Isenção de vistos: Simetria, Contraste ou Provincianismo?

PorAntónio Ludgero Correia,23 mai 2018 7:25

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António Ludgero Correia
António Ludgero Correia

​“Sucesso é a capacidade de avançar de um fracasso para outro sem qualquer quebra de entusiasmo.” Winston Churchill

As pessoas habituaram-se a que, em matéria de tratados e acordos, haja reciprocidade (sempre ou quase sempre), cláusula de nação mais favorecida (algumas vezes) e contraste brutal (mais raramente, quase sempre imposto ao beligerante vencido na sequência de uma rendição).

A reciprocidade nem sempre é tão simétrica como se desejaria. Creio que na questão da isenção de vistos concedida aos cidadãos da União Europeia + Reino Unido da Grã Bretanha e Irlanda os velhos anseios dos cabo-verdianos fizeram-nos sonhar com uma reciprocidade simétrica.

Isenção de visto aos cabo-verdianos só porque o Governo de Cabo Verde abriu mão do controlo dos estrangeiros dessas proveniências (tudo que vier na rede é peixe: empresários, trabalhadores honestos, mafiosos, burlões, etc.) e dos 2.000.000 de contos de receita? Passar da situação reinante em que cientistas, homens de negócio, estudantes com vaga e meios de subsistência garantidos e artistas penam para obter um visto para o nosso sonho de consumo, que é como quem diz, viajar para a Europa com isenção de visto? Mera utopia.

Não havendo reciprocidade simétrica, o que persegue o Governo de Cabo Verde com a decisão, unilateral, de isenção de vistos? Alguma contrapartida, assimétrica, mas muito interessante para os nossos interesses? Certamente, dirão nossos governantes. Mas como esperar que os governados intuam o que vai na mente dos governantes, se estes não se explicam?

Como diz o outro, há explicar e justificar-se. Explicar é quando, de forma proativa, se passam as informações necessárias para a compreensão de medida que pode ser polémica ou cuja bondade não seja imediata e diretamente intuída; justificar-se é vir a público depois de se ter sido chamado à pedra, fornecendo informações que sabem a desculpas, e não raras vezes, de mau pagador.

E neste caso (como, infelizmente, em muitos outros) o Governo da República fica-se na sua, contando que por ser suportado por uma maioria parlamentar confortável conta com a magnanimidade dos cabo-verdianos para tudo ou quase tudo. Desta feita, porém, perto de 60% da população não aceita a medida. No mínimo, não terão compreendido, intuitivamente, o alcance dela; não vislumbraram o que o Governo conta receber em troca da renúncia de controlo e de receitas. E para o cabo-verdiano 2.000.000 de contos é dinheiro!

Não passa pela cabeça de ninguém que o Governo esteja navegando por tais águas sem ter em mente conseguir vantagem substancial para a Nação cabo-verdiana. Longe disso. Creio que todo o mundo acredita que se persegue algum bem, a médio e/ou longo prazo.

Mas não passará pela cabeça de nenhum de nós que os europeus não estejam se interrogando acerca da dádiva cabo-verdiana. Quando a esmola é muita até o santo desconfia. Ainda mais, santos bem mais abastados do que os beneficientes. Será alguma esperteza saloia que os faz vergar-se tanto, esperando que, mais cedo ou mais tarde, consigam reciprocidade de tratamente? Acreditarão que a isenção de vistos resolve os principais constrangimentos dos nossos turistas que demandam essas paragens?

Que o Governo da República sabe o que quer e que tem esperança de o conseguir não tenho dúvidas. Mas, como é possível que a maioria dos governados (um número bem maior de que a totalidade dos eleitores inscritos nos cadernos eleitorais) ache ruim ou muito ruim uma medida que os governantes acreditam, piamente, que é boa ou muito boa, em plena era das TIC? Das duas uma: ou o Governo entende que não tem que dar satisfações aos cidadãos, porque acredita que a maioria que obteve nas urnas dá-lhe um cheque em branco para preencher com os valores que quiser; ou acha que as vantagens são tão evidentes que todos deviam intuí-las e aceitá-las.

