A nova vaga de descentralização

PorAntónio Ludgero Correia,2 mai 2018 6:00

​“Resultados? Mas é claro que eu já consegui um monte de resultados! Hoje eu sei de mil coisas que não funcionam.” Thomas Alva Edison

Que se precisava (que se precisa, ainda) de uma nova vaga de descentralização era um facto em Setembro de 2011 quando, por ocasião de sua investidura como o 4° Presidente da República (o 3° da II República), Jorge Carlos Fonseca trouxe para a agenda política a necessidade de uma nova vaga de descentralização. Uma descentralização de demanda (reclamada pelos cidadãos), um tanto ou quanto diferente da descentralização de oferta (do Executivo de então) operada na década de 90 do século XX.

A questão caiu no goto de tanta e de tão boa gente que logo ressuscitaram velhos sonhos, surgiram cálculos mil, acabando, mesmo, por se tornar cavalo de batalha nas eleições gerais de 2016.

Quase do nada, o aprofundamento da descentralização se tornou sinónimo de regionalização. De supetão, a regionalização foi erigida em panaceia para todos os nossos males. Até a melhoria do funcionamento do Centro Comum de Vistos da União Europeia entrou nas esperanças de gente iludida pela abundância de leite e mel que alguns profetas da regionalização começaram a espalhar.

Mas, assim como aconteceu com os governos de José Maria Pereira Neves (JMN), o executivo comandado por José Ulisses Pina Correia e Silva (UCS) tratou de ir empurrando a questão com a barriga, mastigando qb, prevenindo assim indesejável indigestão futura. Em se tratando de regionalizar, empurrar com a barriga não tem qualquer conotação negativa. É mastigar conscienciosamente antes de engolir, porque depois de se avançar, não haverá volta a dar. É um pouco como perder a virgindade. Nem o Dr. Ivo Pitanguy* (que já nem está mais entre nós) consegue fazer voltar à primeira forma. E isso porque a simples reconstituição do hímen não traz de volta o essencial de uma virgem – imaculada, pura, intocável. Já era! É ver como chegamos a 22 Municípios e a 24 Cidades neste território de pouco mais de quatro mil metros quadrados. Não vejo muita gente com coragem política para avançar com uma proposta que mexa com uma tal proliferação de municípios e cidades. Já era!

Por isso bem andou JMN e muito bem esteve a dupla UCS/OGC (Olavo Avelino Garcia Correia) deixando o assunto a marinar. Porque entre o empurrar com a barriga e a fuga em frente, em assunto que provoca paixões, volúpia e otras cositas mas, vale mais, e melhor, dar tempo ao tempo, reflectir bem.

Mas não será porque o Executivo de UCS já depositou no parlamento a proposta de lei que cria as regiões que a questão virou pacífica. Veja-se, a propósito – só para citar um par de casos – a deriva de OGC e o posicionamento de José Pedro Chante (in Expresso das Ilhas). Ficou muito por dizer sobre muita coisa.

Pessoalmente, não aceito que a única via para aprofundar a descentralização seja regionalizar. Até nem sou contra a regionalização, salvaguardadas que sejam as armadilhas que esta nossa traz no seu bojo. Ela não é um FIM em si; não é panaceia para os nossos males; não garante maior aproximação da decisão em relação às demandas locais; não é barata; não leva o Centro Comum de Vistos da UE para as ilhas.

Tenho por mim que uma nova vaga de descentralização não tem, forçosamente, que ver com mais níveis de poder, com mais executivos, com mais instâncias legislativas e/ou deliberativas. A nova vaga de descentralização tem de ser, essencialmente, QUALITATIVA. E isso porque queremos fazer mais e melhor, servir mais e melhor e mais de perto, as nossas comunidades locais com os sempre parcos recursos disponíveis; também porque temos imperiosa necessidade de aproveitar as nossas vantagens comparativas e transformá-las em posições de competitividade; e, principalmente, porque quem escolheu (ou foi forçado a escolher, para o caso não interessa) a prestação de serviços como sua actividade precípua no quadro mundial (e regional) de distribuição de tarefas (QDT) não pode dormir em serviço, tem de ter os centros e a periferia funcionando em plena e inteligente conexão, cada um dando o melhor de si, sem peias, nem custos adicionais de contexto.

Porque entendo que a discussão acerca da nova vaga de descentralização não está fechada, antes pelo contrário, se escancarrou agora, registo aqui algumas pistas de reflexão, PROVOCADORAS qb, em relação a cenários possíveis.

