O que diz a Convenção (sobre a Aviação Civil Internacional) sobre direitos aeroportuários em geral?
O artigo 15°.da Convenção estabelece que “as condições aplicáveis ao uso, por parte de qualquer Estado contratante, de todas as instalações e serviços de navegação aérea … que se destinem ao uso público… devem ser uniformes e contribuir para a sua segurança e rapidez. …Os direitos que um Estado contratante imponha pelo uso de tais aeroportos, instalações e serviços … por aeronaves de outros Estados contratantes não devem exceder… os que seriam pagos pelas aeronaves nacionais da mesma classe em serviços similares. …Todos esses direitos devem ser publicados e comunicados à ICAO”.
Como interpretar o artigo 15º da Convenção com relação a taxas no domínio da segurança da aviação?
O documento 9082 da ICAO estabelece os princípios gerais aplicáveis a direitos e em particular à recuperação dos custos de segurança da aviação (tradução livre):
“Os direitos devem ser não discriminatórios, seja entre usuários estrangeiros e aqueles que tenham a nacionalidade do Estado em que o aeroporto se encontra localizado e envolvido em operações internacionais similares, seja entre dois ou mais usuários estrangeiros”.
“Devem ser efectuadas consultas antes da assunção de quaisquer custos de segurança pelos aeroportos, operadores ou outras entidades”.
“As entidades concernentes podem recuperar os custos das medidas de segurança aeroportuária dos usuários de forma justa e equitativa, sujeita a consulta.”
“Todos os direitos por custos de segurança aplicáveis aos fornecedores de serviços, operadores e/ou usuários finais devem ser directamente relacionados com os custos da prestação dos serviços de segurança concernentes e devem ser concebidos de forma a recuperar não mais do que os custos relevantes envolvidos”.
“Não devem ser impostos quaisquer custos à aviação civil por outras funções mais gerais de segurança exercidas pelo Estado, tais como de polícia, inteligência e segurança nacional”.
“Não deve ser exercida nenhuma discriminação entre as várias categorias de usuários ao cobrar pelo nível de segurança prestado. Os custos adicionais incorridos por serviços extra de segurança fornecidos regularmente a pedido de certos usuários podem, também, ser cobrados a tais usuários”.
O que diz a Lei Cabo-verdiana?
Cabo Verde aderiu à Convenção a 19 de Agosto de 1976. Contudo, a sua entrada em vigor na ordem jurídica cabo-verdiana apenas aconteceu em 2003 com a publicação da Resolução 18/2003 de 18 de Agosto que a publica.
O artigo 12 da Constituição da República de Cabo Verde reza que “os tratados e acordos internacionais validamente aprovados … vigoram na ordem jurídica cabo-verdiana após a sua publicação oficial…” e que “…as normas e os princípios do direito internacional validamente aprovados … têm prevalência sobre todos os atos legislativos e normativos de valor infraconstitucional.”
O Código Aeronáutico de Cabo Verde, legislação da competência do Parlamento, que como prática tem concedido autorização legislativa ao Governo, estabelece nos seus artigos 39 e 41 que “os montantes das taxas aeroportuárias e por serviços são determinados e fixados pela Autoridade aeronáutica”.
Os estatutos da AAC definem no seu artigo 12 os poderes regulatórios da AAC no domínio da regulação económica: “Estabelecer as bases e critérios para o cálculo das tarifas e taxas pela prestação dos serviços de todo o sector da aviação civil.”
Qual a relevância do Código Aeronáutico no sistema da aviação civil?
A Convenção através dos seus anexos técnicos requer aos Estados Contratantes o estabelecimento de uma legislação de base sobre a aviação civil. O estabelecimento dessa legislação (Código aeronáutico no caso de Cabo Verde) ao nível da Assembleia Nacional contribui para a estabilidade dos princípios que governam a regulação da aviação civil, prevenindo assim eventual impacto negativo de agendas governativas de curto e médio prazo. No caso em apreço, o Código aeronáutico conterá, por si só, as referências necessárias para resolver a questão levantada com a iniciativa do Governo relativamente à TSA.
