Como fiz o que pude como João Semana nas ilhas cabo-verdianas (4)

PorArsénio de pina,28 ago 2018 6:42

​Quando já tinha direito a gozar licença graciosa em Portugal, que solicitei, saiu no B.O. a minha transferência para a ilha do Fogo. Já tínhamos um novo descendente que, infelizmente, veio a falecer no Fogo por falta de recursos e de conhecimentos pediátricos para prevenir e tratar desidratações graves.

Fomos muito bem recebidos no Fogo por o meu pai ter sido médico estimado na ilha na década de quarenta, uma época terrível pela fome que dizimou grande parte da população na indiferença completa da chamada metrópole. Até lhe dedicaram uma coladeira, ou rabolo, “Dotor de Bila ê dotor Hermano…”, e teve apoio da população quando o administrador do Concelho, o licenciado em Direito, Gouveia e Melo, a quem chamavam Miliciano, por vingança, em virtude de o meu pai se ter recusado a declarar que a causa das mortes era uma epidemia de diarreia e não fome, o acusou de incapacidade como delegado de saúde. Este assunto está tratado no livro “O Processo de Hermano de Pina – Subsídios para a história da fome em Cabo Verde”, com prefácio do colega Teixeira de Sousa e posfácio dos filhos, que fiz questão de publicar ao encontrar o processo nos papéis do meu pai, após a sua morte. A luta do meu pai foi tenaz dado que o pai ou avô de Gouveia e Melo tinha sido íntimo de Salazar, pelo que beneficiava de toda a protecção oficial. O contra-ataque acusatório do meu pai nunca chegou ao Ministério do Ultramar, por desvio do documento da Civil, na Praia, pelo próprio Gouveia e Melo, como se veio a saber muito mais tarde. Esse pulha seguiu com êxito a sua carreira administrativa vindo a ser governador de uma província em Moçambique.

O Fogo vivia o seu segundo ano de seca e havia um plano de apoio da população com trabalho dirigido pelas Obras Públicas para pelo menos um elemento de cada agregado familiar rural e vigilância sanitária com fornecimento de alguns alimentos – leite em pó magro, óleo vegetal, feijão e polivitaminas, aos que manifestassem sinais evidentes de carência – trabalho de distribuição a cargo do enfermeiro-chefe, um gestor eficiente, que tinha a situação muito bem controlada, apoiado no médico para as manifestações de carência. Havia que manter a população trabalhadora ao nível do metabolismo de base, magra, mas sem sinais evidentes de carência. Quando aparecia cegueira nocturna, lesões típicas da pele de pelagra, aumentava-se a ração alimentar e ministravam-se vitaminas. A pelagra, também chamada a doença dos três D (Diarreia, Dermatite e Demência) era uma manifestação de carência grave, de fome. Enquanto a cachupa tiver milho e feijão, mesmo sem carne ou peixe, a pessoa fica magra mas sem sinais de pelagra; quando a alimentação se limita unicamente ao milho na cachupa, então aparece pelagra. Tivemos, por duas vezes, a visita do Dr. Teixeira de Sousa, o responsável nacional pelo programa do controlo nutricional, que passava em revista os trabalhadores das frentes de trabalho e fornecia relatórios ao poder central na Praia.

O Hospital Regional do Fogo tinha instalações satisfatórias e uma maternidade, um enfermeiro-chefe bastante experiente e activo, uma parteira, outra enfermeira na urgência, um enfermeiro adstrito à Lepra, uma secretaria com pessoal voluntário e um condutor do Land Rover que servia para as visitas itinerantes aos três postos sanitários no interior, cada qual com o seu enfermeiro, e transporte de doentes do interior para o hospital. Era o único médico na ilha e fazia consulta no hospital e nos diferentes postos sanitários, uma vez em cada quinzena. Acabei com a moda de o médico ver todos os doentes e falsos doentes que apareciam para consulta, introduzindo a triagem no hospital pelo enfermeiro-chefe, e nos postos sanitários; os enfermeiros só me apresentavam os doentes que lhes levantavam problemas ou dúvidas de diagnóstico, fazendo eu a consulta com o enfermeiro, que, a pouco a e pouco, ia aprendendo a resolver problemas que antes lhe escapavam. Os casos urgentes, durante a minha ausência, eram encaminhados para o hospital.

Apesar da avalanche de trabalho, consegui tempo para fazer a revisão de todos os casos de lepra e dos comunicantes dos doentes, anotar isso nas fichas dos doentes, onde encontrei anotações dos Drs. Teixeira de Sousa e Albertino Fortes e dos médicos do Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT) que, dez anos antes, aí estiveram e estabeleceram normas de controlo, que nunca respeitaram, dado que deveriam visitar Cabo Verde de 4 em 4 anos para controlo da lepra. Decidi dar alta aos doentes que se sujeitavam regularmente ao tratamento e não tinham lesões activas – a regularidade de tratamento era-me garantida pelo enfermeiro adstrito à lepra, que me acompanhou nesse controlo – e produzi um relatório tão crítico da situação que os Serviços de Saúde enviaram para o Ministério do Ultramar; este mobilizou uma equipa do IHMT que me chegou ao Fogo chefiada pelo Prof. Cruz Sobral, que fora assistente da cadeira da lepra no IHMT quando fiz o curso. Acompanhei-o na visita e concordou com todas as altas que dei, felicitando-me pela pertinência e acutilância do meu relatório e o trabalho realizado.

