superior público e privado em 2009/2010. Destes, 6 por cento possuía um grau de doutoramento, 35 por cento tinha um mestrado, e 59 por cento tinham uma qualificação inferior ao mestrado. Na Uni-CV, 10 por cento do corpo docente tinha um doutoramento. Nas oito instituições privadas, apenas 5 por cento dos docentes tinha grau de doutoramento. O Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais (ISCJS) tinha maior proporção de pessoal mais qualificado, com 56 por cento dos docentes com pós-graduação. Em seguida vinha a Universidade de Santiago com 54 por cento do pessoal docente com qualificação pós-graduada.
Entre os anos lectivos de 2008/2009 e 2009/2010, o número total de doutorados e de mestres no sistema do ensino superior diminuiu 6 por cento, ou seja, registou-se uma perda líquida de 23 docentes. Dentro do sistema, a Uni-CV ganhou 17 docentes com mestrado e doutoramento, enquanto que as universidades privadas sofreram uma perda de 40 mestres e doutores.
Segundo o estudo, as diversas interpretações destes resultados são, em primeiro lugar, que a proporção de titulares de doutoramento é bastante baixo, provavelmente, sublinha, inaceitável. Os docentes com o grau de doutoramento funcionam, geralmente, como líderes académicos, mentores para a equipa júnior, presidentes de comités académicos e líderes em pesquisa. Quando o número de doutorados é pouco, essas funções críticas sofrem e o preço pago por isso é, muitas vezes, uma perda de qualidade do ensino. Embora não exista uma regra firme em relação à proporção desejável de titulares de doutoramento, algo em torno de 25 por cento/30 por cento parece ser um alvo apropriado para Cabo Verde neste momento, adianta o documento.
No entanto, segundo a mesma fonte, mais preocupante é o grande número de docentes que não possui mais do que o grau de licenciatura. Isto significa que, em muitos casos, os instrutores com apenas uma licenciatura – por definição muito inexperientes no ensino e na pesquisa – estão a ensinar aos estudantes de licenciatura. Em tais condições, torna-se extremamente difícil manter, muito menos melhorar, a qualidade do ensino superior sem antes fazer um grande investimento no desenvolvimento académico do pessoal.
Os professores a tempo parcial.
Pessoal docente com contratos anuais em regime de tempo parcial também dificulta o esforço para promover a qualidade da educação. Isso ocorre porque os professores em tempo parcial raramente conseguem preparar adequadamente as suas aulas, reunir-se com os estudantes, participar nos comités académicos da instituição, ou conduzir pesquisas. Estas deficiências afectam directamente a eficácia do ensino e da aprendizagem, a visão e a continuidade que caracterizam os programas académicos, e os recursos de conhecimento que os professores trazem para a sala de aula. Mais importante ainda, uma enorme dependência do pessoal docente em tempo parcial pode comprometer a viabilidade de criação de estratégias de capacitação institucional.
Na Universidade pública de Cabo Verde, o pessoal em tempo parcial constituía quase a metade de todos os docentes em 2008/2009. Já a Uni-Piaget informou que 4 em cada 5 dos seus instrutores trabalham a tempo parcial. Informações fornecidas à equipa pelo ISCEE indicam que 90 por cento do corpo docente é contratado por hora. Na Uni-Mindelo, esta percentagem é de 85 por cento. O pessoal em tempo parcial é claramente um grande problema para o desenvolvimento do ensino superior em Cabo Verde, que restringe as possibilidades de desenvolvimento de capacidades, a fim de garantir qualidade e inovação.
Qualidade de ensino e aprendizagem
O estudo diz que a consciência da necessidade de promover a qualidade do ensino e aprendizagem através da formação do pessoal docente, concentrando-se no desenvolvimento de competências académicas dos professores, está a crescer em Cabo Verde. Em parte, essa consciência tem sido fomentada pela percepção de que o grande número de pessoal docente com licenciatura não tem uma verdadeira preparação para o ensino. Em resposta, a Uni-CV começou a oferecer cursos de curta duração em planeamento de aulas e pedagogia para os seus professores com qualificações mais baixas. Além disso, diversas parcerias internacionais com instituições estrangeiras do ensino superior também incluem actividades de desenvolvimento de tais quadros. Ainda assim, muito mais poderia ser feito nesta área crítica. Uma possibilidade seria o MESCI organizar um calendário de cursos de formação regular para a globalidade do sistema, que seriam abertos a todos os docentes, tanto das instituições públicas como privadas.
