Tonecas Marta: A força de uma voz melodiosa no fulgor do tempo (parte II)

PorCésar Monteiro,20 nov 2018 7:23

Na senda da sua vocação pedagógica, a Igreja do Nazareno da Praia terá constituído, seguramente, um dos espaços privilegiados de socialização musical de Tonecas Marta onde, para lá da aprendizagem rudimentar do canto, aprende a interpretar hinos e faz parte do coro que, de forma regular, actua em actividades de cariz religioso.

 Todavia, em boa verdade, a interiorização das suas elementares técnicas vocais viria a reforçar-se com ensinamentos de Pipita Bettencourt (Mindelo, São Vicente, 1920 – Praia, Santiago, 1993), instrumentista de cordas e professor de várias gerações, e do seu tio materno Djodja (Praia, Santiago, 1934 – Lisboa, Portugal, 1999), mas, também, adquiridos em ambientes informais de tocatinas e serenatas aos quais se juntavam Amândio Barbosa Ferreira (Assomada, Santiago, 1941), Azevedo, ou, pontualmente, Duca de Nhô Pitra (Mindelo, São Vicente, 1934 – Roterdão, Holanda, 1989), sempre que as circunstâncias o permitiam. Dito de outro modo, partindo de uma experiência elementar acumulada no seio da Igreja nazarena, Marta aprimora a voz na rua, mormente “nas vivências da noite”, e projecta-se, mais tarde, para outros espaços musicais mais exigentes.

Iniciado, pois, nas lides do canto, ainda na pré-adolescência, Tonecas Marta adquire, posteriormente, conhecimentos rudimentares da teoria musical, quando estudava na Secção do Liceu Gil Eanes (Mindelo) instalada, por decreto, num edifício arrendado a Sérgio Barbosa Mendes (SERBAM), entre 1955 e 1960, na cidade da Praia, através, primeiro, de D. Lina Tavares Sousa Antunes da Rosa, pianista, que ministrava a cadeira do Canto Coral. Todavia, as aulas teóricas de música a cargo daquela docente liceal, no ano lectivo 1958-59, terão permitido a Tonecas apenas aprender, ligeiramente, o solfejo, saber fazer uma Clave de Sol, ou ler uma partitura “e não mais do que isso”. Mais tarde, com a inauguração do Liceu Adriano Moreira, a 10 de Junho de 1960, Tonecas Marta, no ano lectivo 1960-61, é discente do Professor Jorge Monteiro, Jotamont (EUA, águas territoriais, 1913 – Mindelo, São Vicente, 1998), com quem, diga-se de passagem, “aprendi pouca coisa, a não ser a cantar uma das lindas mornas da sua autoria, de cujo nome já não me lembro”.

A par dos conhecimentos e das práticas musicais que ia adquirindo aqui, ali e acolá, Marta actua em público, pela primeira vez, em 1958, teria ele 13 anos de idade, no Acampamento da Mocidade Portuguesa, num espetáculo de teatro e variedades organizado pela Secção do Liceu Gil Eanes na Praia em que, além de cantar, executei guitarra portuguesa”. Posteriormente, no ano seguinte, em 1959, Tonecas actua, desta feita, num Sarau dos Estudantes da Praia realizado no Cinema com a participação do Conjunto Académico e, ainda, de um grupo de serenata constituído, também, por Bia Rendall e Amândio Barbosa Ferreira, este último radicado em Portugal, “grande cantor e meu companheiro de serenatas”.

No estrangeiro, particularmente em Moçambique, durante a sua permanência entre Outubro de 1964 e finais de 1967, Tonecas Marta actua, em várias ocasiões, no Restaurante Irmãos Pimenta (baianos brasileiros), na Beira, perto da Base Aérea Nº 10. Já em terras angolanas, mais concretamente em Cabinda, onde reside entre 1974 e 1975, “não toquei, por causa da situação de guerra que vivia o país” e, logo, inviabilizava encontros de todo o tipo. Mais tarde, no Sal, onde trabalha, na Aeronáutica Civil, a partir de 1975, depois do seu regresso de Angola, com curta paragem em Bissau, Tonecas, de mãos dadas com Antero Simas (Praia, Santiago, 1953), Ana Emília (Bissau, Guiné-Bissau, 1952), Luciano (São Nicolau, 1948 – Espargos, Sal, 2013) e John Perpétua (Espargos, Sal, 1948 – 2008), cria, entre 1976 e 1977, o grupo musical Cacimba de Madrugada, que, contudo, viria a desaparecer em finais de 1979, após um percurso musical deveras interessante nessa ilha. Nesse mesmo período, Tonecas participa, nos Espargos, onde, aliás, residia, em várias serenatas com Antero Simas, o seu companheiro da banda, e Lela Bujim (Santo Antão, 1947–  Sal), entre outros, mas, também, tem o privilégio e a honra de partilhar espaços íntimos e momentos especiais de tocatina com Luís Rendall (Mindelo, São Vicente, 1898 – Lisboa, Portugal, 1986), Tututa Évora (Mindelo, São Vicente, 1919 – Espargos, Sal, 2014), Antoninho Lobo (Santa Maria, Sal, 1910 – Espargos, Sal, 1991) e Manuel Eugénia Brito (Santa Maria, Sal, 1915 – Espargos, Sal, 2003).

