Alcides Brito: o braço da liberdade

PorCésar Monteiro,20 dez 2017 6:44

Alcides Spencer Brito, de nome completo, nasceu em 22 de Fevereiro de 1950, na Palmeira, situada na costa oeste da Ilha do Sal, no seio de uma família relativamente numerosa (cinco rapazes e uma menina), tendo ali permanecido até aos três anos de idade, quando, juntamente com os pais, se transfere para os Espargos, onde reside. Filho de Manuel Eugénia Brito (Tchau) e D. Antónia Brito Spencer (Vindinha), ambos naturais da atual Vila de Santa Maria, Chinoa, alcunha por que é afectuosamente conhecido, teve uma “infância atribulada, mas feliz”, aliás, própria da conjuntura, que se desenrolou na sua terra natal.

As muitas dificuldades que então se viviam no Sal não eram estranhas à família de Alcides, cujo pai prestava serviço na ex-Shell portuguesa no reabastecimento de aeronaves que escalavam o Aeroporto, razão por que os filhos mais velhos se viam obrigados a executar tarefas domésticas, que exigiam sacrifícios. Na primeira classe de instrução primária, Chinoa fixariaresidência provisória em casa dos avós e dos tios, em Santa Maria, por razões alheias à sua vontade, mas, no ano escolar seguinte, regressou aos Espargos e, diariamente, fazia o percurso Espargos-Pedra de Lume e vice-versa, de pés descalços, a correr pelo descampado todo do Sal, numa altura em que as viaturas eram escassas e raramente apareciam uma boleias”. Chovesse ou fizesse sol, esse trajecto diário “tinha de ser feito a pé, a correr, com fome, mas aquilo serviu para a moldura daquilo que sou hoje”.

A actividade do resiliente do Chinoa não se restringia apenas às lides escolares e domésticas, mas, sempre que chovesse na pequena zona agrícola da Terra Boa, de resto conhecida pela sua fertilidade, “eu pegava na enxada para abrir buracos na terra e ajudava a fazer a sementeira e a fazer monda, desde tenra idade”. Habituado a trabalhar no campo, desde os seus oito anos, Chinoa, também, se dedicou à pastorícia de caprinos, em complemento à actividade agrícola que o absorvia.

Concluído o ensino primário no Sal (Espargos), Alcides deslocou-se a São Vicente em Março de 1963, com o intuito de ali frequentar a então admissão aos liceus. No ano seguinte, criar-se-ia, na Vila dos Espargos, uma secção particular do ensino secundário e ali frequentou o 1º e o 2º ano liceais no término dos quais voltaria a rumar para a ilha do Porto Grande com vista à prestação de provas que lhe permitiriam,posteriormente, prosseguir os estudos liceais no Externato do Sal, até ao 5º ano, em 1969.

No ano lectivo 1969-1970, terminados os estudos liceais, Chinoa foi professor primário em Pedra de Lume, ex-libris do Sal situado na costa da ilha, junto ao mar, e, em 1971, partiu para o serviço militar em Portugal (Tavira). Posteriormente, no ano seguinte, foi mobilizado para o serviço militar na ex-Guiné portuguesa, onde permaneceu até 1974, altura em que regressou definitivamente a Cabo Verde. Terminado o serviço militar obrigatório, ingressou nos Transportes Aéreos de Cabo Verde (TACV) a 20 de Maio de 1974, tendo-se aposentado a 1 de Março de 2015, após ter desempenhado vários cargos importantes no seio dessa empresa aérea nacional.

A par do seu percurso profissional invejável no seio da transportadora aérea nacional, Chinoa, no seu tempo de lazer, não descurou a atividade musical, tanto mais que como ele próprio se refere, “encontrei a música dentro da casa. Meu pai tocava bem, era bom acompanhante, costumava acompanhar a Tututa e meu tio materno Taninho, ambos falecidos, e tinham um grupo musical no Sal”. Não obstante ter o Alcides e os seus irmãos encontrado a música em casa, “fomos aprendendo a tocar, de forma empírica, através do famoso violão Mavioso, uma relíquia do nosso pai que ele próprio comprou a um português, em 1949. Igualmente, a veia musical veio do lado materno, já que a mãe Vindinha era cantadeira no Sal, numa altura em que, sobretudo as mulheres, costumavam cantar nos bailes animados por grupos de violino, viola de 10 (dez) cordas e cavaquinho.

Os primeiros acordes do Chinoa foram, em casa, aos 9 (nove) anos de idade, aproximadamente, com o violão Mavioso, às escondidas do pai Tchau, que tinha a sua própria filosofia de vida e se mostrava irredutível na transmissão aos filhos menores da prática de tocar violão. Todavia, a intransigência do pai foi contornada pelo espírito criativo do filho Alcides, que criou, em 1967, no Externato do Aeroporto do Sal, juntamente com outros colegas, “o primeiro grupo musical de jovens aqui no Sal”, conhecido como Os Jatos e cuja longevidade foi curta. A banda musical salense, que se extinguiria em 1968, não tinha instrumentos musicais e, por isso, “socorríamo-nos dos bons préstimos dos militares portugueses destacados, na altura, na ilha, através do Capitão Alexandre Portugal, Comandante da Companhia de Artilharia e meu professor de Matemática do 3º e 4º ano liceal, que nos cedia os instrumentos para ensaios e actuações pontuais”.

