A minha ilha foi a última a ser povoada, alegadamente por dificuldades de sobrevivência na mesma. É, portanto, a codê da família. Talvez por isso mesmo, e por ter sido habitada por cabo-verdianos já livres das garras da escravatura, é a mais reguila das irmãs, a primeira a falar e a reclamar, a que não deixa dormir descansados os políticos nem ninguém.
É aquela onde tradicionalmente nunca se ligou aos mandantes das ilhas, mesmo no tempo dito “colonial”, quando a maioria das gentes da cidade do Mindelo não dava muita importância aos administradores portugueses enviados pela metrópole, pela simples razão de que ninguém no seu dia-a-dia dependia deles.
A economia que os cabo-verdianos livres vindos de todas as ilhas vivenciaram na baía do Porto Grande, ombreando com investidores estrangeiros, particularmente britânicos, indianos, noruegueses e italianos, não dependia na sua essência do Estado nem dos humores dos dirigentes da Administração da colónia, moldando definitivamente o carácter livre, empreendedor e alegre dos seus habitantes e descendentes. Uma forma de estar que encontra paralelo em tantas outras cidades-porto por esse mundo fora.
A tradição manteve-se até que, a partir da Independência, se instalou no país um regime que começou, paradoxalmente, um novo tempo de tentar a todo o custo esmagar a independência das chamadas forças vivas do Mindelo.
Por ironia do destino, a maioria dos novos mandantes do novo regime eram da ilha ou nela tinham estudado e aprendido a irreverência que os levou depois a almejar e lutar pela independência do país.
Também foi nas ruas do Mindelo que se deram os primeiros episódios de resistência a essa ditadura protagonizada por cabo-verdianos, como já tinha sido quando ocorreu na cidade a primeira greve de trabalhadores há cerca de 100 anos, ou os levantamentos populares contra a situação de fome, etc. Cenário igual viria a repetir-se no advento da democracia, na ilha que teve o primeiro presidente de câmara independente e a primeira mulher autarca. Tinha de ser no Mindelo, só podia acontecer no Mindelo, dizem os mindelenses no seu jeito folgazão, respondendo os das outras ilhas: essa gente de São Vicente tem a mania que é diferente. De facto, não são diferentes: são apenas gentes das ilhas que vieram ter contacto com o mundo na baía do Porto Grande, abrindo as suas mentes, fenómeno que, felizmente, está a acontecer recentemente noutras ilhas, à medida que o país se desenvolve.
Normalmente, os mindelenses são gozados por não saberem distinguir plantas nem árvores e pelo seu desconhecimento das coisas do mundo rural (há dias, alguém dizia que as gentes de São Vicente pensam que a mandioca cresce em árvores...). Picardias sãs entre irmãos, típicas de um diálogo entre populações com origem mais rural versus os que já nasceram no mundo urbano, algo que existe em todos os países deste mundo.
Foi nessa ilha árida que cresci e fui alimentado com produtos vindos das outras ilhas, porque a minha não produzia para o sustento dos que escolheram nela viver, qual “patricinha” dada apenas ao glamour da economia dos serviços, desdenhando dos trabalhos do campo que lhe poderiam estragar as unhas pintadas e arranjadas de mulher moderna e mundana.
O povoamento da ilha de São Vicente marcou, pois, uma nova etapa da vida das ilhas, com uma ligação ao mundo moderno que permitiu sair da economia do sector primário, rumando para a indústria e os serviços.
Para além do comércio internacional, foi na ilha que se instalaram as primeiras indústrias dignas desse nome.
Tudo isto vem a propósito de uma situação nova que se vive no país. Em Agosto de 2017, estava eu de férias na ilha de São Nicolau quando, para meu espanto, fui comprar ovos e disseram-me que não havia, porque o barco não tinha vindo de São Vicente! Eu, neto de são-nicolauenses, habituado a comer em casa ovos vindos de São Nicolau (ou de outras ilhas, conforme o caso), fiquei abismado.
Posteriormente, ouvi falar de uma situação de escassez de ovos na cidade da Praia, localizada na ilha que, historicamente, é o celeiro do país, muito orgulhosa e ciente das suas tradições rurais e de produção de tudo o que a terra pode dar nestas ilhas.