Forçado a regressar definitivamente à Praia, em 1980, a fim de se juntar à mulher Ana Emília, que ali já se encontrava, desde o ano precedente, por motivos meramente profissionais, Tonecas Marta passa a trabalhar na área da Comunicação dos Correios, Telégrafos e Telefones, onde permanece até à data da sua aposentação, em 1997. Na capital, vindo do Sal, prossegue a sua actividade musical, de forma informal, e participa em serenatas em riba Praia e na Achadinha com Vave (Praia, Santiago, 1947), carpinteiro do Liceu Domingos Ramos, aposentado, Pipita Bettencourt, Caluca (Praia, Santiago, 1953) e Daniel Rendall (Praia, Santiago,1947). Contudo, não se restringindo a sua área de intervenção musical apenas ao mundo das serenatas, que, de resto, adorava, Tonecas participa, também, em tocatinas com Hermano Almeida (Vila da Ribeira Brava, São Nicolau, 1938) e Alipinho (Praia, Santiago, 19489), entre outros companheiros de jornada, em casa de Renato Cardoso (Mindelo, São Vicente, 1951 – Praia, Santiago, 1989), organizado pelo próprio anfitrião compositor.

Afora a sua presença em ambientes musicais informais, na Praia, Tonecas desloca-se à Holanda, em 1983, com o Grupo Cultural Mantenha, constituído por Travadinha (Janela, Santo Antão, 1937 – Mindelo, São Vicente, 1987), Caetaninho (São Tomé e Príncipe, 1922 – Praia, Santiago, 1987), Alipinho, Nhelas Spencer (Espargos, Sal, 1954), Tony Marques (Ribeira Brava, São Nicolau, 1959 – Maputo, Moçambique, 2001) e Caluca (Praia, Santiago, 1953) e ali grava o LP Mantenha, o qual viria a ser editado, em 1985, com a participação de Humbertona (Chã de Manelim, Santo Antão, 1940). Concluída a missão musical para a qual fora convidado e extinto o grupo, Tonecas junta-se à formação musical Serenata, também ela perene, constituída, ainda, por Betú (Porto Inglês, Maio, 1961), Jaime do Rosário, Zeca Couto (Praia, Santiago, 1955), Bitina Lopes (Mindelo, São Vicente, 1955), Nhelas Spencer e Nhela do Bulimundo (percussão), que se desloca, em digressão, em 1987,aos Estados Unidos da América e edita, nesse mesmo ano, o LP Camim d´América com o patrocínio dos TACV.

No plano musical, Tonecas Marta, com dois LP gravados (Praia, 1986 e 1988), tem-se afirmado, também, como compositor, desde 1975, sobretudo pela qualidade das suas cerca de 15 (quinze) composições, quase todas gravadas por excelentes vozes nacionais. Na linha de parcerias musicais, Marta tem, igualmente, composições interpretadas por ele próprio, ou em dueto, com a cantora Ana Emília (Dôs violon Tchorá na noite, LP, Praia, 1988, e Distino di Criola, Os Tubarões, LP Tabanca, 1980) e com o seu falecido irmão mais novo, Maiúka (Praia, Santiago, 1946 - Luanda, Angola, 2011), compositor e intérprete, “mais completo e mais versátil que eu próprio”, no CD deste último intitulado Mar largo editado em Lisboa, em 2005. Ainda em matéria de composições, Tonecas tem parcerias separadas com Nhelas Spencer (melodia na morna Desiluson dum amdjer, a única que lhe confere direitos autorais), e Antero Simas (melodia na morna Distino di Criola).

Socorrendo-se da sua extensão vocal, classificada entre o barítono e o baixo, e da sua expressividade gestual em palco, Tonecas, para além de mornas, o seu género musical nacional predilecto, interpreta canções brasileiras de Agostinho dos Santos (São Paulo, Brasil, 1932 – Orly, França, 1973) e de Nelson Gonçalves (Rio de Janeiro, Brasil, 1919 – Rio de Janeiro, 1988), ambos cantores e compositores de quem afirma ter recebido influências. Agastado pela doença, desde 2006, Tonecas Marta, tio de talentosos intérpretes e compositores espalhados na diáspora, faz a sua última actuação pública a 15 de Setembro de 2011, numa merecida homenagem que a Câmara Municipal dessa ilha prestou ao seu grupo musical Cacimba da Madrugada, com a promessa de regressar à atividade musical, através da discografia, e prosseguir, assim, a sua caminhada, tão depressa recupere a saúde, sempre na linha do legado do pai, a sua principal referência e fonte inspiradora.  (Última parte)

Antonio Marta
Antonio Marta

Tonecas Marta
Tonecas Marta


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 885 de 14 de Novembro de 2018.

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Autoria:César Monteiro,20 nov 2018 7:23

Editado porrendy santos  em  20 nov 2018 15:20

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