Instalado naquela pitoresca aldeia boavistense de atração turística, de resto, conhecida, no passado, pela sua forte tradição musical, o pai abraça, de imediato, a pesca, como actividade profissional principal, mas, acto contínuo, por exigência da própria vida rural, desdobra-se em atividades paralelas ligadas à pequena agricultura, à criação de gado e, ainda, à carpintaria. Entretanto, antes de constituir família, o pai João António emigrara duas vezes consecutivas para os Estados Unidos da América, em 1925, por ocasião da pesca dos cetáceos, para curtas estadias, mas sem sucesso digno de registo.
Santantonense de gema, agricultor de sequeiro e, sobretudo, pescador, o progenitor ocupa os seus últimos de vida com uma merada (hortazinha), que não lhe dava quaisquer proventos, é certo, e falece aos 74 anos, depois de ter perdido, definitivamente, os laços umbilicais com a terra que o viu nascer. A mãe de Eutrópio, D. Maria Lima da Cruz (1905-1985), também, natural da Povoação Velha, a escassos quilómetros da encantadora praia da Santa Mónica, onde viria a morrer aos 80 anos, dedicava-se às lides domésticas e cuidava da horta familiar.
Aos cinco anos, Lima da Cruz, oriundo de uma família profundamente católica, é baptizado na Vila do Sal- Rei, sede do Concelho de uma das ilhas mais planas e próximas do continente africano, numa altura em que, esporadicamente, apareciam um ou outro padre na Boa Vista, em missão pastoral. A despeito das limitações próprias do contexto conjuntural de então, Eutrópio, desde tenra idade e com o sangue católico a correr-lhe pelas veias, passa a frequentar a catequese na aldeia da Povoação Velha e, mais tarde, assume a condição de praticante assíduo.
É nessa comunidade boavistense de intérpretes renomados de violão, onde Lima da Cruz, filho-codé, faz, também, os estudos primários, com “relativo desafogo básico”, rumando, posteriormente, para a cidade da Praia, onde iniciaria o ensino secundário. Imbuído de convicções marcadamente cristãs interiorizadas, ao longo de um demorado processo de socialização religiosa na sua comunidade de origem, Eutrópio matricula-se no Seminário de S. José, Praia, em 1960, onde frequenta os Estudos Gerais e de Filosofia, aprende os primeiros acordes e ganha, decisivamente, o gosto pela música. Mais tarde, em 1968, terminados os Estudos Gerais no Seminário de S. José, frequenta o Curso de Teologia no Seminário Maior de Leiria, até 1972, onde aprofunda “um pouco” as bases musicais que levara da Praia e ganha, ao mesmo tempo, o gosto pela música clássica, através do seu professor Carlos Silva, de naturalidade portuguesa. Entretanto, de regresso a Cabo Verde, inicia, no mesmo ano de 1972, o exercício do sacerdócio católico e, ao mesmo tempo, é professor da referida instituição de formação religiosa.
Enquanto desempenha o cargo de sacerdote católico, leciona, no Liceu da Praia, entre 1972 e 1975, a unidade curricular de Religião e Moral, cuja presença se justifica, hoje em dia, na escola pública, na perspetiva crítica do antigo sacerdote da Povoação Velha, a despeito da modernidade e do laicismo do Estado de Direito cabo-verdiano. Perante a avalanche de confissões e seitas, no país, num quadro de pluralismo religioso consagrado na Constituição da República de Cabo Verde (CRCV), Eutrópio advoga a introdução da cadeira da Religião e Moral na escola pública, ou, então, “se não se não se quiser a religião, pelo menos que se introduzam as formações humanísticas consolidadas, que transmitam valores e criem convicções, nas pessoas”. Mais do que nunca, diante do “vazio enorme na sociedade cabo-verdiana”, prossegue Lima da Cruz, em jeito de remate, “a nossa juventude precisa de propostas de sistemas de valores”.
No exercício da nobre função docente, leciona a cadeira de música na Escola do Magistério Primário, de 1974 a 1976, cujo objetivo fundamental “era incutir nos professores o gosto pela música (…) e transmiti-lo aos às crianças, através das bases teóricas, e de um cancioneiro próprio”. Pretendendo estender o ensino e a aprendizagem da música à sociedade praiense, Lima da Cruz cria, em 1974, por iniciativa própria, o Orfeão-Clube Juvenil (Praia), que se prolongaria até 1977, projeto de natureza polivalente (música coral, peças de teatro, etc.) que, seria, no entanto, retomado em finais dos anos 90.
Ocupando, sempre, cargos de destaque na hierarquia da Igreja Católica cabo-verdiana, é nomeado, em 1975, Reitor do Seminário de S. José, até 1977, ano em que passa a frequentar a Licenciatura em Teologia Pastoral pela Pontifícia Universidade Lateranense de Roma, durante dois anos sucessivos, na linha do aprofundamento de matérias específicas ligadas à sua formação eclesiástica e à capacitação ministerial. Entretanto, em 1981, quando nada o previa, o Padre Eutrópio, nome por que era carinhosamente conhecido pelos fiéis católicos da Praia, resolve abandonar, definitivamente, o sacerdócio, por “razões meramente pessoais”, e vai trabalhar no Ministério dos Desenvolvimento Rural (MDR) como Assessor do então Ministro João Pereira Silva, sem, contudo, entrar em colisão com a cúpula da Igreja Católica. Pelo contrário, para o antigo pároco da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Graça (Praia), “não há conflito, não há rutura com a Igreja, foi uma decisão minha irreversível”, tanto é assim que “vou contribuindo, sempre que solicitado.”
Naturalmente, depois de uma vida regrada, ancorada em valores e códigos de vida, próprios e de entrega inequívoca ao exercício do sacerdócio, ao longo de 9 anos sucessivos, granjeando o respeito e o carinho dos fiéis católicos da Paróquia da Praia, a adaptação na vida fora da Igrejanão terá sido fácil para Lima da Cruz, que, pela primeira vez, trabalhava, na Administração Pública. “Foi algo difícil, porque tive que fazer uma reaprendizagem de quase tudo. Eu sabia só fazer aquilo para que me havia formado. O resto, tive que aprender”. Livre das amarras das normas e regras da Igreja, desempenha, a partir de 1981, vários cargos relevantes ligados ao poder do Estado, com realce, particularmente, para os sectores legislativo e autárquico e, já na recta final do rico percurso laboral, aposenta-se em 2011, passando a dedicar-se “bastante do meu tempo, em casa”, à produção da música sinfónica, além de apoiar a Paróquia da Cidade Velha, na área pastoral e no serviço religioso.
Procurando dar o melhor de si próprio, em prol da música cabo-verdiana, independentemente da sua natureza sacra ou secular, Eutrópio Lima da Cruz, casado, pai de trêsfilhos, cultor da música erudita e, também, escritor (duas obras literárias publicadas em1999 e 2017), ensina música no Seminário de S. José, orienta ensaios do grupo paroquial de Nossa Senhora da Graça e, sob proposta dos antigos orfeonistas, cria o Orfeão da Praia, em Janeiro de 2009, desta feita ligado exclusivamente à dimensão coral. Todavia, depois de várias participações em concertos, dentro e fora do país, e em festivais de coros internacionais, com sucesso notável, o Maestro Lima da Cruz, inconformado com o rumo das coisas, abandona o Orfeão, a 12 de Junho de 2017, alegando fraca participação dos orfeonistas nos ensaios de canto.