“As mulheres não casam com os homens, casam com os sonhos dos homens (…). As mulheres não têm tempo para sonhar (…) são uma encruzilhada de vidas e têm que se manter acordadas, atentas a todas essas vidas que passam em si” – Personagem Maria Josefa, in O Senhor das Ilhas, 1994, pg. 21
A vida do mar sempre foi para homens de barba rija e mãos grandes e calejadas.
As mulheres, que não enfrentavam o mar, viviam os seus efeitos – anseios, frustrações, perdas, amores e desamores… E sendo repositórios das memórias, registavam as estórias dos pais, dos maridos, dos filhos… preservando-as.
Metaforicamente, os homens entregam-se ao mar, casam-se com o mar, e as mulheres também, grávidas, carregam o mar, fonte da vida, dentro de si. O mar não os separa, não os dissocia, estão unidos pela água: eles, à volta da água, e elas, com a água dentro de si próprias.
Sempre foi assim e Maria Isabel Barreno (Lisboa, 1939 – 2016) não foi excepção, apenas com a diferença que ela decidiu, ou melhor, sentiu necessidade ou foi levada a escrever a estória da família e da figura lendária de Antonio Manoel Martins (Braga, 1772 – Boa Vista, 1845), homem intrépido que foi Deputado às Cortes, Cônsul e Prefeito da Província de Cabo Verde, entre outras coisas.
Estórias no Feminino
“Porque não escreve a senhora minha mãe?, perguntei-lhe, já mais que uma vez. (…) Escreverás tu, Manuel Maria, diz, herdaste de mim esse talento” (pg. 22).
Escritora consagrada nas letras portuguesas, a projecção literária de Maria Isabel Barreno deveu-se principalmente às Novas Cartas Portuguesas (1972), livro escrito em parceria com Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa nos últimos anos do Estado Novo. Com os romances O Senhor das Ilhas (1994) e Vozes do Vento (2009) Maria Isabel Barreno inscreve-se na História da Literatura Cabo-verdiana como escritora de temática cabo-verdiana com uma saga colonial em Cabo Verde, “um século em busca de identidade”.
Os dois romances fazem ressuscitar a história de várias gerações de uma família colonial portuguesa, o clã Martins. Trata-se de uma crónica de família em formato de romance histórico – se bem que a autora a considere tratar-se “basicamente de um romance” e não de um romance histórico, embora “boa parte seja mesmo uma verdade histórica” – sobre a colonização de Cabo Verde durante os séculos XVIII e XIX. Como o primeiro título indica, a obra presta especial atenção à figura do colono, o patriarca Manuel Antonio Martins, que, na realidade, era trisavô de Maria Isabel Barreno.
Sal-rey
“… vejo alguns homens varridos pelas ondas, atirados pela borda fora, amaldiçoando o mar antes de morrerem com os pulmões cheios de água. Avidamente inspiram umas últimas golfadas que agitadamente os mata. O barco tem o leme partido, as velas esfarrapadas, um mastro derrubado. (…) Subitamente cala-se o vento, como num milagre bíblico” (pg. 28).
Manoel Antonio Martins dá à costa e chega às praias da Boa Vista em 1792, devido a um naufrágio, onde iniciou uma exploração de sal, tão magnífico sal que haveria de chamar-se “sal-rey” e dar nome ao sítio, dantes conhecido como Porto do Inglês, segundo o escritor Germano Almeida.
“[Maria Josefa] Seguiu praia fora, descalça, curiosa e humanitária. Tinha então quinze anos; e apesar de mais nova do que a irmã, era ela quem se ocupava do governo da casa desde a morte de sua mãe” (pg. 32).
“Ainda ele [Antonio Manoel Martins] não recobrara os sentidos, e já ela se apaixonara por ele, com a agilidade emocional dos quinze anos. (…). E apaixonou-se [Antonio Manoel Martins] nesse primeiro olhar que lançou a Maria Josefa” (pg. 33).
“Ainda não era rico quando pediu Maria Josefa em casamento” (pg. 47).
Seguiu-se um estória de mais de cinquenta anos daquele que viria a ser “o senhor das ilhas”.
No Sal, a ilha à qual ele deu a sua alma, está o mausoléu de Manoel Antonio Martins.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 861 de 30 de Maio de 2018.