Cenário 1

(Aprofundamento do municipalismo e regionalização do plano)

Criação de autarquias inframunicipais

Regionalização do plano

Montagem em co-parceria (governo central e autarquias) das grandes opções do plano e do programa de infraestruturação

Orçamento de investimentos participativo

Orçamento participativo dos municípios (envolvendo câmaras, juntas de freguesia e associações comunitárias)

Cenário 2

(Regionalização administrativa e revisão constitucional)

Criação de regiões-ilha (09, correspondendo às ilhas habitadas)

Consagração da região especial de santa luzia (correspondendo à área da reserva ambiental da pequena ilha do noroeste cabo-verdiano)

Divisão das regiões em subregiões lá onde isso se mostrar necessário (entre 12 e 15, em substituição dos municípios)

Consagração de subregião especial correspondendo à área metropolitana da grande praia

Adopção do princípio do orçamento participativo de investimentos (co-parceria governo central e regiões)

Orçamento participativo nas regiões (costurada entre regiões, subregiões e associações comunitárias e de desenvolvimento)

Reforço dos limites materiais de revisão da constituição (artigo 290°) determinando a proibição absoluta de revisão no que ao carácter unitário da república (n° 1 do artigo 1°) diz respeito

Cenário 3

(Reordenamento do território e regionalização do plano)

Novo mapa autárquico ( entre 12 e 15 municípios, i.E., Baralhar e voltar a dar)

Criação de autarquias inframunicipais (geridas por juntas de freguesia)

Regionalização do plano

Orçamento participativo de investimentos (participação efectiva dos municípios na elaboração)

Orçamento participativo dos municípios (envolvendo câmaras, juntas de freguesia e associações comunitárias e de desenvolvimento)

O cenário 1 daria perfeitamente conta da situação, caso (i) o país fosse dotado de autarquias infra-municipais; (ii) o Governo Central ficasse vinculado, por lei, a Regionalizar o Plano e a adoptar o princípio do orçamento participativo no que a investimentos do plano dissesse respeito e (iii) as Câmaras Municipais costurassem os respectivos orçamentos com a participação das autarquias infra-municipais e das associações locais. Mas isso é o velho e ninguém o quer. Ninguém, que é como quem diz, nenhuma das pessoas obececadas com a regionalização e que monopolizam os mass media.

O cenário 2 daria muito pano para mangas mas deve ser aquele que seria menos repudiado. Sempre pugnando por uma República soberana, UNITÁRIA e democrática v.g. n° 1 do artigo 1º da Constituição), não deixa espaço para devaneios federalistas, com Camara Baixa e Senado. É a regionalização administrativa defendida por Carlos Veiga, José Maria Neves, Ulisses Correia e Silva, Olavo Correia, creio que também por Jorge Carlos Fonseca, e por este cidadão, no pleno uso dos seus direitos, que subscreve esta coluna de opinião. Haverá – e certamente que os há – vozes discordantes mas que não têm nem mais, nem menos, direitos que os demais cidadãos deste país, residindo nas ilhas ou na diáspora.

O cenário 3, o tal de baralhar e voltar a dar, seria uma forma interessante de encarar uma nova vaga de descentralização. Minimalista nos seus propósitos, contudo seria um contributo importante no sucesso de um projecto de reforma do Estado, desde que fosse acompanhado de transferência ponderada e equilibrada de competências e recursos (humanos, técnicos, financeiros, tecnológicos). Com o perfil dos candidatos a Presidente de Câmara em franca afinação, não espantaria a ninguém que em 2020 os partidos políticos elevassem a fasquia das exigências em relação aos candidatos que indicarão e/ou apoiarão. E isso, sendo muito bom para a consolidação do poder local, seria também um factor de sucesso para um cenário destes.

Confesso que o cenário 3 me seduz.Tenho plena consciência de que muito boa gente o aprovaria sem tergiversar,mas não seria ingénuo a ponto de acreditar que mobilizaria apoios, tão carentes estamos de sermos reconhecidos como modernistas.

Por razões, mais ou menos, idênticas vejo muita gente sacudindo a cabeça depois de ler a descrição do cenário1. Mas, ao se lembrarem que o aprofundamento do municipalismo foi amaldiçoado (por aqueles que decidiram que DESCENTRALIZAR é igual a REGIONALIZAR e ponto final) fechar-se-ão em copas. Necessidade de reconhecimento oblige!

Mas o cenário 2 merece que se lute por ele. Contra senadores putativos, contra os birrentos de serviço, contra mar e ventos e contra quantos tentarem botar um ponto final em uma discussão que não pode ainda ser fechada. Regionalizar é preciso? Tudo bem! Então regionalizemos BEM. SEM PRESSAS. SEM TRUQUES. Por uma melhor administração destes dez grãozinhos de terra e para a felicidade de suas gentes.

O Primeiro-ministro prometeu FELICIDADE para os cabo-verdianos. E eu lhe digo isto: dará mais felicidade aos cabo-verdianos e à maioria (infelizmente silenciosa) se não se deixar levar, se não insistir na fuga em frente, se marinar devidamente o petisco. Os chefs de cuisine lhe dirão da importância da marinada para a qualidade dos petiscos e para a satisfação da clientela.

*Ivo Pitanguy, famoso cirurgião plástico brasileiro (1926/2016)

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 856 de 25 de Abril de 2018.

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Autoria:António Ludgero Correia,2 mai 2018 6:00

Editado porAndre Amaral  em  2 mai 2018 6:00

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