A trajectória musical de Eutrópio Lima da Cruz (parteII)

PorCésar Monteiro,18 jul 2018 6:59

​O processo de socialização musical de Eutrópio Lima da Cruz não ocorre em contexto familiar, como é prática habitual, mas viria a iniciar-se, já numa fase posterior da sua vida, na cidade da Praia, em 1960, quando frequenta, no Seminário de José, durante oito anos consecutivos, os Estudos Gerais e de Filosofia.

 Na infância, na Povoação Velha, Eutrópio cresce num ambiente de interconhecimento fortemente rodeado pela música, onde se avultam, a partir dos anos quarenta, entre grandes intérpretes de instrumentos de corda, o violonista Luís Rendall (1898-1986), natural da ilha de São Vicente; o violinista João Severo, também ele sanvicentino, falecido em 1978, coetâneo de Luís Rendall e aluno de música do maestro José Alves dos Reis e; ainda, o violonista Tazinho (1932-2018), natural da Povoação Velha.

Sobrinho, por afinidade, do maestro Luís Rendall, tocador de pauta e figura ímpar da cultura musical cabo-verdiana, Lima da Cruz frequenta, desde os sete anos de idade, “ainda que à distância”, o contagiante e fortemente ambiente musical, que marca profundamente, no passado, aquela comunidade rural da Povoação Velha. É certo que, na altura, havia, na ilha, outras comunidades musicais boavistenses, como o Rabil (centro da ilha), ou Fundo das Figueiras (norte da ilha), herança do Padre Porfírio Pereira Tavares (1868-1949), compositor, instrumentista, pai do Presidente Aristides Pereira e compadre de Luís Rendall, que dava aluas de música na Povoação Velha. Arrastados pelas circunstâncias conjunturais e por trás das principais referências musicais locais, perfilam-se, na Povoação Velha, cantadeiras e “tocadores de tudo, que transmitem à pequenada conhecimentos musicais e se mobiliza por curiosidade e ‘tchefreza’ (atrevimento), tal como se dizia”, na gíria local.

Na prática, domina nos principais povoados Boa Vista, pelo menos até à década de 60, um sistema informal de aprendizagem musical, através de tocatinas e de bailes, considerados os grandes momentos de referência musical e protagonizados pelos chamados “tocadores de sala de baile” e “tocadores aprendizes”. Entretanto, o surto da emigração para o estrangeiro, que se inicia em finais dos anos 50 e inícios da década seguinte, “escangalha tudo” e a Povoação Velha perde, definitivamente, o estatuto de comunidade fortemente musical. Na verdade, é no Seminário de S. José onde, a partir do limiar dos anos 60, ocorre o processo de aprendizagem formal da música de Lima da Cruz, a par da sua formação sacerdotal, já num contexto urbano dominado, do ponto de vista musical, pela informalidade e, em especial, pelas “tocatinas e serenatas espontâneas”, instituição cultural hoje em dia em vias de desaparecimento. De facto, os seus primeiros acordes musicais com o harmónio (órgão de foles) ocorrem no Seminário, numa altura em que não havia órgão eléctrico e, a partir daí, Eutrópio ganha, decisivamente, o gosto pela música, enquanto ferramenta útil de socialização, cujo conhecimento viria a aprofundar, já de forma sistemática e sistematizada, durante a sua permanência definitiva naquela instituição de ensino de vocação religiosa sob a orientação de vários professores portugueses de música.

Os “conhecimentos musicais básicos que adquire, na Praia, viriam a ser reforçados, mais tarde, no Seminário Maior de Leiria, a partir de 1968, em Portugal, no Curso de Teologia, mas “naquele sistema de uma aula por semana, o básico para o sacerdote orientar os cultos religiosos e ter a música litúrgica em dia”. Eutrópio, que não se considera bom cantor, nem bom executante de violão, sente-se ligado à música litúrgica, desde a sua infância, reforçada, depois, com a sua entrada no Seminário de S. José, aos 10 anos de idade, mas, do ponto de vista de aprendizagem formal, a sua ligação inicia-se, propriamente, com o exercício do sacerdócio, ainda aos 22 anos de idade.