Pois é, de ilha importadora de ovos até há bem pouco tempo, hoje São Vicente abastece o resto do país dessa importante e acessível fonte de proteínas animais!
O crescente aumento populacional do país e o aumento do poder de compra dos seus habitantes criaram um mercado que já não pode ser abastecido apenas pela produção caseira. Essa procura tem de ser satisfeita com produção industrial, e a ilha mais industrializada do país aproveitou a oportunidade.
Hoje, a empresa SOCIAVE SA, liderada pelo jovem empreendedor e empresário João Santos, sócio, juntamente com o seu irmão mais velho, Pedro Santos, abastece a quase totalidade do mercado nacional de ovos e frangos. Os números impressionam: em 2017, produziram 260 toneladas de frango e 25 milhões de ovos! E possuem capacidade instalada para muito mais!
Paulatinamente, com muito trabalho e empenho empreendedor, os irmãos Santos transformaram uma pequena unidade fabril que resultou das privatizações da década de 90 num dos maiores casos de sucesso de empreendedorismo nacional.
Tudo isto sem dar nas vistas, cultivando uma cultura de low profile e longe dos holofotes que muitas vezes por cá atraem mau olhado. João Santos levanta-se todos os dias bem cedo e às 6h, sempre de calças de ganga e polo, já está a caminho da Ribeira de Julião para começar mais um longo dia de trabalho, que isto de ser industrial não é vida fácil.
Mas como tudo tem um fim, recentemente, a notícia da certificação da SOCIAVE trouxe para a luz da ribalta estes empresários que preferem passar despercebidos.
Após um árduo trabalho que levou cerca de 4 anos e perto de 10 mil contos de investimento, a SOCIAVE ostenta hoje a certificação ISO 22000:2005, o mais alto certificado na área da alimentação e controle de qualidade a nível mundial.
Com essa certificação, a empresa está pronta para abastecer as grandes unidades hoteleiras, algo que aliás já vinha fazendo, abastecendo há vários anos alguns dos hotéis nas ilhas do Sal e da Boa Vista.
Será curioso ver se, a partir de agora, algumas grandes unidades hoteleiras que preferiam importar ovos do estrangeiro, com a desculpa de que a SOCIAVE não era certificada, continuarão a fazê-lo...
João Santos é um empresário mindelense, pertencente a uma família de empresários com raízes na vizinha ilha de Santo Antão, a conhecida família Santos de Ribeira das Patas, concelho do Porto Novo, cujo patriarca terá vindo há várias décadas exilado de Portugal, mais precisamente de Peso da Régua. Uma história comum a várias famílias crioulas do Novo Mundo.
A família tem vindo a investir em várias unidades do ramo alimentar. Adquiriram há sete anos à Caixa Económica uma unidade fabril na zona de Madeiral na ilha de São Vicente, que estava parada e onde passaram a produzir porcos e, em 2016, através de concurso público, a fábrica de queijos do Porto Novo onde hoje produzem queijo fresco e curado e charcutaria diversa, que são vendidos noutras ilhas. Estão ainda no comércio a retalho, na produção de grogue em Santo Antão e na produção de vegetais em São Vicente.
Na entrevista dada há dias a este jornal, João Santos foi peremptório: não estão à espera de nada do Estado, a não ser que cumpra o seu papel, que passa, por exemplo, por criar as condições de unificação do mercado, para que os empresários nacionais possam abastecer todo o mercado nacional e por acabar com a concorrência desleal. Outra coisa eu não esperaria destes empresários que conto entre os meus bons amigos e cujo trajecto empresarial conheço desde sempre.
Não aconteceu nenhum milagre de multiplicação de ovos, como sugere o título desta crónica, com algum humor mindelense. Apenas trabalho abnegado e muita ousadia.
Os cabo-verdianos têm todas as razões para estarem orgulhosos destes bons exemplos de empreendedorismo que vão aparecendo um pouco por todo o país.
Que as novas gerações olhem com atenção e sigam o mesmo caminho, pois vão ter cada vez mais oportunidades à medida que a economia nacional for crescendo, arrastada pelo turismo, que nos traz aqui para as ilhas o mercado que não temos. Porque, no final, não há nada melhor do que exportar cá dentro!
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 858 de 9 de Maio de 2018.