Contra a corrente: Nós, o referendo e a CEDEAO

PorJosé Tomaz Veiga,1 mar 2018 6:34

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José Tomaz Veiga
José Tomaz Veiga

​Se a memória não me falha, nunca foi feito um referendo em Cabo Verde. E no entanto, o artigo 4º da Constituição considera o referendo como uma (a primeira, pela ordem em que aparece no texto!) das formas de exercício do poder político pelo povo. Vinte e cinco anos depois da aprovação da Constituição e 42 anos após a Independência, nem uma única vez os cidadãos foram chamados a pronunciar-se em referendo.

Durante estes 25 anos de vigência da Constituição não terá havido nenhuma questão de “relevante interesse nacional ou local” em relação aos quais os cidadãos devessem pronunciar-se directamente, por referendo, como estatui o artigo 103º da Constituição? Seguramente que não é esse o caso. A não utilização do referendo deve-se, penso eu, à desvalorização desse instrumento de exercício de poder, por contraposição ao sufrágio periódico. Alguns acharão que esta forma de exercer o poder não deve sobrepor-se ao parlamentarismo. Outros dirão que os cidadãos não estão preparados para utilizar este instrumento de poder.

Pode ser que tenham razão. Mas se assim for, então que se retire o referendo da Constituição.

Considero que já é tempo de começarmos e de nos exercitarmos na utilização deste instrumento de exercício do poder político pelos cidadãos, sem desvalorizar a via eleitoral.

E podemos dar um sinal de respeito pela opinião dos eleitores, organizando um referendo sobre a nossa pertença à CEDEAO.

Há muitos anos defendo a saída de Cabo Verde da CEDEAO, preferindo as relações diplomáticas bilaterais, porque me parece que Cabo Verse nunca se integrou na CEDEAO e os restantes Estados da CEDEAO, por razões de ordem política, cultural e religiosa, nunca aceitaram, não aceitarão Cabo Verde nem procuram uma integração real do nosso país. No que concerne à parte económica da equação, os dados são inequívocos (quem tiver interesse consulte os dados sobre comércio externo que o INE publica regularmente). E a recente “bofetada sem mão” com que os dirigentes da CEDEAO nos presentearam há pouco tempo, reforça a minha convicção.

A questão que me ocupa neste momento, relacionada com o referendo, é a natureza da própria CEDEAO. A CEDEAO à qual aderimos em 1976 não é a mesma organização hoje existente. Era, ou devia ser, na altura, uma organização virada essencialmente para a integração económica dos Estados que dela fazem parte, como, aliás, se depreende do próprio nome. De organização (que devia ser) eminentemente económica, a CEDEAO transformou-se, igualmente, em organização político-militar que pode intervir, e tem-no feito, noutros Estados da região, bastando para o efeito a aprovação de um pequeno número de Estados com maior poderio militar (vd a este propósito, o trabalho do Dr. Pina Delgado ”A Vinculação de Cabo Verde ao Mecanismo de Segurança da CEDEAO”, publicado como separata do número 27 da revista Direito e Cidadania de Agosto de 2007 que alerta para os riscos inerentes a esta possibilidade).

Mais preocupante, ainda, é o acordo de principio (cimeira de junho de 2017) dos chefes de Estado da CEDEAO à adesão de Marrocos. Francamente, da última vez que consultei um atlas do mundo, não me dei conta de que Marrocos fosse um país da África Ocidental, e sempre entendi, erradamente, vejo agora, que Marrocos era um país da Africa do Norte, do chamado Magreb árabe. O mesmo em relação à Tunísia, que, no entanto, já tem estatuto de “observador” na CEDEAO, se a memória não me falha

Ou seja, a CEDEAO vai deixar de ser a Comunidade Económica dos Estados da Africa Ocidental, para passar a ser algo parecido com “Comunidade Económica, Político-Militar dos Estados da África Ocidental e do Norte” ou outra coisa qualquer. Sem que os cidadãos desses países, incluindo Cabo Verde, tenham tido a oportunidade de se pronunciar sobre esta nova realidade, antes deixando que os Governos e Chefes de Estado decidam como bem lhes aprouver.

Suponho que a nossa delegação à cimeira da CEDEAO de Junho passado se tenha pronunciado a favor da integração de Marrocos. Desconheço quaisquer objecções que possam ter sido levantadas pela nossa diplomacia (mas gostaria de estar enganado e admito que possa ter tido a coragem de se pronunciar). Pergunto-me também se a nossa delegação tinha mandato popular para se pronunciar sobre este assunto. Porque, repito, trata-se de uma mudança radical em relação ao figurino inicial da CEDEAO. Depois de Marrocos e Tunísia, quem vem a seguir? Argélia, a eterna rival de Marrocos? Líbia se e quando estabilizar? Para mais é bom notar que Marrocos tem um governo islamista e os islamistas também estão no poder (partilhado, é certo) na Tunísia, o que introduz outros factores relevantes na equação.

Será que a nossa diplomacia considera que a ocupação do Sara Ocidental por Marrocos, ocupação não reconhecida nem pela União Africana nem pela ONU (se não estou desactualizado), é suficiente para transformar Marrocos num país da África ocidental?

Não acha o leitor que se justifica conhecer a opinião dos cidadãos em relação à nossa pertença a esta “nova” CEDEAO? Ou devemos aceitar calados as decisões dos grandes países da organização, sem que os cabo-verdianos sejam tidos os achados? Se nesses países não se organizam referendos, devemos seguir o seu mau exemplo?

Sou suspeito, naturalmente, porque há muito me pronunciei publicamente contra a nossa pertença à CEDEAO. E é mais do que claro que votarei contra, se tivermos a coragem de organizar um referendo sobre este assunto.

Em todo o caso, penso que os cidadãos deste país têm o direito de se pronunciar directamente, em referendo, sobre a nossa pertença à CEDEAO, face ao novo figurino que se vislumbra.

Preocupa-me, também, o silêncio dos poderes públicos e da sociedade cabo-verdiana em relação a outras iniciativas, recentemente ventiladas, como a moeda única desta sub-região (lembra-se o leitor de que nos foi prometida a moeda única para o ano 2015?), agora a moeda única africana, e a cidadania única africana. Estamos a falar a sério? Não será tempo de trazer estas questões a debate público, e os cidadãos chamados a pronunciar-se directamente, em referendo, sobre matérias tão importantes para o país? E não me venham com o argumento de que os cidadãos não estão preparados para se pronunciar sobre estas pretensas complexas questões. Já demos provas de maturidade suficiente e penso que devemos exigir ter voz activa sempre que for necessário decidir sobre questões de fundo, as que referi acima, e outras de igual relevância, que podem condicionar a nossa vida por muitos e muitos anos no futuro.


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 847 de 21 de Fevereiro de 2018.

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Autoria:José Tomaz Veiga,1 mar 2018 6:34

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  3 mar 2018 3:23

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