Como fiz o que pude como João Semana nas ilhas cabo-verdianas (2)

PorArsénio de Pina,13 ago 2018 7:00

Arsénio de Pina
Arsénio de Pina

​Chegámos à Brava em Novembro de 1967; cruzámo-nos com o médico do Fogo no Porto da Furna, que tinha ido à ilha observar um padre Capuchinho vítima de hemoptises, a minha primeira consulta e doente, mal cheguei à vila.

A transferência para a ilha Brava era, geralmente, bem aceite pelo seu clima ameno, morabeza da população e haver clientes pagantibus entre os nossos imigrantes regressados dos EUA, na reforma, à terra natal. Para mim, o interesse era diferente por os meus pais serem bravenses e aí ter muitos parentes reais, e outros falsos parentes que se diziam “parente pirtim”, a quem nada cobrava da assistência médica, bastas vezes domiciliária.

Eu e a minha mulher (Sílvia) vivemos aí felizes durante os três anos passados na Brava, dada a morabeza das gentes e dos amigos que lá fizemos, mormente graças à empatia estabelecida entre a população e a Sílvia, embora as condições de existência fossem completamente diferentes das de Lisboa, sem luz electrica (instalada nos fins dos nossos anos na ilha), sem água canalizada (muito posterior à nossa partida para S. Vicente), ligação telefónica difícil ao nível dos Correios, irregularidade de comunicação marítima e ausência de ligação aérea. A chegada de barco à Furna era quase dia feriado e toda a gente descia ao porto em busca de notícias, de familiares que chegavam e encomendas.

A Delegacia de Saúde, a única estrutura sanitária da ilha, ficava na avenida principal da Vila de Nova Sintra; tinha dois anexos, um, residência do enfermeiro (único na ilha), e outro, enfermaria e sala para pequenas cirurgias. Havia um servente e um veículo pequeno de tracção às quatro rodas. A população era estimada entre oito a dez mil habitantes. À semelhança de outras ilhas, com excepção de Santiago, S. Vicente e Fogo, não tinha laboratório nem de gabinete de radiografia. O médico dispunha somente da sua experiência clínica e de olho clínico para se aproximar de um diagnóstico. Terapêutica também limitada, prevalecendo fármacos produzidos na Delegacia de Saúde (xaropes e poções) e algumas especialidades farmacêuticas em quantidade irrisória. Felizmente beneficiei de medicamentos ofertados aos Padres Capuchinhos provenientes da Itália, com quem mantive excelente colaboração e até cumplicidade no interesse da ilha, que passaram os medicamentos para minha gestão, que destinava unicamente a indigentes e funcionários públicos; os particulares compravam os fármacos na pequena farmácia improvisada das lojas dos comerciantes Feijóo Barbosa e Eduardo Camilo. Como conhecia as carências do Dr. José Cohen, enviava-lhe alguns medicamentos de utilidade cirúrgica. Na falta de ligaduras gessadas para a imobilização de fracturas, não fornecidas pelos Serviços Centrais, usei o expediente de comprar gesso no comércio local, estendê-lo ao longo de ligaduras normais, enrolá-las com o gesso, o que substituía perfeitamente as ligaduras gessadas dos hospitais centrais.

Os Padres Capuchinhos eram a mola de desenvolvimento da ilha, sobretudo através do chefe da Missão Religiosa, Padre Pio, extremamente activo na defesa dos interesses da população. Criaram uma escola, chamada Escola Materna, onde as crianças recebiam ensino e tinham uma refeição quente diária, uma oficina de marcenaria muito bem apetrechada, de formação e para construção de móveis, mobílias e componentes de casas, portas, janelas, etc., uma tipografia onde se compunha o jornal mensal Repique do Sino, de que fui colaborador desde o primeiro número até a sua conversão em Terra Nova.

Não tive grandes dificuldades com a patologia bravense, até porque a população era relativamente saudável, bene­fi­ciava com as encomendas dos parentes residentes nos EUA e com o apoio dos reformados vindos da América na velhice. Exceptuando a ascaridíase gene­ralizada favorecida pela humidade e o mau hábito de defecação a céu aberto nas hortas, e a hipertensão arterial, as queixas eram de índole cardíaca, sintomáticas, devido ao uso abusivo de café forte a todo o momento e da essência de chenopódio em óleo de rícino para tratamento de lombrigas, em crianças e adultos: coração fraco, coração alvoroçado, coração baixo, coração retorcido, coração a bater no fundo da garganta e não sei que mais, predominavam. Os partos eram feitos no domicílio por parteiras leigas e somente os complicados por mim, bem como a extracção de placentas retidas; o único parto mais complicado foi de uma multípara do interior, arrastado de horas, que veio parar à Delegacia de Saúde, já com feto morto. Suspeitando de malformação do feto fiz a fetotomia com os instrumentos de que dispunha a Delegacia para confirmar hidrocefalia e malformação da cabeça do feto. A única evacuação para o hospital da Praia foi de um trabalhador ligado à instalação eléctrica com lesão grave de um membro inferior.

