Ar Livre: Praya perdeu o ípsilon

PorEurídice Monteiro,1 mai 2018 6:00

Prestes a completar 160 anos da sua elevação à categoria de cidade (29 de Abril), a capital do país merece atenção nesta crónica. No planalto principal, cercado de pedregais, ficava o pequeno povoado que, em 1770, tinha alcançado o estatuto de capital da colónia de Cabo Verde e da província da Guiné e, em 1858, seria elevado à cidade.

Em 1841, Chelmicki e Varnhagen escreveram sobre como naquele tempo chegava-se triunfante ao porto da Praya: «O escaler atraca a uma pedra ilhada, aonde estando a maré cheia, passageiro bem facilmente sobe, mas ainda não está em terra, e será necessário fazer um exercício ginástico dando um pulo de cinco pés, e então se escorregando na rocha sempre húmida não caiu ao mar, pode enterrando-se na areia até à vila. Estando a maré vazia ou o mar um tanto inquieto, muito maior é o trabalho.»

Na sua grafia, Praya ainda tinha o exuberante ípsilon. No planalto de ruas bem alinhadas e algumas calçadas, que causavam admiração pelo menos em muitos visitantes, estava pousada a administração, sob o comandado dos altoscomissários enviados do reino. Entre a desconsideração e os simulacros filantrópicos dos reinóis, assim ia a governação e a vida na colónia. De lembrar que, sem as providências necessárias, a fome de 1832 e 1833 tinha dizimado mais de trinta mil almas.

Para lá do portão da ilha, soçobravam as ruínas da Cidade Velha, que outrora animou um viajante espanhol a escrever belíssimos versos, como os que passo a citar de cor e salteado: «el sitio es apacible y deleytoso / la gente muy lucida y muy galana.» A má-língua diria que tais versos teriam sido escritos sob o efeito do precioso líquido que muito se produzia nas terras menos áridas da ilha de Santiago. Em todo o caso, à maioria convinha ouvir tão doutas palavras.

Os anos passaram, os hábitos trocaram. Praia perdeu o ípsilon. O retorno dos colonos à metrópole, o êxodo rural, as migrações das ilhas e mais tarde da costa ocidental africana e dos países ocidentais trouxeram uma outra roupagem à cidade. Ouvimos hoje histórias várias de amor e desamor por esta cidade que, como se depreende, acolhe de forma desigual os visitantes ou novos moradores, consoante a sua condição ou sorte.

Durante a minha infância, ouvi relatos distintos de viajantes do interior da ilha sobre a capital. O meu avô contava uma aventura terrestre. Dizia que bastava uma mula e dias de viagens, com muitas paragens pelo meio para visitar as famílias, que podia-se enxergar a cidade do Monte Agarro, cheia de gente de todas as cores, profissões e fantasias. Minha avó, mais sedentária e dramática, narrava histórias de muita canseira ao longo da interminável viagem. Se fosse a pé, demoravase três dias para chegar à capital. Já estávamos na era da Praia sem ípsilon (pós-reforma ortográfica), mas ainda assim eram relatos de tempos remotos. Ainda não havia o imponente Liceu da Praia no lugar do monumental fontanário do Monte Agarro, na parte nortenha do Plateau.

Talvez por ser mulher, a minha avó teve pouca sorte com a Praia. Ela não chegou ao tempo dos Thugs, mas conheceu bem a era dos Netinhos de Vovó e dos Piratinhas em que numa qualquer distração, em fracção de segundo, os aldeões podiam ser assaltados por esses miúdos larápios que, zazzz, levavam tudo. Além disso, ela queixava-se da lentidão das repartições públicas e repetia sempre que sem ter dinheiro na mão não se podia dar um passo na capital. Era um drama para a minha avó vir à cidade. Só a custo, ela se dava ao trabalho de tirar o xale branco, o lenço de seda que cheirava a Paris e uma saiona ou blusa com mais idade do que a minha mãe.

Sem os ares saudáveis de Os Órgãos, nem a vida nostálgica da Calheta ou o sossego do Tarrafal, Praia tornou-se dona de múltiplas memórias. Memórias de estudantes, de profissionais, de segundas e terceiras gerações que o êxodo rural construiu, de encontros e desencontros, de alegria e tristeza, de aventura e abertura ao mundo.

Certa vez, alguém estava à procura de poemas de devoção à cidade capital do país. A pessoa chegou a me contactar para saber se eu não conhecia nenhum poema de amor à Praia. Logo, fiquei a pensar e concluía que há mais poemas de amor por São Nicolau, Mindelo, Sal, Calheta, Fogo, Brava, Maio, Assomada ou Tarrafal do que pela cidade da Praia. Há um ou outro poema dedicados à capital, mas que ainda assim são pouco conhecidos. Também há poucas composições musicais que tomam a cidade da Praia como tema. Muito pouca coisa dedicada à Praia. E isso não é de hoje. Oliveira Barros dizia que Praia é uma boa madrasta, ou seja, que trata bem a filhos dos outros.

Tudo isso leva com que haja uma relação estranha com a cidade. Vejo poucas pessoas enchendo a boca para falarem bem da Praia. Cheira mal, num canal. Tem lixo à vista desarmada em vários bairros. Já teve mais. Tem bairros arrojados que se coabitam com os bairros desalinhos. As pessoas continuam um tanto ou quanto duras no trato e a concentração administrativa faz disso um território de migrantes, o que tem condicionado uma identificação intimista com a cidade. Mas o que mais se tem notado é o progressivo nível de exigência, urbanidade e cosmopolitismo. É cada vez menos suportável que esta capital não tenha sequer um local aprazível para se ler um livro, um café que não seja simultaneamente bar, uma dinâmica turística e cultural para além da de Abril.

Continua-se a ver turistas e diplomatas que, chegando à Praia, contam os dias para visitarem a cidade rival. Quando lá vão e regressam, já só falam de Mindelo. Sempre comparam as duas cidades, apoucando geralmente a capital. Querem sempre fazer coisas por Mindelo, menos por Praia. Apesar dos pesares, de quando em vez, surgem iniciativas e gestos positivos para a cidade, desde a paulatina emergência de um ambiente académico e cultural à difusão de uma atitude outra face a paisagem urbana que nos circunda.


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 856 de 25 de Abril de 2018.

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Autoria:Eurídice Monteiro,1 mai 2018 6:00

Editado porAndre Amaral  em  1 mai 2018 6:00

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