A segunda circunstância que interfere com a qualidade do ensino e aprendizagem é o facto de que todas as instituições do ensino superior têm uma grande percentagem de estudantes que trabalham, que se estima ser da ordem de 70 a 80 por cento do total. Isso restringe a sua capacidade de absorver os conhecimentos transmitidos, e fazer os trabalhos solicitados pelos docentes. Como resultado, estes estudantes supostamente não dominam as matérias e, por causa do seu grande número, os seus pontos fracos tornam-se a norma nas salas de aula. No nível de pós-graduação, praticamente todos os alunos do mestrado têm um emprego em tempo integral. Isto levanta interrogações sobre a sua capacidade para adquirir os conhecimentos em profundidade e compreensão, que é a marca da pós-graduação.
Avaliação dos alunos e resultados de aprendizagem.
Um benefício do exame de admissão da Uni-CV é que ele oferece um meio de avaliar os pontos fortes e fracos dos estudantes provenientes do ensino secundário. Por exemplo, os resultados recentes demonstram boas notas em biologia e geografia, mas notas fracas em português, inglês, matemática e física. Uma vez no ensino superior, as avaliações dos alunos tendem a avaliar as capacidades de memorizar informações com base em respostas curtas a perguntas específicas. Embora alguns professores manifestem a necessidade de adoptar exames que coloquem maior ênfase no pensamento analítico e na capacidade de resolver problemas, isso ainda não é prática corrente.
Recursos de aprendizagem.
A disponibilidade de laboratórios devidamente equipados e bibliotecas suficientemente dotadas em literatura constituem recursos adicionais que podem melhorar a qualidade da aprendizagem dos alunos. A inspecção rápida dos laboratórios de ciência na Uni-CV e na Uni-Piaget sugere que a maioria dos laboratórios possui equipamento essencial, embora talvez não na quantidade que seria ideal para uma aprendizagem mais eficiente do aluno. Os laboratórios de engenharia, em contrapartida, parecem ser limitados e pouco desenvolvidos. As avaliações externas da Uni-Piaget e Uni-Mindelo realizadas no início de 2010 relatam deficiências graves em termos de laboratórios de engenharia.
Um indicador da qualidade do ensino usado ocasionalmente, mas não muito confiável, é o número de livros da biblioteca por aluno. Embora este indicador dê uma ideia da quantidade de informações de referência que está disponível por aluno, não diz nada sobre a idade desses livros ou a relevância dos seus conteúdos às necessidades do aluno. Para registo, a biblioteca da Uni-CV tem um total de cerca de 15.000 volumes, ou menos de cinco livros por aluno. As avaliações externas da Uni-Piaget e da Uni-Mindelo documentam bibliotecas “inadequadas”. A nota positiva é que algumas universidades informaram que estão a planear assinaturas on-line para revistas científicas como uma maneira de resolver esta restrição.
Tecnologias da informação.
A Estratégia Nacional de Desenvolvimento do governo prevê que Cabo Verde venha a tornar-se numa “ilha cibernética” durante os próximos anos, utilizando essa capacidade para a expansão do seu envolvimento na oferta de serviços financeiros e terciarização. Para este efeito, a Cabo Verde Telecom já ligou todas as ilhas por cabo de fibra óptica e o acesso telefónico está garantido a todas as comunidades com um mínimo de 200 habitantes. Além disso, o país é servido por dois cabos submarinos internacionais que facilitam a comunicação global e o acesso à Internet. A nível do ensino secundário, todas as escolas secundárias receberam computadores e estão equipadas com laboratórios de informática.
