As manifestações literárias das ilhas constituem, a nosso ver, uma metáfora do corpo humano:
Cabeça no Mundo
Ancorados em Cabo Verde, os nossos primeiros escritores olharam para a África e para a Europa.
Andre Donelha, português que vivia em Cabo Verde, com a obra Descrição da Serra Leoa e dos rios da Guiné do Cabo Verde, 1625(Junta Investigação Científica do Ultramar, Lisboa, 1977).
Prevaleciam nesta época os aspectos estético-formais e temáticos do Neoclassicismo (1756-1825) e do Romantismo (1825-1865) Português, parti-cularmente da última fase deste, o ultra-romantismo, cultivado tardiamente em Cabo Verde, em que se fez sentir o peso e a influência do Seminário-Liceu de S. Nicolau, fundado em 1866.
O discurso é caracterizado, por um lado, por ser decalcado do português vernáculo, sendo a norma seguida a de Portugal, e, por outro, por um crioulo castiço, na decorrência da exaltação dos valores crioulos promovidos pelos nativistas.
Pés na Terra
Os escritores que se seguiram olharam para outras latitudes.
Neste período, o discurso é da ruptura e da reelaboração de linguagem, num hibridismo do crioulo com o português falado, uma linguagem consentânea com o tipo de mensagem a que se propunham.
Escritores como António Aurélio Gonçalves, Jorge Vera-Cruz Barbosa, Baltasar Lopes da Silva, com o pseudónimo “Osvaldo Alcântara”, Henrique Teixeira de Sousa, entre outros, nascidos entre 1900 e 1920.
Punhos Cerrados
Os escritores posteriores redefiniram o seu foco.
Nesta fase os escritores vão levar até às últimas consequências o discurso linguístico ensaiado pelos claridosos em que recorrem a um código linguístico cheio de interferências, de misturas e de alternâncias com o crioulo.
Escritores como Aguinaldo da Fonseca, Gabriel Lopes da Silva Mariano, Ovídio de Sousa Martins, Onésimo Silveira, nascidos entre 1920 e 1930.
Peito Aberto e Mãos Estendidas
A geração do pós-independência é já mais universalista.
O discurso é, num primeiro momento, de renovação e de exaltação da índole crioula em múltiplas expressões (entre elas a língua, enquanto instrumento linguístico privilegiado em todas as esferas da comunicação, incluindo a literária) e, posteriormente, de acalmia na manifestação do nacionalismo, abrindo-se, então, para o mundo.
Esses escritores assumem o português como uma língua literária própria, interiorizando-o sem complexos, trabalhando-o no máximo da sua potencialidade, sem deixar de fazer uso da sua língua materna na sua produção literária. De referir, contudo, que existe uma ala de escritores, particularmente os da ilha de Santiago, que tem optado por escrever quase exclusivamente na língua cabo-verdiana.
Escritores como Corsino Fortes, João Manuel Varela, com os heterónimos João Vário, Timóteo Tio Tiofe e G. T. Didial, Oswaldo Osório, Arménio Vieira, Dina Salústio, Germano Almeida, Jorge Carlos Fonseca, Vera Duarte – para me referir a alguns nascidos entre 1930 e 1960 – José Luís Hopffer Almada, Filinto Elísio Silva, Vadinho Velhinho, José Luiz Tavares, Margarida Fontes, sem pretender ser exaustivo – nascidos depois de 1960.
Em síntese, ainda antes de haver o conceito de literatura-mundo, mais ou menos recente, as elites literárias cabo-verdianas estabeleceram o diálogo com o mundo e desenvolveram a intertextualidade com a literatura do mundo.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 865 de 27 de Junho de 2018.