Há pouco mais de cinquenta anos que pisei, pela primeira vez, a ilha de Fogo. Hoje, depois de muitos anos, o sistema de pesca e sua estrutura organizacional é como eu os conheci nos anos sessenta.
Enquanto vos escrevo, vem-me uma dúvida: será que exagero no meu juízo de valor? Sim, talvez hoje alguns botes, embora nem todos, já têm um pequeno motor de popa. Mas nada mais. Pergunto-me: isso é possível depois de mais de cinquenta anos? É responsabilidade exclusiva dos pescadores? É apenas uma limitação cultural dos pescadores e da sua incapacidade de organização, enquanto homem de mar?
Estou certo que este povo é inteligente e que a emigração poe-lhe, diariamente, em contato com realidades mais dinâmicas. Penso nos Estados Unidos da América; no sonho americano que continua a conquistar e a absorver muita energia desta terra difícil, mas cheia de possibilidades de desenvolvimento. É um pensamento triste porque continuo a ver que está no coração e na mente de tantos cabo-verdianos jovens e menos jovens. No entanto, quanto mais vivo e trabalho para esta terra que me adotou, mais rica a vejo de oportunidades, de possibilidades e de futuro. Mas nós, começando por mim, o que realmente estamos a fazer para estas nossas ilhas e para os nossos jovens?
Temos estado a acalentar o desejo de ir para terra longe, deixar esta terra que ainda mal conhecemos, ou melhor, recusamo-nos a acreditar nas suas verdadeiras potencialidades, únicas no mundo. Sim, únicas, minha cara amiga e meu caro amigo. Mas mesmo assim todos nós, ou quase todos nós, incluindo os responsáveis por esta nossa sociedade, continuamos a pensar e a sonhar que fugir destas nossas ilhas é a única salvação para termos uma vida digna.
Tenho a sensação que o que eu e os demais responsáveis pelo desenvolvimento deste país, dizemos e escrevemos sobre as potencialidades de Cabo Verde, são apenas palavras ocas, sejam elas ditas ou escritas. Eu, um padre capuchinho e um sacerdote, tu um político, tu um empresário... acredito que na maioria das vezes ficamos satisfeitos e contentes com o discurso que fazemos juntos dos nossos jovens e das nossas gentes. E depois tudo permanece como estava antes. As nossas gentes, cansadas e amarguradas, tentam por qualquer via, seguir o grito silencioso de “América, América, Europa….”
Penso, contudo, que ao invés disso, devíamos cada vez mais, pensar fortemente que esta terra e este mar podem e devem ser os verdadeiros fatores para o desenvolvimento que tanto almejamos.
Meus amigos, recordo, muitas vezes, as palavras de uma amiga desta terra, Anna Bonamico – que acompanhou a criação do Hospital São Francisco de Assis, da Aldeia Turística Casas do Sol, da Vinha Maria Chaves, da Cantina de Monte Barro e outras obras sociais da Associação Solidariedade e Desenvolvimento – ASDE. Anna continuamente repetia: “Padre Ottavio, os cabo-verdianos não sabem ou fingem não saber, que têm a América aqui nesta sua terra.”
Penso também que é necessário pensar na criação de emprego; em alternativa, imaginar com coragem um futuro com base no turismo; pensar nas possibilidades e nas reais potencialidades do nosso mar. É verdade Anna, a América, podemos tê-la aqui.
Talvez sim ou talvez não, estamos muito acostumados a procurar ajuda e a escrever rimas infantis para projetos que são mais uma coleção de dinheiro do que projetos reais, concretos e exigentes, capazes de dar vida a ações reais focadas no desenvolvimento. Quantos (desculpem-me se eu me permito escrever assim por amar tão fortemente esta terra) projetos lançados ao vento, sem pés nem cabeça.
Enchemos a cabeça do nosso povo que se esforça para fazer face às despesas quotidianas com efêmeras “esperanças em projetos” que, na dura realidade da vida e das necessidades dos mais pobres, são e produzem literalmente nada ou quase nada. Os nossos pescadores do Fogo continuam a ter um cais de pesca sem dignidade, sem água, sem luz, sem as mínimas condições sócio-sanitárias; continuam a pescar com botes de 5/6 metros. No entanto, ao largo, grandes navios de pesca estrangeiros, sob a autorização do governo, retiram dos nossos mares as nossas riquezas, enquanto continuamos a sonhar em ir para terra longe para encontrar uma vida melhor!
A América que atrai, que encanta e nós teimosamente continuamos a não pensar e em não ver que podemos ter a América aqui, para nós e para os nossos filhos.
Minhas desculpas por este meu desabafo. Não me esqueci do meu passeio em trabalho com Maria e Albino, feito com o propósito de conhecer as verdadeiras condições de vida dos pescadores no cais de pesca do Porto do Vale dos Cavaleiros.
Juntos, vimos inúmeros botes coloridos dispostos no cais; vimo-los a serem arrastados para fora do mar, a serem empurrados à força pelos homens do mar; vimos um grande pedregulho no meio do arrastador, por se ter deslizado rocha abaixo; vimos 3 a 4 botes quebrados devido a um grande deslizamento de terra; vimos e conhecemos uma realidade de abandono a que ninguém parece ser responsável; uma bela orla marítima, abandonada a si mesma. Conclusão: parece que ninguém adora estes lugares e não tem nenhum interesse nem ideias porque a beleza desta terra continua a ser descoberta e conhecida maioritariamente por aqueles que vêm de fora, enquanto os nossos jovens, e não apenas eles, continuam a ir para longe.
Primeiro, pergunto-me a mim mesmo e a ti que me lês, dirijo-me ao político e ao cidadão comum que conhecem essas situações: é possível, em conjunto, acabarmos com a passividade que continua a empurrar muitas das nossas gentes pessoas para fora de Cabo Verde?
Todos devemos interrogar: amo realmente essa terra? Estou, realmente, a fazer algo para o seu verdadeiro desenvolvimento social e económico? Quero dar uma vida digna à minha gente? Ou será que semeio palavras que estão longe das necessidades reais das pessoas? Os projetos que concretizo têm um impacto real num desenvolvimento sério, ou são apenas uma má aplicação de muito dinheiro que se recebeu? .... Enquanto isso, nesta terra única e magnífica continua-se a sonhar em emigrar, correndo o risco de se deixar levar pela vontade de vendê-la a quem der mais.
É triste, muito triste neste momento, porque muitas vezes, fingimos não ver, não saber que, se realmente quisermos, podemos aqui construir aqui a próxima América, arregaçando as mangas e trabalhando duro e com responsabilidade.
Até mesmo a magnífica e abandonada praia dos pescadores, defronte para a Brava e junto a Vale dos Cavaleiros, está à nossa mercê e criatividade, mas não queremos saber, recusamo-nos a ver e a trabalhar seriamente, continuando a alimentar o sonho de emigração dos nossos filhos.
Até ao próximo encontro, minha amiga e meu amigo.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 849 de 07 de Março de 2018.