Estamos em pleno século XIX, altura em que o império russo promoveu várias viagens de circum-navegação. Numa dessas viagens, entre 1860-1861, o escritor Konstantin Stanyukovich passou por Cabo Verde, tendo registado no livro “Viagens de Circum-navegação na Korshun” o encontro com uma família do Porto Grande.
O escritor relata que, a pedido de um oficial da marinha russa que desejava ouvir algo popular cabo-verdiano, as mulheres entoaram uma canção extremamente triste e monótona, aparentemente sem instrumentalização e em tom menor. Os marinheiros russos sentiram algo de familiar nessa ária e inquiriram sobre o que essas mulheres cantavam, ao qual lhes foi respondido que lamentavam os irmãos escravizados.
Escalpelizando essas afirmações, o primeiro aspecto que sobressai é a feminilidade na morna. Quem eram essas “Salibânias” ou as “Marias Barba” de outrora? Qual o contexto social em que se enquadravam?
Se exceptuarmos a ilha Brava, onde a morna teve origem na sociedade burguesa e só posteriormente passou para a arraia-miúda, todas as outras ilhas experimentaram o processo inverso. Ora, não obstante os marinheiros descreverem um ambiente quase familiar não invalida a possibilidade de se tratar de uma casa ao estilo cabaret muito ligada à boémia. Se assim não fosse, essas mulheres não cantariam temas ligados à escravidão e aos maus-tratos dos colonos, pois, não compaginaria com o eventual estatuto elitista das mesmas. E se assumimos essa hipótese, somos da opinião que aquelas mulheres estariam inseridas num contexto sociocultural afro-negro, pois só os escravos e seus descendentes poderiam criar uma canção pejada de sofrimento e resignação.
Ainda sobre o papel da mulher na morna, deve-se ter em consideração, neste particular, a possibilidade avançada por António Aurélio Gonçalves da possível origem da morna a partir do canto das cantadeiras, onde uma mulher cantava um canto e logo de seguida era respondido em coro. Este pressuposto não deve ser negligenciado, sobretudo se considerarmos que a canção, segundo o escritor, foi entoada apenas pelas mulheres da casa.
Outro aspecto que também salta à vista é a escravatura. Trata-se de uma novidade, pois, os temas versados na morna que conhecemos, não incluem a escravidão. E se tivermos em conta que as temáticas abordadas antes de Eugénio Tavares estavam subordinadas às contingências da realidade positiva, podemos confirmar a ancestralidade daquela canção, onde deveria vigorar uma sociedade escravocrata, cujas contradições eram depois reproduzidas nas manifestações artísticas.
Este pressuposto serve de argumento ad hoc para debruçarmos sobre a correlação existente entre a temática da canção e o espaço físico onde o encontro se materializa. Com efeito, podemos concluir, com alguma legitimidade, que se trata de uma canção que chegou a São Vicente, originária de uma outra ilha. Apoia essa asserção o facto de que, por um lado, o Marquês Sá da Bandeira ao fundar a cidade do Mindelo, em 1838, determinou o fim imediato da escravatura, e por outro lado, o desenvolvimento da ilha alicerçada na instalação das companhias de carvão inglesas, não coaduna com os princípios de abolição da escravatura, adoptada por este país em 1807.
Se se considerar que a canção foi forjada fora do contexto mindelense, pois, somente o escravo teria motivos para criar uma canção que, segundo o escritor, pautava-se pelos lamentos silenciosos e uma tristeza profunda, cheia de resignação, podemos cogitar de a mesma ter sido gerada numa ilha com forte pendor esclavagista e ao mesmo tempo musical. Neste particular, a ilha da Boa Vista perfila-se como a principal candidata, pois a consolidação do povoamento de São Vicente contou com vários abastados daquela ilha que se dirigiram para a promissora ilha do Porto Grande, com os seus haveres, mas sobretudo com os seus escravos.
Por último, e não menos importante, diz respeito às características musicais da canção. Quase todas as teses acerca do “mito fundador” da morna colocam-na como originária da Boa Vista. Vasco Martins sugere que a partir do Landú caracterizado pelo compasso binário, com ritmo mais alegre e acelerado, transitou-se para um proto morna, e que mais tarde seria dramatizada na Ilha Brava, com Eugénio Tavares. No entanto, verificamos, segundo o relato do escritor, que esta dramatização antecede a Eugénio Tavares, que nasceu em 1867. O uso exclusivamente de tons menores que tornam as canções mais condoídas e melancólicas pode ter a sua origem não na Ilha Brava, mas na Boa Vista.
Em jeito de remate, dizer que esta revelação veio a talhe de foice agora que o país se prepara para entregar a candidatura da morna junto à UNESCO. Cabo Verde tem beneficiado na sua história recente do apoio fundamental por parte da Rússia, mormente no processo da independência e na atribuição de bolsas de estudo para formação de quadros nacionais. Desta feita, poder-se-á abrir novos horizontes na cooperação entre estes dois países, nomeadamente a nível da disponibilização dos arquivos da marinha russa para melhor compreensão de um dos traços distintivos da nossa cultura e que nos confere identidade. Sabemos, pois, o quão relevante é, para o sucesso de qualquer candidatura a Património Mundial, o auxílio estratégico de parceiros internacionais.