Ar livre: Na loja do alfarrabista

PorEurídice Monteiro,29 mai 2018 7:00

​Era um homem de fino trato e com faro para comércio. Sondou tudo que houvesse em termos de novidades, desde sementes e aguardente, que chegavam de Santo Antão e São Nicolau, às mercadorias importadas da Inglaterra. Pensou em montar uma loja igual a uma que viu nessa cidade.

Até perto das quatro, estava tudo indo bem. Pouco tempo antes de morrer de velhice na casinha de um dos filhos à beira-mar, lembrava-se ainda de como se tinha deslumbrado com tantas novidades ao calcorrear tão poucos palmos de chão. Não fosse uma beldade a atravessar no seu caminho naquela precisa hora, ali pela rua da Praia de Bote, teria tempo para comprar toda a cidade do Mindelo por meio tostão. Apercebeu-se de que a rapariga estava um pouco entediada. Ela tinha ares de campesina, olhos meigos de andorinha e cheirava a flores do campo. Memé perdeu os passos na calçada, aproximou-se e puxou conversa. «Homem é como leão; tem de ir à caça», assim pensava ele. Não descurava os galanteios. Soltava toda a inspiração na língua que lhe ocorresse.

Já estava a entardecer aos bocados. A rapariga aceitou ir com ele até uma outra rua, porque Memé mostrou interesse em comprar livros de poesia. Ela não sabia o que era poesia, mas já tinha visto uma montra com livros empilhados.

Vaguearam a sós, pelas ruas da cidade até entrarem na loja de antiguidades. Um homem de baixa estatura, trigueiro, de olhos grandes de um azul de mar, com cabelos fartos e barbas grisalhas, estava sentado numa espreguiçadeira de figueira a fumar canhoto. No outro lado do balcão da loja, em cima da escrivaninha, havia indícios de que fosse escritor o homem ali sentado. Memé não hesitou. Quis saber se o lojista era poeta.

— Já fui professor, em ou-tras alturas. Faz tempo que não sou nada.

O velho professor e livreiro era homem de muita leitura. Sr. Arsénio não sabia falar de outra coisa que não fosse dos livros. Já os tinha lido a todos e outros que já não lá estavam. Ele teve tempo de mundo para a leitura. Nos seus olhos grandes do azul de mar enxergavam-se as marcas de leitor compulsivo. Tinha vivas lembranças das cenas relatadas em muitos dos livros expostos. Pena que ele já não tinha tempo sem conta para reler todos os que desejava. Isso cortava-lhe a respiração. Levantandose de mansinho do cadeirão, dava voltas dentro da loja, com as mãos atrás das costas, ora gesticulando, ora recintando um ou outro verso clássico. Do lado de fora da janela, Tanha olhava para dentro da loja, onde nada via com grande interesse lá dentro, excepto uma escova de cabelo e um espelho de mulher.

Era uma loja de serventias, embora tivesse livros antigos à venda.

— Eu não sou alfarrabista. Só estou a desfazer-me destes livros que possuo há mais de quarenta anos. Sempre tive uma lojinha. Agora, também vendo livros. Se não for eu a vendê-los, quando morrer serão os meus filhos a queimá-los. Eu bem sei! Já ninguém dá valor aos livros.

— Quanto custa este?

— Não está à venda! Não me desfaço deste manuscrito, escrito pelo punho de um dos intelectuais de espírito superior. Jardim das Hespérides é uma raridade. Além disso, tem o autógrafo do poeta e amigo José Lopes.

Sr. Arsénio observou de soslaio o visitante de porte altivo e bemfalante.

— E este?

— É um livro que, infeliz-mente, também não vendo: Odisseia de Homero. Não há muitas pessoas em Cabo Verde que o conheçam.

Era já pouco dissimulada a clivagem social entre ilhas, assim como entre o meio urbano-portuário e o mundo rural. Porém, com o faro que tinha para comércio, Memé não deu importância ao gesto enfadado do Sr. Arsénio e pensou que se tratava de um comportamento típico na idade dele, pois, desde menino, aprendeu a respeitar aos mais velhos, fossem ricos ou pobres, letrados ou analfabetos, homens ou mulheres, ilhéus ou estrangeiros. Ele sabia muito bem que os velhos não se desapegavam das suas tralhas e retalhos com facilidade, de maneira que resolveu mudar de táctica. Começou a falar de epopeias, citando poetas da Literatura Grega clássica. Deu-se lugar a uma cavaqueira entre bons amantes da arte maior. Na verdade, entre os dois não houve, nem no início, lugar a uma aberta hostilidade, até porque, apesar da sobranceria de citadino de gema, Sr. Arsénio era republicano convicto desde a primeira hora; da mesma forma que o ainda jovem Memé, apesar de frontal e temperamental, era esperto o suficiente para ter consciência de que era vital pensar antes de agir. Não era preciso estar sempre a repetir quem ele era, donde viera, nem de quem era filho. Depois de duas conversas, se o interlocutor não se deixasse ludibriar pelo preconceito da cor, dava conta de que estava perante um distinto cavalheiro com a formação cívica que lhe possibilitava a condição de filho legítimo de um padre e, como tal, iniciado nas primeiras letras e na doutrina católica desde a tenra idade.

— Tem um livro de poesia que me possa vender?

— Claro que tenho!

— Quero um... e mais outro.

— São para si?

— Para mim e para a minha amiga.

O professor sorriu.

— Vê-se logo que ela não sabe ler. A mulher do povo nasce com o destino torto; não lhe é dado o direito de estudar. É rara a mulher que sabe ler e escrever.

— Vai aprender a ler, caso o senhor me entenda.

— Vejo que sim.

Sr. Arsénio fez uma radiografia instantânea à Tanha. Na altura, havia muitas raparigas desafortunadas das aldeias montanhosas de Santo Antão a deambularem-se no anonimato do Mindelo. Inspeccionando-a da cabeça aos pés, Tanha era bonita, fosse qual fosse o conceito de beleza. De porte era demasiado alta para a estatura do Sr. Arsénio, mas à medida do Memé. De corpo delgado, olhos ternurentos e pele em tom de tâmara. O cabelo era ondulado e descaía-lhe pelo ombro, o que muito apreciava a rapaziada.

Desde que Tanha rumou à ilha de Santiago com Memé, jamais regressou à terra natal. Eram tempos difíceis, a fome andava à espreita em todas as esquinas. Não havia como pensar duas vezes, nem como voltar atrás. Ainda que não tivesse a estatura social nem a fortuna das antigas morgadas de Santiago, ou da gente abastada da época, Tanha encontrou o seu lugar na sociedade rural santiaguense. Os dois mudaram-se para a vila, onde montaram comércio e prosperaram.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 860de 23 de Maio de 2018.

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Memé

Autoria:Eurídice Monteiro,29 mai 2018 7:00

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  29 mai 2018 7:00

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