Outro problema foi com um conhecido “leproso” (só tinha sequelas da doença) de Tantum, já meu amigo, por ser regular no controlo, a quem suspendi a terapêutica a que se sujeitou durante dez anos, que lhe criou nódulos de retenção nas nádegas. Sempre que vinha à vila, levava-o de regresso de carro até ao ponto mais perto de Tantum. Essa maneira sem preconceitos de lidar com leprosos (ou hansenianos, nome menos estigmatizante) e antigos leprosos, e esclarecimentos sobre a possibilidade de contágio da doença, visto ser doença pouco contagiosa, diminuiu bastante o receio e o estigma que as pessoas tinham e criaram em lidar com eles. O pobre homem chegou-me um dia à Delegacia bastante doente com um enorme abcesso abdominal (hepático), presumivelmente amibiano. Internado e medicado, preparámo-lo para seguir para S. Vicente, por termos tido notícia de chegada de um barco do Fogo a caminho de S. Vicente. A meio do caminho para o Porto da Furna, vimos chegar o barco, sob máquina, e a sua partida, sem nada poder fazer. Voltámos para a Delegacia de Saúde com o nosso doente, eu e o doente entalados, porque se não fosse operado iria morrer. Como conhecia a técnica cirúrgica, enchi-me de coragem e assumi o risco, mandando esterilizar o material, perante o pasmo do enfermeiro, e do Padre Pio, na proximidade, em vias de dar a extrema-unção ao meu amigo Manuel Ramos. Durante a operação, com anestesia local, quando fiz a incisão do abcesso, o pus que daí saiu, achocolatado (o que me convenceu ser o abcesso hepático), ia enchendo um balde. Meti-lhe um dreno, retirado ao cabo de uma semana, por já nada drenar, finalmente suturei ferida operatória e dei alta ao amigo após alguns dias. Safara-se o pescador Ramos, que iria encontrar, mais tarde, em Tantum quando aí fui com o Padre Pio e o administrador do Concelho, Adalberto Barbosa, em visita ao local. Fomos recebidos em festa, as crianças nuas, casebres de pedra solta cobertos de colmo e grutas na rocha habitadas. Disseram-nos que desde a década de quarenta que nenhum administrador nem médico tinha lá ido, tal a dificuldade do acesso, tendo o Dr. Júlio Pinheiro, na altura delegado de saúde e administrador do concelho, sido o último a lá ir para a construção do poço que servia a aldeia piscatória, que na altura da nossa visita tinha escada empedrada de acesso para pessoas e animais numa promiscuidade aflitiva. Esta visita levou-me a produzir um relatório de tal modo real, afirmando ser Tantum um exemplo da vida na Era da Pedra Lascada, enviado aos Serviços Centrais de Saúde com cópia ao administrador do concelho e Padre Pio, e proposta de solução do problema de Tantum. Alguém deverá ter encaminhado o texto ao PAIGC, em Conacry, que, num programa radiofónico, se referiu ao conteúdo do mesmo, o que motivou a solução do problema por uma equipa das Obras Públicas que se deslocou à ilha e executou a minha proposta de solução. Dei pormenores do assunto em artigo após a independência, e creio que tanto o administrador como o Padre Pio deviam ter ficado convencidos de que tinha sido eu a enviar o relatório ao PAIGC, tal a semelhança do relatório com a notícia captada pela escuta militar ou da PIDE na Praia.

As consultas em N. Sra do Monte fazia-as em casa do cabo-chefe, por não existir nenhuma estrutura sanitária fora da Vila, não obstante haver promessa, de longa data, de construção de um posto sanitário no local. Resolvi, face a essa falha, puxar pelo brio da população e propor-lhe começar a obra com os nossos meios para envergonhar o Governo e obrigá-lo a concluir a obra. Aceitaram o desafio e comecei eu com uma dádiva de cinquenta dólares (em dólares que era a moeda que, na Brava, todos entendiam melhor); os que tinham posses contribuíram com dinheiro, os comerciantes com material de construção e outras pessoas com dias de trabalho gratuito. Pedi um projecto às Obras Públicas e começámos o trabalho, só parando quando terminaram os fundos, estando já a obra a nível do telhado. Visitou-nos o governador, Comandante Sacramento Monteiro, que teve conhecimento do nosso desafio, elogiou a iniciativa e garantiu verba para a conclusão do posto sanitário, seu equipamento e colocação de enfermeiro, a que já não assisti por ter partido para S. Vicente para o serviço da Sanidade Marítima e Delegacia de Saúde.


[continua]


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 871 de 07 de Agosto de 2018.

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joão semana

Autoria:Arsénio de Pina,13 ago 2018 7:00

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  13 ago 2018 7:00

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