A despeito da autonomia tanto da música sacra ou cristã, cuja tradição antiquíssima remonta ao próprio fenómeno da religião, quanto da dita música secular, tem-se verificado, mormente a partir de Julho de 1975, data da independência nacional, um interessante processo penetração da música secular ou profana no interior da Igreja Católica. Com efeito, nas últimas décadas, tem-se assistido àquilo que alguns evangelistas apelidam de “processo de adaptação” aos ventos da modernidade, um “assumir dos tempos novos”, através, designadamente, da penetração de novos ritmos sonoros, se bem que a incorporação de instrumentos musicais nos cultos religiosos, como o acordeão, o órgão e o violão, não seja novidade. Na Povoação Velha, por exemplo, “nos finais dos anos 50, mais precisamente entre 1956 e 1957, Luís Rendall, João Severo e outros tocadores, que andavam à volta do padre, acompanhavam a música litúrgica, nas festividades religiosas locais, com clarinete e violino e outros instrumentos musicais”, respeitando, em todo o caso, as balizas, a linguagem, a compostura, enfim, os valores e os grandes princípios que norteiam a Igreja.

À semelhança de outras instituições Evangélicas, a Igreja Católica tem assumido, ao longo dos tempos, um papel fulcral no ensino da música em Cabo Verde, “a partir, sobretudo, dos anos 60, através dos coros paroquiais, do próprio Seminário, na Praia, e, ainda, dos Salesianos, em Mindelo, que moldaram toda uma geração de pessoas donde saíram grandes valores na música como o Paulino Vieira e outros”. Destacadas figuras musicais sobejamente conhecidas na sociedade cabo-verdiana “nasceram e cresceram à sombra da Igreja” como, em S. Domingos, o grande compositor e intérprete Ano Nobo (1933-2004), que“aprendeu muito como missionário da Congregação do Espírito Santo com os Padres portugueses Firmino e António”, ou o exímio violonista, Manuel de Candinho. Em Santa Catarina, notabiliza-se, igualmente, o falecido compositor e intérprete, Norberto Tavares, cuja aprendizagem ocorreu na igreja paroquial local, à volta dos padres, como organista e integrante de grupos corais.

Compositor de música instrumental de carácter erudito, Eutrópio Lima da Cruz edita, em 1992, um disco vinil, em formato de LP, intitulado A mi n ta monda, com a produção de Vasco Martins. Mais tarde, em 2001, o músico edita, desta feita, um álbum com dois CD intitulado Ilhas Barrocas,que reúne, no 1º CD, o vinil de 1992 e, no segundo, novas produções musicais. Para lá da discografia editada, a partir da introdução da composição de partitura responsável pela elaboração do som respetivo, num programa informático adequado, Lima da Cruz prepara, entre finais de 2013 e Março de 2014, um trabalho musical baseado em 18 temas musicais do conhecido compositor ultrarromântico, Adalberto Silva (Betú), que envolve toda a gama de instrumentos de uma orquestra moderna. A obra a ser editada, oportunamente, procura patrocínio.

Contudo, não se limitando ao ensino da música no Seminário de S. José, ou ao apoio a grupos corais na paróquia da Praia, Eutrópio Lima da Cruz, no seu tempo livre, produz concertos, sinfonias, música de câmara e música religiosa com tratamento polifónico e orquestral, no estilo de Bach ou Mozart, sem contar com a produção literária, através de dois romances publicados em 1999 (Percurse de sul d´ilha) e 2017 (Degradações e Esperanças), que reforça, afinal, a sua versatilidade artístico-cultural.

(Última parte)


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 867 de 11 de Julho de 2018.

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Autoria:César Monteiro,18 jul 2018 6:59

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  9 abr 2019 23:22

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