Ora, a verdade é que nem os mandatos são cheques em branco, nem as vantagens são tão evidentes para o comum dos mortais cabo-verdianos. Daí que o Governo vai ter que suar estopinhas para se justificar perante o povo, que é quem mais ordena (por ser o dono originário do poder, como não se cansa Marcelo Rebelo de Sousa de recordar ao Governo do seu país). Noblesse oblige!

O que nunca, jamais e em tempo algum, se poderá pensar é que a maioria da população esteja reagindo com base em algum provincianismo tacanho. Já se ensaiou dizer isso por outras palavras e é grave que se pense isso de governados que não conseguem acompanhar a pedalada de seus governantes.

No fundo, parece que os bits quânticos utilizados nos processamentos do Governo não se sincronizam com os dígitos binários ainda utilizados por uma Nação ainda com largos segmentos analógicos. A saída será arranjar formas e vias de manter aberto um canal de comunicação onde os dados e as informações estejam codificados de modo a poderem ser descodificados pelos cidadãos, pelo comum dos mortais.

E a verdade é que nem a supressão de vistos é a melhor solução para a atração de turistas (haja em vista que isto implica em eliminação de um crivo muito importante no controlo de aceitação de estrangeiros), nem a renúncia de receitas resulta em definitivo como factor incentivador da escolha do nosso país como destino turístico.

Na primeira década deste século o FMI e o Banco Mundial deixaram-nos, por escrito, recomendações no sentido de não estribar a atração de investimentos na base de incentivos fiscais (renúncias de receitas). As instituições de Bretton Woods deixaram claro que devíamos delinear outras estratégias de atração. Aliás, o código de benefícios fiscais, que viria a ser aprovado, teve na sua base as recomendações dessas duas instituições. Porque seria diferente em relação à atração de turistas?

Aliás, verdade seja dita, quem dita o destino da maioria dos turistas, por estas bandas, é mais a TUI do que o oferecido nos locais onde desembarcam. Os turistas são, essencialmente, do operador turístico TUI, que, praticamente, os leva para onde lhe convier.

Acredito que o objetivo da medida seja trazer mais turistas para Cabo Verde. Creio que mesmo a tal maioria que desaprova a medida acredita que a ideia seja essa. Mas será esse o melhor caminho?

Para já o Governo está-se vendo confrontado com as reticências da maioria da população que acha que está se vergando demais; com a desconfiança dos dirigentes europeus que estarão com a pulga atrás da orelha, pensando que a decisão pode trazer água no bico; com as críticas de muito boa gente que acha que a medida resulta de algum chico-espertismo que acredita que se der hoje, quem sabe, ano que vem, receberá, em troca, alguma reciprocidade, digamos, simétrica.

E, vamos e venhamos, será de bom tom um Governo fazer um tal grau de cedências a partir de 2019, altura em que lhe sobrarão apenas 2/5 do mandato? Se se tratasse de uma questão coberta (ou cobrível) por um pacto de regime, certamente. Mas uma medida tão fraturante?! Uma medida cujo alcance ainda 3/5 da população não conseguiu descortinar?!

Vamos pôr a questão em cima da mesa, desta feita? Comunicar melhor, assim a modos do povão (enquanto comitente) compreender o que o Governo (enquanto comissário) persegue? E, quem sabe, a explicação resulte tão cristalina que se acabe chegando mesmo a um pacto de regime sobre a questão…

Reciprocidade simétrica é utopia. Contraste não tem vez (afinal, estes dez grãozinhos de terra não foram tomados na guerra, foram dádiva de Deus – Jotamonte dixit), já que não estamos sendo rendidos. Provincianismo também não que a dúvida é razoável.

O que vai sendo preciso é respeitar mais e comunicar melhor. Accountability..


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 859 de 16 de Maio de 2018.

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Autoria:António Ludgero Correia,23 mai 2018 7:25

Editado porAndre Amaral  em  23 mai 2018 8:37

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