A liberdade de expressão é um direito natural e dela resulta a liberdade de imprensa, pilar fundamental da democracia, porque instrumento privilegiado de controlo social do poder. Mas, tanto a liberdade de expressão (lactu sensu) como a liberdade de imprensa nela contida são, a um tempo, direitos e conquistas. Conquistas que acabaram sendo plasmadas na maioria das constituições dos estados hodiernos,mas direitos que precisam ser defendidos com unhas e dentes para não se tornarem letra morta.
Como dizia Maquiavel, o mais difícil não é conquistar o poder, mas sim mantê-lo. Digo eu, aqui e agora, que não basta conquistar direitos, já que é mister defendê-los, mantê-los, de forma permanente. Como soi dizer-se, camarão que dorme a água leva. Daí a necessidade ingente de nos mantermos vigilantes.
Com a missão de formar e informar, com isenção e verdade, a imprensa e os demais órgãos de comunicação social (OCS) surgem como arrimo dos eleitores, dos consumidores, dos trabalhadores, dos empresários, dos artistas, enfim, dos cidadãos. Municiam-nos com informações indispensáveis às nossas tomadas de decisão; contribuem para a formação de uma opinião pública forte, abalizada e actualizada; empoderam a sociedade civil; fornecem-nos canais para nos expressarmos, para protestarmos, para exprimirmos o que nos vai na alma; e contribuem para o controlo social do poder.
Com estas potencialidades todas, não admira que surjam tentações de controlo dos OCS. É que quanto maior for a ignorância e mais limitados os espaços que concedem vez e voz aos cidadãos, menores (quando não nulas) são as chances de controlo do poder. E não há poder nenhum que não ansie campiar livremente, animando a populaça com pão e circo.
Mas, ao contrário do que muito boa gente pensa, não são apenas os titulares dos órgaos do poder do Estado, maximé dos executivos (central e locais) que têm essas apetências. Estes, porque gostariam de reinar sobre uma turba de ferrenhos adeptos, aparecem como os maus da fita. Mas ameças podem vir, e vêm, de múltiplas origens. A par destes, perfilam-se os proprietários e os comanditários dos OCS privados; os grandes anunciantes e o grande capital; e os demónios que se albergam no íntimo dos profissionais e que - nalguns casos e, felizmente, cada vez menos – os subjugam.
A classe política, maximé aqueles que tutelam, na oportunidade, os poderes do Estado, querendo levar a água ao respectivo moinho, dificilmente resistem a manipular os profissionais da comunicação social, visando exaltar, desmedidamente, os bons feitos e escamotear os erros e as situações menos conseguidas.
Os grandes anunciantes e o grande capital, condicionando a acção dos profissionais, boicotando e censurando notas, artigos e comentários que, eventualmente, mexam com os seus interesses. É que o papel que se vende não mantém jornal nenhum, o que faz dos anunciantes regentes das linhas editoriais, mui flexíveis, dos OCS privados. Lá, como nos órgãos estatais, os profissionais sofrem. E nem todos conseguem resistir às pressões. Não raras vezes, os laços comestíveis acabam se sobrepondo ao sagrado dever de formar e informar com isenção e verdade.
Os nossos demónios digladiam-se, em permanência, com a nossa consciência. Quando os nossos demónios subjugam a consciência e a deontologia profissional temos o caldo entornado. Com ou sem pressão dos patrões, o profissional impõe-se uma auto-censura que não só compromete sua credibilidade, sua carreira e seu futuro, como compromete o OCS que o emprega e a classe.
As ameaças são muitas, mas há, felizmente, formas e vias de as contornar.
Hoje, uma opinião pública que se queira actuante pode se socorrer do cyberespaço para dar vazão ao que lhe vai na alma. A blogosfera, as redes sociais (Facebook, Instagran, Twitter, etc.) estão aí oferecendo vez e voz a todos. Verdade seja dita que, apesar de em outras latitudes se controlar a internet e se bloquear as redes sociais, entre nós não existe tais nefastas práticas. A grande pena é que, não raras vezes, as usamos muito mal. Ressabiados com Deus e o Mundo, utilizamos esses espaços para destilar fel e difundir mal-dizeres.
O recurso ao boicote ao consumo de produtos de grupos económicos que impõem limitações ao livre exercício da profissão nos órgãos onde anunciam é outra forma de enfrentar as ameaças à liberdade de imprensa. Que fique claro que, se queremos uma imprensa livre, não podemos deixar a luta apenas para os jornalistas. É uma luta de todos: dos profissionais dos OCS e organismos da classe,dos cidadãos individuais e/ou organizados em associações, das autoridades reguladoras e fiscalizadoras, dos Tribunais. Uma sociedade civil organizada e empoderada e uma opinião pública interessada e actuante são, certamente, instrumentos de controlo dos poderes (públicos, económicos e outros) e vias para a neutralização das ameaças.
A denúncia de comportamentos iníquos pode, também, funcionar como profilaxia contra tentações de condicionamento de consciências e de limitação da liberdade de expressão, no geral e da liberdade de imprensa, em particular.
O que não podemos é nos armarmos em coitadinhos e deixar as coisas acontecerem, abandonar os jornalistas à sua (pouca) sorte, esperando que organismos estrangeiros ponham o dedo na ferida para depois reagirmos. Temos que banir o demónio do conformismo que habita em cada um de nós e começar a praticar a empatia e a solidariedade em relação àquelees que nos servem, não raras vezes em situações muito penosas.
Precisamos chegar a uma massa crítica com valores & princípios. Os jornalistas precisam se comprometer com a deontologia profissional, se esforçarem por serem verticais. O(s) organismo(s) de classe precisam estar em prontidão permanente, formando e protegendo os seus membros. Nosotros precisamos estar atentos, apontar o dedo às iniquidades e às injustiças, elogiar e/ou premiar os bons profissionais e criticar aqueles que não dignificam a função.
Pessoalmente, desejo que os OCS se posicionem como IV poder. Um poder que age proactiva e preventivamente no controlo social do poder e que não se fique pela reacção a diatribes dos demais poderes. Agir na prevenção é se posicionar como PODER; ficando-se pela reacção, actuando na esteira da agenda dos poderes, é se posicionar como CONTRAPODER, não raras vezes chorando sobre o leite derramado.
Manter intactas as conquistas que levaram a que a liberdade de expressão fosse declarada direito narural e a liberdade de imprensa consagrada direito fundamental, inalienável e imprescritível, na nossa Constituição, implica em luta permanente pela sua salvaguarda.
Sombra e água fresca? Serão direitos que chegarão um dia. Quando a nossa democracia se tornar perfeita. Até lá… VIGILÂNCIA!
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 858 de 9 de Maio de 2018.