De sapatada a socos

PorEurídice Monteiro,18 nov 2018 9:30

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​Cabo Verde é uma república democrática da costa ocidental africana, que tanto se tem distinguido nas águas turvas do oceano pantanoso desta sub‑região devido à sua fresca, jovem e vaidosa democracia insular. Este país é apontado, de modo insuspeito, por cientistas e políticos de reconhecimento internacional, como uma das mais exemplares e exuberantes democracias de toda a África.

Pela forma ordeira como decorreu a transição do regime de partido único para o regime de democracia pluralista em 1991, pelas sucessivas alternâncias políticas já alcançadas sem sobressaltos (2001 e 2016), pelo fair play e certa civilidade dos titulares de cargos políticos tanto locais como nacionais, pela cordialidade e amabilidade permanentes do povo soberano e por uma já secular cultura da paz tão característica destas ilhas da morabeza, da poesia e da música, Cabo Verde tem sabido tirar proveito de todo o marketing nacional que tem sido feito em torno da sua performance democrática. De maneira que, sem meias palavras nem rodeios ou complacência, não se pode permitir nem tolerar a banalização e a naturalização de actos de violência de rua por parte dos titulares de altos cargos políticos quer dentro quer fora do perímetro das instâncias do poder político instituído.

Agressão, legítima defesa ou briga, o facto é que, há uns poucos dias atrás, dois dos deputados da nação protagonizaram um episódio inédito e para se lamentar durante muito tempo. Com um objecto voador não identificado ou a soco, o deputado Moisés Borges (eleito pelo círculo de Santiago Norte nas listas do PAICV, maior partido da oposição) rachou a cabeça do deputado Emanuel Barbosa (eleito pelo círculo da Europa nas listas do MPD, partido no poder). Àquela hora, todos foram chamados para acudirem, desde a polícia de ordem pública, aos bombeiros, à brigada médica e à comunicação social.

O deputado ventoinha, que tinha a cabeça rachada e ensanguentada, foi imediatamente numa ambulância para o Hospital Agostinho Neto, a fim de receber a assistência médica e medicamentosa. O outro foi-se embora, ainda com uma expressão dura no rosto, sinal de que estava aborrecido. Mas, por ser deputado, usufruindo das imunidades parlamentares, foi com as suas próprias pernas que abandonou o edifício da casa parlamentar.

O estatuto dos sujeitos parlamentares estipula que “os deputados não respondem civil, criminal ou disciplinarmente pelos votos e opiniões que emitirem no exercício das suas funções e por causa delas”, sendo que, de igual modo, “nenhum deputado pode ser detido ou preso sem autorização da Assembleia Nacional, salvo por crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos e em flagrante delito.” Isto indicia que tudo vai ficar em águas de bacalhau.

Tudo indica que, em Cabo Verde, terá sido pela primeira vez que um caso de tareia entre deputados aconteceu nas instalações da sede da democracia e, por essa razão, acabou por causar alarido e pronta intervenção das autoridades competentes; também terá sido inédito este acto de pancadaria. Significa, outrossim, que ocorreram situações atípicas com trocas de acusações mútuas, arregaçamento das mangas de camisa, o apontar do dedo à face de alguém, convites a sair para o largo, promessas de socos, cacetadas em salas de voto, armas de fogo à mostra, chamadas para competição de natação no alto mar e medição de força física por vias distintas entre deputados ou outros titulares de cargos políticos, tanto nacionais como locais, entre partidos e intrapartidárias, ainda que não chegando a esses moldes sangrentos como sucedido na passada sexta-feira. Puxando um pouco para trás, já na primeira república, em plena reunião do conselho de ministros, presidido por Pedro Pires, consta-se que, no calor da discussão ministerial, um dos ministros daquela época arrancou dos pés o calçado e atingiu um dos secretários‑adjuntos do primeiro-ministro.

Apesar do histórico de agressões e violências outras, o caso de Moisés Borges e Emanuel Barbosa merece devida atenção. Trata-se, porém, de uma história um tanto ou quanto pouco mal contada, que carece de esclarecimentos e posicionamentos das entidades competentes em nome da ética, da moral e dos bons costumes da república. É de se louvar o facto de que, ainda que apenas timidamente, algumas das entidades superiores da nação terem‑se pronunciado à propósito deste incidente inominável. Houve um comunicado do Presidente da Assembleia Nacional no dia seguinte e também uma ou outra nota de repúdio de titulares de órgãos de soberania foi emitida nas redes sociais mal tiveram conhecimento e se inteirado do caso ocorrido nas instalações da sede da democracia. E isso não é de somenos. É que o povo das ilhas não pode nunca acreditar que, para se ser deputado da nação ou titular de algum outro cargo político, é preciso ser gladiador, além de arruaceiro. Esse não é o tipo de comportamento que deve prevalecer numa república democrática e este momento sangrento não pode manchar a imagem do Parlamento.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 885 de 14 de Novembro de 2018.

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Autoria:Eurídice Monteiro,18 nov 2018 9:30

Editado porChissana Magalhães  em  23 nov 2018 17:59

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