O papel do desporto e dos grandes eventos desportivos no desenvolvimento

PorJosé Almada Dias,1 mai 2018 6:00

​Cabo Verde vai organizar os primeiros Jogos Africanos de Praia na ilha do Sal de 14 a 23 de Junho de 2019. Esta histórica e audaz decisão do Governo de Cabo Verde e do Comité Olímpico Cabo-Verdiano (COC) coloca o nosso país em destaque no mundo desportivo no continente africano e também traz este pequeno arquipélago para a montra mundial dos grandes eventos desportivos.

Segundo consta, batemos na corrida o arquipélago também crioulo das Maurícias, que possui mais do dobro da nossa população e uma economia com indicadores de país desenvolvido.

Os grandes eventos desportivos, à semelhança dos grandes eventos culturais, possuem cada vez mais uma forte ligação com o desenvolvimento económico. Já não são apenas encarados como uma forma de ajudar a desenvolver as modalidades desportivas nos países que os organizam; também já não são apenas um expediente para países tradicionalmente pobres se equiparem de infra-estruturas desportivas; passaram a ser eventos com uma íntima ligação àquela que é, actualmente, a maior indústria do mundo: o turismo.

Milhões de pessoas viajam todos os anos por este planeta para assistirem aos mais diversos eventos desportivos: dos campeonatos mundiais (e continentais ou regionais) das mais variadas modalidades aos Jogos Olímpicos, passando por provas anuais e mediáticas como os masters de desportos mais glamorosos como o ténis, golfe e vela. Há uma oferta quase infindável para os fãs do desporto, cada vez mais numerosos e com poder de compra para viajar.

Veja-se um pequeno país de 2 km2 como o Mónaco, com o qual Cabo Verde acaba de assinar um acordo de cooperação. O que nos passa pela cabeça quando pensamos no Mónaco? Fórmula 1, ténis, futebol, casino, marinas com super iates, regatas, carros desportivos, milionários, ou seja, glamour ancorado em grandes eventos, sobretudo desportivos.

Graças a um punhado de grandes eventos bem organizados, o Principado atrai todos os anos milhares de turistas que rentabilizam o seu turismo e potenciam vários outros negócios, como a imobiliária, a construção civil, fazendo da cidade do Mónaco uma das mais prósperas do planeta.

Não tendo espaço para construir grandes infra-estruturas desportivas, a cidade monta todos os anos gigantescas bancadas para o Grande Prémio de Fórmula 1 e para o torneio de ténis Masters Monte-Carlo. Neste último, as bancadas são montadas por cima de courts de ténis, como no caso do court central, onde umas bancadas que albergam 10.200 pessoas são montadas por cima de 3 courts. Acabados os eventos, as bancadas alugadas são desmontadas e a vida retoma a sua normalidade.

Os grandes eventos desportivos e culturais são cada vez mais importantes fontes de diversificação da oferta turística das cidades modernas e os países concorrem ferozmente para os atrair.

Estiveram, portanto, muito bem o senhor ministro do Desporto e o Governo ao tomarem a decisão de concorrer para a realização dos primeiros Jogos Africanos de Praia, uma ideia impulsionada pela incansável presidente do Comité Olímpico Cabo-Verdiano, Filomena Fortes, uma mulher respeitada a nível internacional num mundo ainda dominado por homens.

Em Cabo Verde, o desporto ainda é encarado como um hobby de alguns. É inclusive visto por muitos como uma actividade que apenas consome recursos à sociedade. É um erro crasso.

Raramente é reconhecido o abnegado trabalho que os desportistas e dirigentes desportivos fazem por pura carolice em prol do país. Porque fazer e organizar desporto sem recursos financeiros é obra.

Ainda recentemente, Francisco Santos, presidente do Grémio Sportivo Castilho do Mindelo, dizia numa reunião que os anos de trabalho como dirigente desportivo deveriam contar para a reforma. Eu assino por baixo por conhecimento de causa.

A esperança é que o processo de desenvolvimento venha a mudar estas atitudes e a forma das pessoas olharem o desporto.

É preciso também mudar a mentalidade dos pais. O desporto ainda é encarado como algo secundário, uma distracção à qual se dedicam “os miúdos que não têm cabeça para a escola”. Este preconceito revela-se na forma como impedem os filhos de praticarem desporto na época dos testes, o que mostra uma clara secundarização do desporto em relação às restantes actividades, designadamente as escolares.

Nos países desenvolvidos, já não é assim. Quando vivia em Inglaterra, deixou-me perplexo a forma como os pais encaram a prática desportiva dos filhos. Cito um exemplo da equipa de futebol de miúdos de 8-9 anos onde jogava o meu filho mais novo, equipa que participava todos os fins-de-semana em competitivos campeonatos. Não raras vezes, assisti, chocado, a pais a interpelarem o treinador ali mesmo no momento em que o filho era substituído, na presença das outras crianças e pais. Ou a expressarem o seu descontentamento por o filho iniciar o jogo como suplente. Para além disso, constatei que, por detrás dos polidos sorrisos que todos faziam uns aos outros, existia um verdadeiro ambiente de intriga entre os pais, formando-se grupinhos mais ou menos “amigos” do treinador, visando influenciá-lo em benefício dos filhos.

