Tudo isso levou a que os irmãos William e Harry, ficassem desde tenra idade mais sujeitos aos holofotes dos media.
Sou daqueles que antigamente não percebia como é possível ainda existirem reis, rainhas e famílias reais nos tempos actuais. Quando cheguei à Universidade do Algarve para estudar na década de 80 do século passado, tive o meu primeiro contacto com um colega que era monárquico. Vindo de um regime autocrático, onde apenas existia um partido político que era luz e guia da nação Verdiana, tive um choque civilizacional ao chegar e ser levado logo para comícios políticos nas vésperas das eleições presidenciais que conduziriam Mário Soares à Presidência da Republica portuguesa. Lembro-me como se fosse hoje da multidão a gritar “Soares é fixe” e eu, que nunca tinha tido uma participação “democrática”, todo extasiado com aquele ambiente.
O meu colega monárquico, vindo de Viseu (terra de antepassados meus), era amiúde gozado pela malta. Uma vez saiu-se com esta, que deixou toda a gente muda: “tirando a Alemanha e França, todos os países desenvolvidos europeus são monarquias”. Portugal tinha acabado de aderir à CEE e por isso o benchmarking na altura era o Velho Continente (os nossos irmãos portugueses nunca se tinham sentido tão europeus ao longo da História…).
Lembro-me de ter visto a desfilar na minha mente todos os países europeus na altura desenvolvidos: Noruega, Suécia, Dinamarca, Holanda, Bélgica, Reino Unido, todos conservando os seus reis, rainhas e príncipes! Não é que o nosso colega monárquico tinha razão!
Foi aí que percebi que afinal não eram precisas revoluções para fazer desenvolver os países, alguns tinham preferido uma simples Evolução no lugar de alguma Revolução…
Mesmo assim, continuei como dantes a considerar como fait-divers tudo o que tivesse a ver com realezas e a fazer parte dos que consideravam as vidas dessa gente privilegiada, e que se diz terem sangue azul a correr nas veias, como contos de fadas. Ainda me lembro do furor mediático que foi o casamento do Príncipe Carlos e Diana. Eu fui dos que não assistiu ao casamento na TV, porque achei que tinha coisas mais importantes para fazer em plena adolescência.
Até que tive a oportunidade de viver em Inglaterra. Aí percebi o quanto estava enganado! A importância institucional da realeza no Reino Unido é qualquer coisa que só vivendo lá para se perceber. E não vale a pena insistir em juízos de valor sobre o facto de uma sociedade tão moderna como a britânica, das mais pujantes e inovadoras do planeta, continuar a adular a sua família real e a viver intensamente tudo o que tem a ver com os seus membros.
Foi, aliás, após a fantástica festa dedicada aos 60 anos de reinado da Rainha Isabel II que escrevi a minha primeira crónica, que foi publicada neste jornal, o que não deixa de ser sintomático.
Outro erro é pensar que os membros da família real são príncipes e dondocas e que levam uma vida fácil! Muito pelo contrário, possuem vidas tão atarefadas e plenas de compromissos sociais, que certamente trocariam a deles pela vida mais pacata da maioria dos seus súbditos. Pelo menos no que toca à privacidade, não tenho dúvidas que terão inveja do comum dos cidadãos.
O casamento de Harry e Meghan teve um sabor mais apimentado, para além do habitual nestes grandes eventos. A noiva era divorciada, estrangeira (leia-se americana), e heresia das heresias, mulata, ou seja, com sangue mestiço!!!
A imprensa britânica descreveu Meghan como sendo mixed-race, uma das formas habituais dos anglo-saxónicos designarem as pessoas mestiças. Filha de pai considerado branco e mãe considerada negra, a bonita noiva foi considerada por cá como sendo de raça negra!
Não deixa de ser intrigante que num país mestiço como o nosso, esteja a ganhar terreno (sobretudo entre os jovens) esta forma de designar as pessoas que resultam da mistura das chamadas raças brancas e negras. Tenho assistido com alguma perplexidade à forma calorosa como esta questão é hoje debatida. Amiúde pergunto: como é possível a mistura de negro e branco resultar em negro?! Por que razão não se diz também que as pessoas mestiças são de raça branca? Que é, aliás, a forma como os nossos irmãos dos países da África subsariana nos consideram.
Esta insistência recente dos crioulos cabo-verdianos, mestiços produto da primeira nação totalmente mestiça do pós-Descobrimentos de que são (apenas) raça negra é qualquer coisa que precisa de um estudo aprofundado e de um combate frontal.
Ao invés de insistirmos que somos o somatório de civilizações africanas e europeias e por esse motivo sermos algo novo, uma nova identidade, a primeira nação do Novo Mundo, o pessoal continua agarrado à fantasia ideológica e geográfica de uma suposta identidade africana que relega para segundo plano a enorme contribuição que a Europa e os europeus deram a este pequeno país.