Como é que Cabo Verde vem aplicando a legislação sobre a taxa de segurança?
Conforme já foi referido na imprensa pelo ex-PCA da ASA, a AAC, no uso das suas competências, estabeleceu em 2013, em parceria com os principais interessados, a taxa de segurança da aviação, observando os princípios da ICAO acima enunciados.
Considerações
Analisando o percurso da alteração recente da TSA pelo Governo, considero, à luz dos factos acima apresentados, e salvo douta interpretação, que:
A alteração da taxa de segurança nos moldes atuais não respeita a Convenção, conforme se pode concluir da leitura das referências atrás, e, por conseguinte, poderá não ter respeitado a Constituição, por força do seu citado artigo 12 (a interpretação do lugar da Convenção na ordem jurídica cabo-verdiana foi dada por uma equipa de eminentes especialistas em direito aeronáutico, liderada pelo Dr. Mario Folchi, autor do Código Aeronáutico, aquando da sua apresentação pública). Contudo, existe uma margem de manobra considerável que poderá ser bem aproveitada para financiar o desenvolvimento futuro do sistema de segurança da aviação para o qual não existirá ainda uma estratégia definida;
A competência para regular as taxas aeronáuticas foi dada à Autoridade aeronáutica pela Assembleia Nacional, donde o Governo poderá ter extravasado as suas competências ao ultrapassar a AAC;
Cabo Verde está razoavelmente bem no que tange aos mecanismos legais que visam assegurar o respeito das suas obrigações perante a Convenção. O nível de maturidade do sistema nacional de aviação civil já permite evitar este tipo de atropelos e os custos associados (para quem ignore a Convenção, recorde-se a título de exemplo o recente caso da ordem da Comissão Europeia a um Estado membro da UE de eliminação de taxas aeroportuárias discriminatórias, que visavam, à semelhança da iniciativa do Governo, apenas os passageiros visitantes e não os residentes);
A AAC ainda não cumpriu o mandato dos seus estatutos de “estabelecer as bases e critérios para o cálculo das tarifas e taxas pela prestação dos serviços de todo o sector da aviação civil.”
Apesar da legislação nacional em vigor (Lei n.º 100/VIII/2015, de 10 de Dezembro, regime geral das taxas a favor das entidades públicas) não se aplicar às taxas decorrentes de instrumentos internacionais ratificados por Cabo Verde, os princípios e regras nela estabelecidos correspondem em grande medida às disposições da Convenção relativas à criação e aplicação de taxas aeronáuticas. Contudo, o caso em apreço revela que o nosso país poderá não estar, nem a AAC estará, dotado de um mecanismo consistente de criação e aplicação de taxas e que considere os princípios previstos na legislação. O país teria dado um passo significativo caso, como aprendizado deste caso particular, adotasse esse tal mecanismo que obrigasse todas as entidades públicas competentes a cumprir as disposições legais em vigor, incluindo um sistema de auditoria sistemática para assegurar a sua correcta aplicação. Seja-me perdoado o oportunismo de estender o âmbito destas considerações às inúmeras taxas aplicadas pelas entidades do país, algumas vezes como autênticos impostos sob a forma de taxas (“Doing business” consegue ouvir?).
Malgrado as dificuldades do sistema de transportes aéreos, o sistema de aviação civil em Cabo Verde registou progressos relevantes nas últimas duas décadas, que orgulham o país, graças, sobretudo, aos programas de auditoria da ICAO, e, reconheça-se, à dinâmica do IAC/AAC. Resta, contudo, ainda muito por fazer. Retrocesso não.
P.S. Conto com a indulgência do leitor relativamente a possíveis imprecisões relativas a questões de ordem legal ou técnica a cuja intromissão fui obrigado pela transversalidade do tema.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 882 de 24 de Outubro de 2018.