O milagre da China ao vivo e a cores

PorJosé Almada Dias,13 nov 2018 11:34

​Os chineses começaram a construção da famosa Grande Muralha no ano 215 a.C. e a parte final foi terminada em 1644, 20 séculos depois (leia-se 2000 anos de construção). Trata-se da maior estrutura construída pelo Homem e estende-se por cerca de 8850 km (de Cabo Verde a Portugal são uns míseros 3000 km e de Cabo Verde a Boston, nos EUA, cerca de 5400 km). Na sua construção, estima-se que terão trabalhado dois milhões de homens! Desde 1987, é Património Mundial da UNESCO e, em 2007, foi eleita como uma das Sete Maravilhas do Mundo Moderno. Por ano, atrai uma média de 10 milhões de turistas.

Desde criança que ouvi dizer que era a única obra feita pelo Homem que se podia avistar do espaço. Posteriormente, fruto do empreendedorismo pessoal do Sheik Al Maktoum, as famosas ilhas artificiais do Dubai também passaram a ser avistadas pelos felizardos que já tiveram a sorte de cruzar as “fronteiras” da atmosfera terrestre.

Nasci apaixonado pela História e tive a felicidade de encontrar duas bibliotecas em ambas as casas dos meus avós, que me permitiram desde cedo viajar pelo mundo e pela História da Humanidade, e sonhar que um dia visitaria os grandes monumentos construídos pelo Homem ao longo dos tempos.

Foi assim, com uma excitação de criança, que finalmente cumpri há dias uns dos maiores sonhos da minha infância: visitar a Grande Muralha da China.

No autocarro que nos levou de Pequim, ouço a guia dizer que Mao Tsé-Tung terá afirmado: um chinês tem de ir à Grande Muralha (). Eu acrescentaria, depois de a visitar, que todo o ser humano deveria ter essa oportunidade.

Mesmo a propósito, ao descermos do autocarro, somos recebidos por um grupo de vendedores a venderem bonés iguais aos do Exército Vermelho. Pela minha memória, passam imediatamente imagens dos livrinhos de banda desenhada, que li na minha adolescência, que contavam a epopeia da Grande Marcha empreendida por Mao. Enquanto hesito se compro ou não um chapéu que simboliza tanta coisa, lembro-me da estória da Grande Marcha, de como Mao juntou 100 mil soldados que percorreram 10 mil km, tendo chegado apenas 20 mil ao destino.

Vestindo o papel de turista, venço as minhas resistências ideológicas e acabo por comprar o boné, com o qual inicio a minha grande marcha pelos degraus íngremes e irregulares da Muralha, escalada que levou mais de uma hora até ao topo de uma montanha. O percurso foi feito no meio de turistas de todo o mundo, igualmente estafados com a experiência e a manifestarem o seu cansaço nas mais diversas línguas, transformando a Muralha numa autêntica Babel de excursionistas de todas as idades e proveniências. Do grupo de vinte verdianos, somos só três os que chegam ao cimo (entre os quais, uma mulher), conquistando uma vista deslumbrante de uma paisagem carregada por milhares de anos de História e simbolismo.

Ninguém fica indiferente ao poder que se sente lá em cima. O poder de uma grande nação, capaz de construir uma obra gigantesca. Há sensações que só se percebem ao vivenciarmo-las e escalar a Grande Muralha é uma delas.

Cumpri um grande sonho de criança, mas ficou a faltar-me outro: passar uma temporada no Templo de Shaolin a treinar com os monges. Ficará para uma próxima viagem...

Ao longo da História, a China não se ficou pela construção da Grande Muralha. Em 1421, uma imensa armada de 100 gigantescos barcos chineses terá atravessado o Índico, o Atlântico, a Antártida, o Árctico, a América do Norte e do Sul, tendo sido os primeiros a dar a volta ao mundo.

Terá sido na nossa ilha de Santo Antão, no vale de Janela, que essa armada terá aportado a caminho das Américas. A chamada Pedra do Letreiro contém inscrições que terão sido gravadas por membros dessa armada. Para quem se interesse por este tema, recomendo o livro “1421 O Ano em que a China Descobriu o Mundo”, da autoria de Gavin Menzies, ou, em versão mais sintetizada, as duas crónicas que escrevi sobre o assunto em 2015, intituladas “1421, o ano em que a China descobriu o mundo e Cabo Verde”.

O assunto é polémico e não agrada particularmente às potências ocidentais que fizeram os achamentos, e que os denominam pomposa e erradamente de Descobrimentos. Mas como costumo dizer, quanto mais polémico um assunto é, mais atractivo se torna, razão pela qual a Pedra do Letreiro poderia ser transformada num dos grandes atractivos turísticos da ilha de Santo Antão. Afinal, os turistas adoram essas estórias. Quem vai a Roma compra sempre um exemplar de uma loba amamentando os irmãos Rómulo e Remo, apesar de ser difícil acreditar na lenda.

A China continua a surpreender pela sua capacidade de grandes empreendimentos de dimensão planetária e histórica. Nos últimos 40 anos, o país conseguiu retirar mais de 800 milhões de pessoas da pobreza, um feito nunca antes alcançado na História da Humanidade, sobretudo se tivermos em conta o ponto de partida e o curtíssimo intervalo de tempo.

