1. Tido por um dos proeminentes pensadores século XX, o polaco Zygmunt Bauman (1925-2017), desenvolveu o conceito da “modernidade líquida” pelo qual pretendeu pôr em evidência, entre outras coisas, que nos dias de hoje tudo é efémero. É dele a sentença lapidar: “vivemos tempos líquidos, nada é para durar”. Efectivamente, de princípios arreigados que conferiam substracto identitário a uma Comunidade, passando pelas relações sociais até se chegar à própria verdade mais axiomática, tudo passou a ser precário ou relativo, como aliás o comprovam os famosos factos alternativos.
Com este intróito pretendo recordar que não há mais do que duas décadas e meia Cabo Verde aprovava, com justificada celebração, uma Constituição da República, apresentada como uma das mais bem conseguidas do seu tempo, que se tinha cuidado em pormenor de tudo que poderia dizer respeito à vida colectiva da Nação e do seu devir, em especial questões como a soberania, a democracia e os direitos fundamentais dos cidadãos.
Essa mesma Constituição, assumidamente avançada, mostrou-se tão preocupada com determinadas questões que, numa antecipada e deliberada limitação aos poderes constituídos, cuidou de, por exemplo, deixar bem claro o seguinte: “O Estado de Cabo Verde recusa a instalação de bases militares estrangeiras no seu território” (art.º 11º, nº 4, da CR).
2. Ora, seja de que perspectiva for analisada, temos aí uma solene proclamação, feita com desassombro, exprimindo um determinado entendimento do exercício da soberania, o que faz dela uma das disposições da Constituição que mais impressionam, tanto mais que tal recusa não constava, ao menos de forma expressa, da Constituição anterior.
Na verdade, já depois do termo da Guerra Fria e da fractura ideológica que a acompanhou por décadas, com a emergência de um mundo unipolar claramente liderado pelo Ocidente, o que terá levado o intrépido legislador constituinte Cabo-verdiano a proibir de forma tão enfática a instalação de bases militares estrangeiras no território nacional?
Não teria sido melhor, como poderão pensar alguns, nada estatuir a esse respeito e deixar as portas abertas ao acolhimento de uma base militar, como por exemplo a dos Açores, conhecida pelas enormes vantagens económicas e financeiras que proporciona a Portugal e a essa região autónoma em particular?
Será que, como amiúde se questiona, um pequeno País que depende de outros, em tudo e para tudo, poderá dar-se ao luxo de prescindir das vantagens e dos recursos que daí poderão provir?
3. Enfim, conjecturas que apenas confirmam o essencial: indiferente a cálculos dessa natureza, desde sempre o Poder Político em Cabo Verde se mostrou muito cauteloso em relação à permanência de tropas estrangeiras no nosso território, como aliás se pode inferir, de entre outros exemplos, do prudente distanciamento que, apesar das insistências do outro lado, se tem procurado manter em relação ao Protocolo de Defesa e Segurança da CEDEAO e à força militar dele emergente.
E que assim é comprova-o definitivamente a rejeição às bases militares vertida na nossa Lei Fundamental de 1992, por certo com a devida ponderação e a mais firme convicção, como valor constitucional da primeira grandeza.
4. Dito isto, seria irrealista não reconhecer que o mundo entretanto evoluiu desde então, com novos desafios a obrigarem a que questões de defesa e segurança dos estados sejam deslocadas do foco estritamente nacional para um plano mais abrangente, nomeadamente o regional, impelindo, assim, a uma maior cooperação, bilateral e multilateral, sob as mais diversas formas.
Assim sendo, e vivendo nós numa sociedade aberta, em que não existem tabus, é natural que surjam ou venham a surgir vozes a questionarem o acerto, ou pelo menos a actualidade, dessa opção constitucional, e que a isso se siga um esclarecedor debate.
Em todo o caso, vale sublinhar que, ao contrário do que se poderá pensar, não só Cabo Verde não é o único pequeno estado insular a se acautelar de bases militares estrangeiras, nos termos da respectiva Constituição, nem tal atitude pode ser debitada, com ligeireza, a ultrapassados preconceitos de natureza ideológica.
5. É o que confirma, por exemplo, o caso da República de Malta cuja Constituição contem disposições, por sinal introduzidas por referendo popular, que alguns entre nós poderão ter por desajustadas aos tempos modernos, se não mesmo anacrónicas, tal como o artigo 1º, nº 3, que diz o seguinte:
“Malta é um estado neutral que prossegue activamente a paz, a segurança e o progresso social entre todas as nações, aderindo a uma política de não alinhamento e recusando participar em qualquer aliança militar”.
Nas alíneas desse mesmo nº 3 ainda se pode ler que um tal estatuto implica, de modo muito particular, que “nenhuma base militar estrangeira será permitida no território maltês” e que, fora dos casos de legítima defesa para repelir uma agressão à sua soberania, ou de situações autorizadas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, “não será permitida a concentração de forças militares estrangeiras nesse território”.
Será que, como amiúde se questiona, um pequeno País que depende de outros, em tudo e para tudo, poderá dar-se ao luxo de prescindir das vantagens e dos recursos que daí poderão provir?
6. Convém deixar claro que Malta não é nenhum país do chamado terceiro mundo. É, sim, membro de pleno direito da União Europeia, comunidade de que faz parte vai para mais de uma década.
Mais, apesar de ser um micro-estado, situado na encruzilhada de todas as rotas, de todos os tráficos e de todos os riscos do Mediterrâneo, incluindo o do terrorismo, ainda assim lá vai preservando os seus princípios constitucionais da neutralidade, da recusa a alianças militares e do não alinhamento.
Enfim, uma referência a se ter em devida conta.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 870 de 01 de Agosto de 2018.