Uns tempos depois, percebi o motivo de tudo isso, ao ler um artigo que continha uma pesquisa que comparava a evolução dos salários médios dos jogadores de futebol e dos engenheiros ao longo dos últimos 50 anos em Inglaterra. O artigo continha um gráfico que mostrava as duas curvas a começarem juntas: a dos engenheiros foi subindo de forma moderada, enquanto a dos jogadores subiu exponencialmente nas últimas décadas.

Tomemos como exemplo Cristiano Ronaldo, cuja mãe acaba de confirmar na ilha do Sal as costelas cabo-verdianas do fenómeno madeirense, que por estes dias assinou um contrato que lhe permite auferir um vencimento anual de €30 milhões em Madrid, ficando mais perto do brasileiro Neymar Júnior, que ganha €34 milhões em Paris! Ora, quanto ganha em média um licenciado em Espanha? Três mil euros por mês? Significa que, para ganhar o que o “nosso” Cristiano ganha num ano, um licenciado que “queimou as pestanas” durante anos a estudar teria de trabalhar 833 anos! Para igualar o salário anual de Neymar num ano, seriam precisos 944 anos! Isso sem falar nos ganhos com publicidade, etc. Nem Neymar, nem Cristiano, nem Federer ou Nadal chegaram perto de uma universidade.

São estes os cálculos que os pais dos miúdos com algum talento há muito fazem por esse mundo desenvolvido fora.

Todos os anos, divirto-me a levar este assunto para debate nas minhas turmas universitárias. Quando pergunto aos meus alunos se acham justo que os desportistas ganhem tanto, a resposta é um coro de protestos, sobretudo quando apresento os cálculos anteriores.

Na segunda parte do debate, introduzo os números das audiências de um grande jogo de futebol, que muitas vezes chegam às centenas de milhões de pessoas. E questiono: se esses jogadores proporcionam prazer e divertimento a centenas de milhões de pessoas em todo o planeta, não é justo que eles ganhem de acordo com isso? Aí, as convicções começam a fraquejar.

Finalizo com a comparação com os antigos gladiadores da Roma Antiga, que faziam encher o famoso Coliseu, proporcionando divertimento a milhares de populares como fazem hoje os desportistas profissionais, mas que tinham de combater para sobreviver, eram escravos e comiam ração.

Significa que o mundo de hoje é muito mais justo do que antigamente. Os gladiadores da actualidade não só ganham proporcionalmente ao prazer que dão a milhões, como ainda possuem cada vez mais reconhecimento social e tornaram-se os ídolos de várias gerações.

Um outro facto curioso é que não me recordo de ouvir alguém a questionar os bilionários vencimentos das estrelas de Hollywood. Quererá isso dizer que, aos olhos da maioria, a cultura estará num patamar superior em relação ao desporto?

Os grandes eventos culturais são vistos já como importantes para o desenvolvimento turístico. Falta agora o mesmo com os eventos desportivos.

A nossa sociedade deve valorizar mais o desporto. Uma criança com talento para o desporto (ou para as artes) ainda não tem a mesma valorização social do que uma que tira altas notas a Matemática. No quadro de honra dos liceus não figuram os melhores desportistas, aqueles que muitas vezes até viajam para representar o país desde tenra idade, e que deveriam constituir motivo de orgulho das respectivas turmas, escolas, bairros, cidades, ilhas e de todo o país. Muito pelo contrário, são até penalizados por um sistema de ensino que não está preparado para se adaptar à vida muitas vezes sacrificada destes pequenos atletas. Falo por experiência própria como pai de desportistas e como dirigente desportivo.

Cabo Verde é um país que forma campeões sem o saber. Cometemos a proeza de formar 3 campeões do mundo de kitesurf sem possuir uma federação desportiva dessa modalidade, algo que deixa boquiabertos os dirigentes desportivos de outros países! Já tive a oportunidade de exibir uma fotografia em que se vê o pódio de uma competição internacional onde estão Mitú, Matchú e Airton. Três verdianos a dominarem o mundo, num tipo de sucesso que será efémero se não houver investimento.

Cabo Verde tem de investir seriamente no desporto. Para além dos óbvios benefícios da prática desportiva, com realce para a saúde e a formação de cidadãos que respeitam as regras e aprendem desde cedo o valor da camaradagem, do trabalho em equipa, do saber perder e ganhar, a economia deste pequeno país pode beneficiar imenso com isso. O desporto pode constituir também uma forma de muitos jovens conseguirem obter bolsas de estudo para se formarem em países como os EUA, onde o talento desportivo é extremamente valorizado.

Convido a nação verdiana a apoiar de corpo e alma a organização dos primeiros Jogos Africanos de Praia e a ver nesse evento um desígnio nacional. Somos pequenos, mas vamos mostrar ao mundo que temos uma alma grande.

PS: não pude assistir ao AME e ao Kriol Jazz, com muita pena minha. Pelo que ouvi, foi um retumbante sucesso. O AME estreia-se numa nova fase de parceria público-privada sem depender do Estado. É esse o caminho. Estamos todos de parabéns, particularmente os organizadores, que todos os anos ajudam a transformar a capital do país numa cidade aprazível para os seus habitantes e apetecível de visitar.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 856 de 25 de Abril de 2018.

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Autoria:José Almada Dias,1 mai 2018 6:00

Editado porAndre Amaral  em  1 mai 2018 6:01

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