De iniciativa dos Padres Capuchinhos havia uma instalação nos arredores da cidade com todas as condições higiénicas e de conforto para os leprosos estropiados e incapacitados, chamada Casa Betânia, gerida por freiras leigas, que visitávamos com certa regularidade e veio a servir de “Quartel-General” do leprólogo italiano Alexandro Loretti na pós-independência, onde tinha laboratório de análises e oficina para produção de calçado sem pregos adaptados aos leprosos. Fez um trabalho extraordinário no campo da lepra, não obstante as suas limitações por ter tido paralisia infantil na infância, percorrendo o país de lés-a-lés; viveu largos anos entre nós, até integrar as Nações Unidas, após ter conseguido, praticamente, a erradicação da lepra em Cabo Verde.

Havia no hospital um sector isolado com grades onde se internavam doentes com problemas mentais, isto é, pessoas que, nos anos de crise, de fome, apresentaram alterações de comportamento que os familiares não entendiam e livravam-se deles internando alguns no hospital. Intrigado com essa patologia, resolvi observar detidamente os doentes, sujeitos a doses diárias de “Largactil” (cloropromazina); descobri lesões cutâneas típicas de pelagra. Mandei suspender a medicação, melhorar a alimentação dos dois internados e injectar doses elevadas de Vitamina PP (Pelagra Prevent) e vitamina A. Em pouco tempo os internados modificaram completamente o comportamento e tiveram alta, ficando a mulher a trabalhar no hospital. Expliquei ao enfermeiro a razão das manifestações mentais e a história da doença dos três D, podendo as manifestações mentais antecederem os outros sintomas.

Como havia muitos casos de pterigion (a tal “carne” da parte interna do globo ocular que, por vezes, cresce e tapa a pupila) que eram evacuados para Praia e eu dispunha dos aparelhos do meu pai para a sua solução cirúrgica, pedi aos Serviços Centrais que me permitisse um estágio na Praia com o oftalmologista para praticar a cirurgia da situação. Como o especialista estava cada vez mais incapacitado pela sua artrite reumatoide, aceitaram o meu pedido, e pude praticar bastante, transformando-me nas mãos do Dr. Júlio Pinheiro, um bravense amigo que conhecia desde criança, da Brava, e mesmo depois quando aí trabalhei e ele ia passar férias na sua ilha natal. O meu maior sucesso, após o regresso ao Fogo, foi com uma velhota cega indigente com pterigion bilateral a quem pus a ver. Ainda tive outros sucessos, com o hanseniano Vasco, da Casa Betânia, a quem reconstitui o nariz, Nhô Dico e o velho Frei Fidelis, a quem livrei de dores e incapacidades devidas a ciática e a espondilartrose, aplicando a terapêutica do famoso médico da praça lisboeta, o Bruxo de Garrett, que relato em pormenor no meu primeiro livro ULI-ME LI!

Aquando da morte do meu pai em Lisboa (1972), pude ir a Lisboa na companhia do meu filho Hermano, de três anos de idade, ficando a Sílvia com a Sandra e o Rui. Ao cabo de um mês estávamos de regresso e vinha com uma Ventosa Sueca comprada em Lisboa que ofereci à Maternidade do Hospital. Ensinei a parteira e o enfermeiro-chefe a utilizarem a ventosa e isso facilitou imenso o trabalho deles nos casos de partos arrastados em multíparas por falta de tonicidade uterina.

A infelicidade de perder um filho de tenra idade por falta de recursos e de conhecimentos pediátricos para prevenir e tratar desidratações graves desesperou completamente a família, e limitou a minha disponibilidade para o trabalho, forçando a nossa partida para Lisboa, até porque já tinha direito à graciosa mesmo antes de ser colocado no Fogo.

Como expliquei noutro escrito tive de travar uma luta tenaz no Ministério do Ultramar para completar a minha especialização em Pediatria. Os Serviços de Saúde de Cabo Verde faziam força para o meu regresso após a graciosa e os três meses a que tinha direito por nunca ter podido gozar a chamada licença disciplinar, sempre com a estafada justificação de fazer falta ao serviço. Ameacei abandonar o Quadro Comum do Ultramar para poder completar a especialização, tendo já feito Saúde Pública, por o estágio para a especialização ser da parte de manhã, e as aulas de Saúde Pública à tarde. O Director Geral de Saúde do Ministério do Ultramar foi-me ameaçando que se abandonasse o Quadro iria ser imediatamente mobilizado para a guerra no Ultramar. Foi então que me lembrei do antigo Governador de Cabo Verde, Comandante Sacramento Monteiro, que era Secretário-Geral da Administração Ultramarina. E foi ele que, conhecendo bem o meu trabalho em Cabo Verde, decidiu pôr-me em comissão eventual de serviço para a especialização. Quando fiz o exame à Ordem dos Médicos, em Coimbra, o ex-governador já tinha sido saneado do Ministério da Ultramar, mas escrevi-lhe, em carta registada, a dar a notícia de ter concluído a especialização em Pediatria e ia regressar a Cabo Verde, como lhe tinha prometido. Cabo Verde deve-lhe ter tido o seu primeiro pediatra nacional disponível para trabalhar no país.

Fim

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 873 de 22 de Agosto de 2018.

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Autoria:Arsénio de pina,28 ago 2018 6:42

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  28 ago 2018 6:42

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