Voltando à novel princesa britânica, o facto de uma mulata passar a fazer parte da família britânica não deixa de ser uma novidade que muitos poderiam pensar não ser possível, mesmo nos dias de hoje. Mas será que é realmente uma novidade?
Entre 2013 e 2014 escrevi cinco crónicas intituladas “Crioulos Europeus” em que trouxe o assunto da antiga mistura de raças na Europa, sobretudo nos países do Sul do Velho Continente. Normalmente quando se aborda este tema, as pessoas fazem coro sobre a presença dos mouros na Península Ibérica. Só que existiu uma vaga de mestiçagem entre europeus e escravos negros vindos de África que foi (acho eu) deliberadamente escondida ao longo dos séculos.
A entrada de escravos negros na Europa começou muito antes dos “Descobrimentos”, através do tráfico negreiro através do deserto do Sahara desde 1.000 a.C., primeiro conduzido pelos cartagineses e árabes e depois pelos árabes.
Em Espanha e Portugal várias cidades chegaram a ter populações significativas de negros e mestiços, como comprovam vários relatos da época.
Recuperemos este elucidativo parágrafo de umas dessas crónicas: “Era assim em toda a Península Ibérica como descreve outro viajante inglês, Richard Twiss, que depois de passar por Lisboa em 1772/73, cidade onde segundo ele “um quinto dos seus habitantes era composta de pretos, mulatos e de várias nuances entre o branco e o preto”, copiou em Málaga, Espanha, dezasseis legendas de painéis que mostravam diferentes tipos de mestiços: mulato, cruzamento de branco espanhol com negro; morisco, espanhol com mulata; alvino, morisco com espanhol; lobo, negro com índio; sambaigo, lobo com índio; cambujo, sambaigo com mulato; albarassado, cambujo com mulato; barzino, albarassado com mulato; negro de cabelo liso, barzino com mulato”.
Na Inglaterra há relatos de no século XVIII haver mais de 10-15 mil escravos libertos e 5 mil em França, que nunca mais saíram de lá e se misturam na população.
Na sequência do badalado casamento real de Meghan e Harry, circulou na internet um artigo com o título “Britain’s black queen: Will Meghan Markle really be the first mixed-race royal?”, que cita que certos historiadores afirmam que a princesa alemã Charlotte, que se casou com o Rei Jorge III de Inglaterra, e com o qual teve 15 filhos (!), tinha ascendência africana nos dois lados da sua família. Essa princesa seria descendente de Afonso III de Portugal e da sua concubina negra Ouruana.
Ao que parece a rainha Charlotte foi descrita ao longo dos tempos como tendo “a true mulato face”, aspecto “negroid”. Um Sir Walter Scott descreveu-a como sendo “ill-colored” e chamou aos seus filhos “a bunch of ill-colored orangutans”, mimos que não enganam.
Mais recentemente, em 1999, o afamado London Sunday Times terá publicado um artigo intitulado “REVEALED: THE QUEEN’S BLACK ANCESTORS”, referindo-se ao facto de a actual rainha ser bisneta de Charlotte que morreu em 1818. Segundo o artigo, um porta-voz da família real nunca desmentiu os rumores, mencionado apenas que tinham coisas mais importantes para se preocuparem.
Não deixa de ser irónico que a cidade americana de Charlottesville, tristemente célebre pelos conflitos raciais recentes, tenha sido batizada em honra da Rainha Charlotte, que segundo o artigo, era muito venerada pelas populações negras das colónias britânicas que se reconheciam nela devido ao seu aspecto.
Quando deixei Inglaterra há uns anos, foi publicado um artigo que revelava que mais de 50% das crianças de Londres tem como língua materna uma língua diferente da inglesa. As sociedades modernas caminham nesse sentido de um verdadeiro cosmopolitismo.
Os ingleses parecem não se importar com isso. Ao fim e ao cabo sabem que andaram pelo mundo fora e que é normal que “The Empire strikes back”. O facto de passarem a ter uma linda princesa mulata só reforça a representatividade dessa sociedade cada vez mais multirracial.
Até porque a mestiçagem entre os “famosos” europeus não é nada de novo. Recupero mais algumas menções anteriores: Napoleão desposou uma crioula vinda da Martinica, o escritor francês Alexandre Dumas, autor de “Os Três Mosqueteiros”, era neto de um marquês e de uma escrava negra vinda do Haiti; Alexander Pushkin, reconhecido como o pai da moderna literatura russa e o maior poeta russo tinha ascendência africana e ainda tem descendentes vivos na aristocracia inglesa. Outros mestiços famosos que falavam português: Padre António Vieira, Marquês de Pombal e José Almada Negreiros.
Famosos ou menos famosos, lá no fundo, como sabemos, todos viemos da Mãe África, uns há mais tempo do que outros.
É caso para dizer. So what?!