No entanto, este trabalho está longe de terminar. Apenas alguns dos computadores das escolas secundárias estão conectados à Internet. O menor rácio computador por professor é de 1:28, e o menor rácio computador ligado à Internet pela população escolar é de 1:88. Além disso, sublinha o estudo, o preço de acesso à Internet para usuários privados pode ser proibitivo.
A situação no ensino superior é mais diversificada. A Uni-Mindelo tem um computador para cada seis alunos, e um programa de formação sobre a utilização do computador para o pessoal académico. A Uni-Piaget fornece um computador para cada 14 alunos no seu campus principal, na cidade da Praia, e um computador para cada 8 alunos no seu campus do Mindelo. Ambas as universidades têm organizado programas que permitem aos estudantes adquirir os seus próprios computadores a baixo custo. A Uni-CV dispõe de pelo menos três laboratórios de informática com cerca de 20 computadores em cada um e também oferece conectividade wi-fi no campus do Palmarejo. Entretanto, a sua disponibilidade geral dos computadores ainda está para ser confirmada.
Resultados da investigação.
A pesquisa é uma das características únicas do ensino superior. No tipo de economia previsto pela Estratégia de Transformação Económica de Cabo Verde, a capacidade de acesso ao conhecimento global, de avaliar a sua relevância, de aplicá-lo na resolução de problemas locais, e de gerar novos conhecimentos locais será essencial para o sucesso desta estratégia. É também uma exigência para uma educação pós-graduada de boa qualidade. Em ambos os casos, este é o papel da pesquisa.
Actualmente, a capacidade de pesquisa local em Cabo Verde é praticamente inexistente. A política de investigação nacional ainda não está devidamente formulada. O financiamento da investigação é modesto, a pesquisa é o resultado da iniciativa individual em vez de iniciativas institucionais e os resultados da investigação são, portanto, insuficientes.
A verba total do governo para a pesquisa no ensino superior corresponde ao montante previsto anualmente para a Uni-CV para esse fim. Em 2010, este montante foi de cerca de dez mil contos. Esses fundos foram usados em “estudos, pesquisas e desenvolvimento”, onde desenvolvimento se refere a actividades de extensão universitária. São destinados a projectos de pesquisa individuais do pessoal da universidade, 263 académicos e 360 estudantes de pós-graduação. Um candidato obtém fundos de pesquisa através da apresentação de uma proposta de pesquisa ao seu departamento académico. Se aprovada, a decisão é comunicada ao gabinete do Reitor para a confirmação formal e a alocação de recursos. De acordo com os estatutos da Uni-CV, as decisões relativas ao financiamento da investigação devem ser feitas pelo Conselho Científico da universidade. Ao reflectir sobre o futuro desenvolvimento das capacidades de investigação relevantes em Cabo Verde, o especialista brasileiro do ensino superior Simon Schwartzman observa que uma pesquisa, hoje, é entendida num âmbito que inclui “ligações e cooperação entre universidades, instituições públicas de pesquisa, indústrias e governo, em sistemas de inovação complexos e abrangentes”.
Em conclusão
Uma revisão dos indicadores de insumos disponíveis sugere que a qualidade do ensino superior em Cabo Verde é, na melhor das hipóteses, razoável. Mais importante ainda, existe um risco real de deterioração da qualidade nos próximos anos. Este risco deriva das contínuas pressões sociais e políticas para a expansão, a dificuldade em produzir corpo docente com as qualificações de pós-graduação (especialmente doutorados) compatível com a taxa de crescimento das matrículas, o crescente desafio da sustentabilidade financeira do ensino superior, e preocupações com a fraca qualidade dos diplomados do ensino secundário.
Como um pequeno Estado, pode ser útil a Cabo Verde procurar evitar as tentações de se esforçar para imitar os sistemas do ensino superior de países de maior dimensão. Ao fazer isso, deve sempre manter as necessidades e prioridades locais como o principal critério para a tomada de decisões – em termos de tipos de instituições, tipos de programas académicos, o conteúdo e os objectivos dos cursos, e a construção de um perfil apropriado de investigação.