Não fica, pois, nada fácil escapar ao “discurso” dominante, ou pretender que não se o absorve nos programas de governação quando os tempos, o envolvente externo e as dependências múltiplas o favorecem. O problema é que os anos e os governos passam e, independente de mais ou menos convicção na promoção do sector privado, o panorama global fundamentalmente não se muda muito e a centralidade do Estado na economia mantém-se.
De facto, na prática, não se nota evolução significativa no sector privado capaz de desencadear a transformação estrutural essencial para o desenvolvimento sustentado do país. A conexão com o investimento externo ainda não é suficientemente expressiva. Nichos ou segmentos dinâmicos do mercado interno e externo estão por ser identificados. Os investimentos públicos não se têm mostrado particularmente vantajosos para o empresariado nacional. O aprovisionamento do Estado em bens e serviços não dá sinais claros de fazer parte de uma política compreensiva de apoio e estímulo à actividade económica local e nacional. A preocupação com o financiamento tem dado resultados na facilitação de crédito bancário, mas muito aquém do esperado. As dificuldades das empresas são múltiplas e não se resumem ao financiamento, mas têm também a ver com a relação com a administração pública burocratizada, os custos de factores, os problemas de transportes, concorrência desleal e falta de regulação, o que facilita a actividade informal.
Não espanta que após longos anos de discurso, supostamente a favor de uma economia de iniciativa privada, o que se constata no país é que se estará perante um sector em algumas áreas estagnado, noutras em retirada e noutras ainda com alguma dinâmica e mesmo mostrando potencialidade, mas já sem evidente possibilidade de ir mais além. A agricultura sem muitos produtos de alto valor acrescentado e com limitações de mercado – entre outras razões por causa de transportes, standards de segurança alimentar e deficiências nas redes de distribuição – dificilmente consegue sair do nível de subsistência, com toda a precariedade que acarreta. No comércio a retalho é visível como a presença de lojas ligadas a grupos estrangeiros vêm ganhando espaço em todo o território nacional, chegando ao ponto de, em algumas ilhas, terem atitudes monopolistas. Foi notório como o empresariado nacional na construção saiu beliscado dos investimentos nas obras públicas durante a primeira metade desta década devido às opções que objectivamente favoreceram outros operadores.
Também a falta de uma política adequada para os transportes marítimos não privilegiou a classe dos armadores e, pelo contrário, contribuiu para os deixar numa situação em que poderão vir a ficar de fora da solução encontrada para garantir as ligações inter-ilhas. No sector da pesca, mesmo com o Frescomar e outras oportunidades que surgiram, não se chegou a focalizar com determinação no aumento da capacidade nacional de captura de peixes e no que poderia representar para a consolidação de privados nacionais no sector. Faltou uma estratégia deliberada nesse sentido, como faltou noutros sectores designadamente os ligados às tecnologias de informação e comunicação em que o foco na NOSI impediu que oportunidades outras, designadamente nas chamadas Business Processing Operations (BPOs), fossem consideradas e apoiadas. A ausência de uma estratégia para o sector privado nacional mostrou-se ainda mais quando investimentos de grande dimensão se realizavam no turismo e não houve preocupação sistemática para procurar pontos de entrosamento com a actividade empresarial nacional na perspectiva de a fortalecer, de a incentivar a ser competitiva e de a elevar em qualidade. Devia ser a oportunidade, há muita esperada, de dar o salto na actividade privada do país sob estímulo de uma procura externa intensa, permanente e próxima, ou seja de “exportar cá dentro”. As situações caóticas permitidas na ilha do Sal e da Boavista são consequência dessa ausência de políticas que ainda mais sacrificam as pessoas que vão ali trabalhar, negando-lhes qualidade de vida e os meios para se valorizarem e crescerem com a expansão do turismo nas suas vertentes possíveis.
A UNCTAD do sistema das Nações Unidas, no seu último relatório de Novembro de 2018 sobre a importância do empreendedorismo na transformação estrutural dos países menos desenvolvidos (LCD), foi clara em dizer que muitas vezes o discurso do empreendedorismo é feito só na perspectiva de auto emprego, de combate à pobreza e de melhoria de qualidade de vida. Ou seja, a acção do Estado, e de outras entidades próximas, fica pela promoção do empreendedorismo de necessidade e não dá a devida atenção ao empreendedorismo de oportunidade, aquele que pode operar transformações estruturais passíveis de garantir sustentabilidade futura ao desenvolvimento do país. No relatório insiste-se nas políticas industriais dirigidas, para fazer crescer o sector privado nacional em áreas chave e estratégicas, na perspectiva de exportação ou de criar aglomerados de empresas conexas. Aconselha-se que se optimize o impacto dos investimentos externos com uma maior articulação com empresas nacionais fornecedoras de bens e serviços. Diz-se claramente que o Estado não deve ficar pelo financiamento, deve ir mais além e apoiar o empreendedor em várias fases do seu negócio, designadamente no desenvolvimento do produto e dos mercados e em ganhar dimensão, como aliás fazem os fundos de capital de risco em vários países. Outro instrumento que aconselham a usar para estimular é o aprovisionamento em bens e serviços no quadro de uma política clara e transparente e que revele opções, sofisticação de procura e visão de futuro, como fez a Costa Rica para dar espaço e incentivar o sector privado a desenvolver-se no sentido escolhido.
Os países bem sucedidos na luta pelo desenvolvimento não foram certamente os que que se deixaram ficar por slogans como start ups e adopção de modismos à volta da inovação e empreendedorismo. Já se teve disso no passado recente e vê-se onde o país e o seu sector privado se encontram neste momento. Como frisa o relatório citado há que se ultrapassar esses discurso e mover-se decididamente com políticas compreensivas e abrangente para a transformação estrutural do país, a exemplo do que os países bem sucedidos fizeram. Continuar a falar do sector privado e vê-lo a mirrar todos os dias, a perder oportunidade, a não ser competitivo e a frustrar-se com a indiferença do Estado não é o que certamente se pretende. O país é pequeno e amiúde revela falhas de mercado, ou insuficiência no funcionamento, que o mercado por si só não consegue desenvolver. Aí precisa do Estado empreendedor de que fala Mariana Mazzucatto e encontra respaldo no exemplo de vários países desenvolvidos. Nesses países, o Estado teve um papel decisivo para darem o salto em frente, crescerem e internacionalizarem-se. Por ai é que se tem que caminhar, para que finalmente o sector privado possa desempenhar esse prometido papel preponderante.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 887 de 28 de novembro de 2018.