Bola de meia

PorEurídice Monteiro,21 jul 2018 9:56

​Coincidência ou não, o facto é que, no dia em que o campeonato mundial de futebol entrava nas meias-finais, assistiu-se à operação internacional de resgate das últimas quatro crianças e do treinador daquela equipa de futebol presos havia já mais de duas semanas dentro de uma caverna inundada na Tailândia. De cartoonistas a simples curiosos, todos concordavam que estes pudessem ser os campeões, os mais corajosos e inspiradores, que o mundo precisava. Depois do resgate, as atenções voltaram-se à copa.

A selecção francesa confirmou o seu favoritismo, derrotando uma Bélgica do bravo Lukaku. Ambas as equipas são expoentes máximos da caça de talentos africanos no particular ambiente do relvado. No caso da Bélgica, de entre os vinte e três jogadores convocados, cerca de uns dez têm origem afro: Romelu Menama Lukaku, Michy Batshuayi e Vincent Kompany são descendentes do Congo; Benteke e Mboyo nasceram propriamente no Congo; Hazard, Fellaini e Nacer Chadli são de origem marroquina, sendo que este último foi até jogador pela selecção marroquina em jogos amigáveis; Dembélé é filho de um maliano. Para além dos protagonistas do relvado, um técnico auxiliar da equipa belga é de ascendência afro-caribenha, o ex-jogador Thierry Henry, campeão do mundo pela França multiétnica de 1998, junto com outros jogadores de ascendência afro, como Zinédine Zidane, Lilian Thuram, Christian Karembeu, Patrick Vieira, Bernard Lama, Marcel Desailly e Bernard Diomède.

França já tinha esse hábito de caçar talentos de todas as origens para as suas trincheiras. Foi campeã do mundo há vinte anos atrás e, recorrendo à mesma fórmula, foi catapultada, uma vez mais, para a fase final do campeonato do mundo. Dos vinte e três jogadores escalados para este mundial, quinze (a maioria) são de origem afro: Kylian Mbappé (Camarões e Argélia); Paul Pogba (Guiné); Samuel Umtiti (Camarões); Lemar (Guadalupe); Djibril Sidibé e N’Golo Kanté (Mali); Blaise Matuidi (Angola e RD Congo); Presnel Kimpembe, Steve Mandanda e Steven N’Zonzi (RD Congo); Adil Rami (Marrocos); Nabil Fekir (Argélia); Benjamin Mendy (Senegal); Corentin Tolisso (Togo); Ousmane Dembelé (Mali e Senegal-Mauritânia).

Vendo para a idade desses jogadores, alguns com menos de vinte e outros tantos com pouco mais de vinte e cinco anos, não se pode descurar dos efeitos que a própria copa de 1998 teve na criação de um imaginário multiétnico e de uma espécie de sonho gaulês, junto dos filhos de imigrantes e, de modo especial, dos de ascendência africana, passando convictamente a acreditar que, se forem craques da bola, poderão ter a possibilidade de ascender ao estrelato e, um dia, defender a bandeira da França na arena internacional. Exemplo disso é o caso de Kanté, que foi catador de lixo, aos sete anos de idade, pelas ruas de Paris, para uma empresa de reciclagem, aquando do campeonato do mundo de 1998, realizada na França, e é agora uma das estrelas da selecção. Da rua às nuvens!

Um outro caso é o de Mbappé, cuja infância foi bafejada pela sorte e, por isso, não deve ter tido uma bola de meia, devido à condição social do seu pai camaronês e da sua mãe argelina, ambos desportistas com alguma consagração. Teve a felicidade de ter nascido no ano em que a França sagrou campeã mundial e ter tido Thierry Henry como um dos seus ídolos, aliás alguém que ele foi conhecer quando era menino de poucos aninhos e por quem manifestava uma profunda admiração. Vinte anos depois, Mbappé e os seus colegas, que cresceram sob os louros das estrelas e veteranos da copa de 1998, não se coibiram de, com todo o profissionalismo e brilhantismo, dar um valente pontapé no focinho do Henry, que na qualidade de técnico auxiliar esteve, por ironia do destino, no outro lado da barricada em defesa da equipa rival, Bélgica. Em todo o caso, Henry teve uma boa copa, já que os belgas ficaram em terceiro lugar e foram aclamados como equipa com maior qualidade técnica do mundial. Outro ídolo de Mbappé é CR7, com quem teve a alegria de partilhar a presença neste mundial e até poderia defrontá-lo, caso a selecção portuguesa tivesse alcançado os quartos de finais.