Dissolvido o grupo musical de estudantes, o Chinoa, antes da sua partida para o serviço militar em Portugal e em substituição do Piúna, resolveu juntar-se, em1969, à banda salense Os Únicos, o primeiro grupo musical com equipamento elétrico que surgira em 1966,constituído, na sua matriz, por Benvindo Ramos (Ramos), os irmãos Rito, Albertino e José Manuel Brito, Piúna, Hermógenes Cruz (Bonze) e Tony Lobo. A banda salense viria a desaparecer em 1971, após ter sofrido várias alterações na sua composição inicial.

Em 1974, depois do seu regresso do serviço militar, Alcides Brito, integra uma banda musical salense efémera chamada Improviso criada por Jorge Lopes, Nhelas Spencer, Estrela e Jorge Marques, entre outros, que atuava, esporadicamente, no Clube do Aeroporto. Entretanto, desintegrada a banda improvisada e aproximando-se as festividades da independência nacional, Chinoa e um grupo de companheiros resolveram contrair um empréstimo junto do Banco Nacional Ultramarino (BNU) com vista à aquisição de instrumentos musicais que viabilizariam a criação do grupo musical salense Voz Djassi, cuja estreia se verificou a 03 de Julho de 1975. A saída do Alcides, em 1978, por razões ligadas à sua atividade profissional e desportiva, que abraçara, dita o término do Voz Djassi, que, diga-se de passagem, marcou o panorama musical salense de então.

Após à iniciação à música, Alcides ganha o gosto pela escrita sob o impulso do seu professor liceal, da cadeira de português, Daniel de Sousa, que “sem o exigir, mostrava a necessidade da escrita e, a partir daí, comecei a escrever, teria eu mais ou menos 17 anos, ao mesmo tempo que comecei a participar em serenatas. A par do gosto pela poesia, em especial, Chinoa, ao sabor das serenatas de então, começou a compor coladeiras e, movido pela inspiração, “as vezes, escrevo, depois, agarro da viola, ou, então, ponho no papel, vou cortando, colando e musicando, até que saia alguma coisa de jeito. Outras vezes, sem privilegiar a letra ou a melodia, faço as duas coisas juntas, em simultâneo”.

Nas suas composições construídas com a variante linguística de São Vicente, ilha à qual está muito ligado, mas utilizando, esporadicamente, uma ou outra expressão do Djá d´Sal, Alcides Brito, de nome artístico, concede à palavra um lugar e tratamento especiais, numa tarefa nem sempre fácil: “Às vezes, passo quinze dias à procura da palavra que se ajuste, numa ilha como a do Sal onde, infelizmente, o dialecto vai desparecendo e sofrendo influências de vários dialectos de outras ilhas, sobretudo de Santo Antão e de Santiago, cuja presença demográfica se verifica em maior número, nos últimos anos”. Todavia, sem ter a pretensão de, demoradamente, investigar, à procura da palavra certa para o lugar certo, “vou pensando, à procura de expressões do crioulo antigo do Sal que me ensinaram o meu pai e os meus avós com quem lidei de perto e até que encontre a palavra que sirva. Meu pai era, também, uma história viva, ele conhecia muitos aspetos da vida da ilha”,que transmitiu ao filho compositor, pela via da oralidade.

A par do lugar estratégico da palavra, Chinoa não descurou, igualmente, a relevância da melodia nas suas composições, já que as duas componentes são igualmente importantes. Privilegiando o género da coladeira, Alcides Brito, também ele homem da Rádio, impõe-se no panorama nacional como renomado autor e compositor de obras musicais sobejamente conhecidas do público das quais se destacam, pelo seu conteúdo e elevado sentido estético, entre outras, as coladeiras Lavantá Braço, composta em Julho de 1975 e gravada no ano seguinte, nas vésperas da independência, sucessivamente por Nhô Balta e Ildo Lobo; Djá d´Sal (Mundo piquinininhe), um hino de enaltecimento à temeridade e à audácia das gentes da cosmopolita ilha do Sal, gravado por Nhóne Lima entre 1992 e 1993; Paródia familiar, gravada pelo Ildo Lobo, a solo, em 2004, ou, ainda, a morna Fonte inspiradora gravada, em 1985, pela Zenaida Chantre.

Pela sua mensagem simbólica e mobilizadora, no passado,pode considerar-se Lavantá Braço, no contexto específico em que surge,a obra mais emblemática de Alcides Brito, dir-se-ia, autêntico grito de liberdade e de exaltação patriótica, rumo à “f´lecicidade”, de um compositor comprometido, num momento particularmente fascinante da vida do país recém-independente, que faz dele, seguramente, uma das maiores referências da música tradicional cabo-verdiana, nas últimas quatro décadas.


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 837 de 13 de Dezembro de 2017. 

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Autoria:César Monteiro,20 dez 2017 6:44

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  20 dez 2017 6:44

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