O gigantesco país está em acelerada modernização e muda todos os dias, segundo os imparciais relatos de estrangeiros que o visitam frequentemente. E as estatísticas confirmam isso, com recordes que caem a velocidades estonteantes.

Durante a minha estadia na China, ao falar com a minha irmã, ela perguntou-me se a capital chinesa continua a ser uma cidade cheia de bicicletas e com poucos carros, como quando ela esteve lá há 20 anos atrás. Respondi-lhe que o cenário é hoje oposto: ao invés de milhares de bicicletas na rua e poucos carros, hoje Pequim tem 6 milhões de carros na rua e algumas bicicletas a circularem (muitas delas eléctricas). O tráfego é tão intenso que, para se comprar um carro, é preciso esperar por um sorteio de licenças, que é feito de tempos a tempos.

Pequim, à semelhança de muitas metrópoles chinesas, é hoje uma cidade moderna a transbordar de prosperidade, que pode ser aferida logo que se chega pela arquitectura moderna dos imponentes arranha-céus e pelos sofisticados carros que circulam nas suas artérias. Estão lá todas as marcas mais luxuosas do planeta a circularem lado a lado.

O privilégio de conduzir grandes carros não encontra obstáculos de género e vêem-se chinesas bonitas e sofisticadas a guiar Porsche e jipes Land Rover que não ficam a dever nada aos que se vêem no Mónaco ou nas Rivieras francesa e italiana – ainda em Abril passado, estive no Mónaco e em Nice e por isso a comparação é fácil.

Ficam na memória a sofisticação dos bares e discotecas nas cidades de Tianjin, Pequim e Shenzhen e a clientela jovem, bonita e sofisticada, bem vestida e armada com o melhor que há de equipamentos electrónicos, não fosse a China o maior produtor mundial de gadgets.

Encontrámos na night “tianjinense” um grupo de jovens estudantes cabo-verdianos misturados num ambiente cosmopolita com estudantes vindos de todo o mundo. A China está definitivamente na moda e não é só para investidores. Respira-se confiança no futuro, algo contagiante.

Percebe-se a razão pela qual vários estudantes cabo-verdianos optam por não regressar a Cabo Verde, à semelhança de muitos outros jovens de todo o mundo, o que, à partida, me tinha parecido quase uma heresia. Pois é, visitar a China com olhos de ver, como foi o caso durante mais de 2 semanas, derruba uma série de preconceitos...

Uma outra experiência inesquecível é a negociação dos preços com os comerciantes. Uma aventura que testa a nossa paciência e capacidade de resistência. Os mais afoitos podem facilmente pagar o dobro daqueles com capacidade negocial. Mas o que surpreende é a boa disposição dos vendedores, que desatam a rir e não desarmam, mesmo quando lhes dividimos o preço inicial por 4! Do you want to kill me?, vão rindo, enquanto nos metem uma calculadora nas mãos com outro preço. A calculadora vai trocando de mãos, até se chegar a um acordo. Tudo na maior boa disposição, não fosse a China a terra de Lao-Tzu (rima, ritmo, paz), do Taoísmo (compaixão, moderação, humildade) e do Confucionismo (piedade, harmonia social, progresso individual).

No longo voo de regresso entre Pequim e Frankfurt, após uma noite de sono, uma lindíssima hospedeira da Air China pergunta-me num inglês impecável: Sir, do you want Chinese or western breakfast? Espero não ter mostrado nenhuma excessiva expressão de felicidade ao responder western! Nunca me soube tão bem um afrancesado croissant e uma British omelete com salsichas!

Aprendi desde cedo com a minha mãe que não há nada melhor do que viajar e conhecer novas culturas, tendo tido o privilégio de viajar desde tenra idade. A Ásia sempre exerceu um particular fascínio no meu imaginário de criança, mas tenho um handicap que ainda não consegui ultrapassar: a comida, os temperos, os sabores, que, costumo dizer, são demasiado criativos e exóticos. Se calhar, tenho de ir mais vezes para me habituar.

Ao terminar o meu western breakfast, ladeado de chineses a deliciarem-se com os respectivos Chinese breakfast, confirmei o quão ocidental é a minha identidade crioula cabo-verdiana. Ainda sem aterrar em Frankfurt, já estava ansioso por entrar no avião da TAP a caminho de Lisboa (o nosso hub fora das ilhas) para degustar um bom cozido à portuguesa, um bom bacalhau e, quem sabe, um rodízio de boa picanha brasileira com feijão preto, para criar lastro para a viagem de regresso às ilhas que alguém apelidou de afortunadas.

Da China, ficaram-me imensas saudades de um povo afável e cordial, que gosta de sorrir pronta e genuinamente. De gente que enriqueceu em poucos anos, mas que se mantém simples no trato, sobretudo com os estrangeiros, que não têm como não se sentir em casa. Ninguém fica indiferente ou igual depois de alguns dias na China. Voltei mais rico do que era com esta fantástica experiência. Espero voltar brevemente, apesar de ainda estar tonto com o jet-lag.

A nossa viagem pelo “Reino do Meio”, cujo nome é Zhōngguó (Terra Central), continuará com o milagre operado nas Zonas Económicas Especiais, lá onde a China moderna começou há cerca de 40 anos.

zai jian (até breve)

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 883 de 31 de Outubro de 2018.

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China

Autoria:José Almada Dias,13 nov 2018 11:34

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  14 nov 2018 11:11

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