O orgulho de Mbappé é indisfarçável por fazer parte da selecção francesa de futebol, abdicando dos honorários da copa em prol de causas humanitárias, nomeadamente apoio a crianças hospitalizadas e deficientes, pois não acha certo ser pago para defender o seu próprio país (voltarei a este assunto um pouco mais adiante). Sentindo-se um legítimo filho da França multiétnica, Mbappé é um caso a ser acompanhado nos próximos tempos, não somente por causa das suas qualidades individuais e da possibilidade de se tornar um dos melhores do mundo desta nova era que já se vislumbra no horizonte, mas também pela sua aceitação e popularidade na república francesa, considerando desde já o curioso facto de que, nos dias de hoje, segundo pesquisas de opinião, a maioria dos franceses não se identifica com a actual selecção masculina de futebol, apesar de desfrutar as suas vitórias.

Dos jogadores de ascendência africana neste mundial existe algum relato sobre as acções sociais que desenvolvem. O caso mais mediatizado foi, sem dúvida, o de Mbappé, que decidiu doar os honorários da copa para instituições de solidariedade social, cuja estimativa ronda a vinte mil euros por cada jogo da sua selecção. Sabe-se que outros jogadores da selecção e da equipa técnica da França seguiram o seu gesto e, em conjunto, decidiram doar parte da premiação pela participação na copa. Jogadores de hoje e de ontem têm desenvolvido obras sociais que orgulham o mundo inteiro. Por exemplo, os africanos George Weah, que muita popularidade ganhou no seu país, graças às suas acções cívicas e sociais, tendo recentemente sido eleito Presidente da Libéria; Didier Drogba, promotor de projectos sociais no domínio da saúde, educação e cultura da paz, influenciando o processo de negociação para o fim da guerra civil no seu país; Samuel Eto’o, amigo dos seus amigos e de mãos largas em relação à filantropia. De igual modo, entre os afro-brasileiros existem inúmeros casos de generosidade, a começar pelas obras sociais de Ronaldinho Gaúcho, promotor de projectos desportivos para as crianças e embaixador da UNICEF.

Cristiano Ronaldo, que segundo alguma imprensa a avó (filha de colonos portugueses) teria nascido em solo caboverdiano, foi apontado, pelo menos em 2015, como um dos mais generosos desportistas internacionais perante o drama das pessoas, organizações sociais e sua terra natal (nesse caso, o arquipélago da Madeira, em Portugal). Apesar das extravagâncias e excentricidades que esses astros do futebol praticam, alguns têm vindo a lutar para que os seus nomes sejam incluídos na lista de campeões da solidariedade. Neymar é também um deles, com projectos desportivos e sociais no Brasil, através do instituto que criou para o efeito. Que mantenha firme na sua generosidade, sem quedas desnecessárias! Messi é dono de uma fundação e mentor de projectos educativos e de apoio a pesquisas médicas para salvar muitas vidas.

Ainda fora de África, somente para citar um caso insólito, protagonizado por Mandzukic, jogador croata, que optou por liberalizar a torneirinha, tendo desembolsado mais de trinta e três mil euros para ofertar cervejas de borla à população da sua cidade-natal, Slavonski Brod, de modo a acompanharem algum jogo com a garganta irrigada, até porque o calor já se faz sentir nos recantos croácios.

Voltando à África, também alguns jogadores profissionais crioulos são apontados como craques na solidariedade social, como Rolando, que tem uma escolinha de futebol na ilha de São Vicente, em Cabo Verde; Jorge Andrade, que durante vários anos foi patrocinador de obras sociais no interior da ilha de Santiago, mais precisamente na Calheta, a sua terra natal; Lito, que hoje é o melhor treinador do país, tendo liderado a equipa (Académica da Praia) que este ano conquistou o campeonato nacional de futebol em Cabo Verde.

E agora que o campeão mundial da Rússia já é conhecido, o futebol deixa mais algumas lições. Luka Modrić e Kylian Mbappé simbolizam algo que a Europa e o mundo deviam apreender. Modrić, melhor jogador desta copa, tem um passado de superação da condição de refugiado de guerra; Mbappé, eleito jogador revelação e campeão mundial com golo na final, é filho de emigrantes, pai camaronês e mãe argelina. É preciso dizer mais?

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 868 de 18 de Julho de 2018.

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Autoria:Eurídice Monteiro,21 jul 2018 9:56

Editado porChissana Magalhães  em  21 jul 2018 10:17

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