É a hora do sector privado?

PorHumberto Cardoso, Director,3 dez 2018 6:00

​Há anos que governantes de todos os quadrantes políticos vêm prometendo delegar para o sector privado um papel preponderante na economia nacional. Uns talvez façam a promessa com convicção e outros nem tanto. E assim é porque após a queda do muro de Berlim e do desmoronar das economias estatizadas e de planificação central já ninguém defende a marginalização ou o aniquilamento da economia privada. Também há que ter em conta os incentivos para se estar em sintonia, pelo menos formalmente, com os relatórios das organizações multilaterais que insistem na importância do sector privado e põem ênfase particular no empreendedorismo e no seu papel na criação de empregos e no crescimento económico.

Não fica, pois, nada fácil escapar ao “discurso” dominante, ou pretender que não se o absorve nos programas de governação quando os tempos, o envolvente externo e as dependências múltiplas o favorecem. O problema é que os anos e os governos passam e, independente de mais ou menos convicção na promoção do sector privado, o panorama global fundamentalmente não se muda muito e a centralidade do Estado na economia mantém-se.

De facto, na prática, não se nota evolução significativa no sector privado capaz de desencadear a transformação estrutural essencial para o desenvolvimento sustentado do país. A conexão com o investimento externo ainda não é suficientemente expressiva. Nichos ou segmentos dinâmicos do mercado interno e externo estão por ser identificados. Os investimentos públicos não se têm mostrado particularmente vantajosos para o empresariado nacional. O aprovisionamento do Estado em bens e serviços não dá sinais claros de fazer parte de uma política compreensiva de apoio e estímulo à actividade económica local e nacional. A preocupação com o financiamento tem dado resultados na facilitação de crédito bancário, mas muito aquém do esperado. As dificuldades das empresas são múltiplas e não se resumem ao financiamento, mas têm também a ver com a relação com a administração pública burocratizada, os custos de factores, os problemas de transportes, concorrência desleal e falta de regulação, o que facilita a actividade informal.

Não espanta que após longos anos de discurso, supostamente a favor de uma economia de iniciativa privada, o que se constata no país é que se estará perante um sector em algumas áreas estagnado, noutras em retirada e noutras ainda com alguma dinâmica e mesmo mostrando potencialidade, mas já sem evidente possibilidade de ir mais além. A agricultura sem muitos produtos de alto valor acrescentado e com limitações de mercado – entre outras razões por causa de transportes, standards de segurança alimentar e deficiências nas redes de distribuição – dificilmente consegue sair do nível de subsistência, com toda a precariedade que acarreta. No comércio a retalho é visível como a presença de lojas ligadas a grupos estrangeiros vêm ganhando espaço em todo o território nacional, chegando ao ponto de, em algumas ilhas, terem atitudes monopolistas. Foi notório como o empresariado nacional na construção saiu beliscado dos investimentos nas obras públicas durante a primeira metade desta década devido às opções que objectivamente favoreceram outros operadores.

Também a falta de uma política adequada para os transportes marítimos não privilegiou a classe dos armadores e, pelo contrário, contribuiu para os deixar numa situação em que poderão vir a ficar de fora da solução encontrada para garantir as ligações inter-ilhas. No sector da pesca, mesmo com o Frescomar e outras oportunidades que surgiram, não se chegou a focalizar com determinação no aumento da capacidade nacional de captura de peixes e no que poderia representar para a consolidação de privados nacionais no sector. Faltou uma estratégia deliberada nesse sentido, como faltou noutros sectores designadamente os ligados às tecnologias de informação e comunicação em que o foco na NOSI impediu que oportunidades outras, designadamente nas chamadas Business Processing Operations (BPOs), fossem consideradas e apoiadas. A ausência de uma estratégia para o sector privado nacional mostrou-se ainda mais quando investimentos de grande dimensão se realizavam no turismo e não houve preocupação sistemática para procurar pontos de entrosamento com a actividade empresarial nacional na perspectiva de a fortalecer, de a incentivar a ser competitiva e de a elevar em qualidade. Devia ser a oportunidade, há muita esperada, de dar o salto na actividade privada do país sob estímulo de uma procura externa intensa, permanente e próxima, ou seja de “exportar cá dentro”. As situações caóticas permitidas na ilha do Sal e da Boavista são consequência dessa ausência de políticas que ainda mais sacrificam as pessoas que vão ali trabalhar, negando-lhes qualidade de vida e os meios para se valorizarem e crescerem com a expansão do turismo nas suas vertentes possíveis.

A UNCTAD do sistema das Nações Unidas, no seu último relatório de Novembro de 2018 sobre a importância do empreendedorismo na transformação estrutural dos países menos desenvolvidos (LCD), foi clara em dizer que muitas vezes o discurso do empreendedorismo é feito só na perspectiva de auto emprego, de combate à pobreza e de melhoria de qualidade de vida. Ou seja, a acção do Estado, e de outras entidades próximas, fica pela promoção do empreendedorismo de necessidade e não dá a devida atenção ao empreendedorismo de oportunidade, aquele que pode operar transformações estruturais passíveis de garantir sustentabilidade futura ao desenvolvimento do país. No relatório insiste-se nas políticas industriais dirigidas, para fazer crescer o sector privado nacional em áreas chave e estratégicas, na perspectiva de exportação ou de criar aglomerados de empresas conexas. Aconselha-se que se optimize o impacto dos investimentos externos com uma maior articulação com empresas nacionais fornecedoras de bens e serviços. Diz-se claramente que o Estado não deve ficar pelo financiamento, deve ir mais além e apoiar o empreendedor em várias fases do seu negócio, designadamente no desenvolvimento do produto e dos mercados e em ganhar dimensão, como aliás fazem os fundos de capital de risco em vários países. Outro instrumento que aconselham a usar para estimular é o aprovisionamento em bens e serviços no quadro de uma política clara e transparente e que revele opções, sofisticação de procura e visão de futuro, como fez a Costa Rica para dar espaço e incentivar o sector privado a desenvolver-se no sentido escolhido.

Os países bem sucedidos na luta pelo desenvolvimento não foram certamente os que que se deixaram ficar por slogans como start ups e adopção de modismos à volta da inovação e empreendedorismo. Já se teve disso no passado recente e vê-se onde o país e o seu sector privado se encontram neste momento. Como frisa o relatório citado há que se ultrapassar esses discurso e mover-se decididamente com políticas compreensivas e abrangente para a transformação estrutural do país, a exemplo do que os países bem sucedidos fizeram. Continuar a falar do sector privado e vê-lo a mirrar todos os dias, a perder oportunidade, a não ser competitivo e a frustrar-se com a indiferença do Estado não é o que certamente se pretende. O país é pequeno e amiúde revela falhas de mercado, ou insuficiência no funcionamento, que o mercado por si só não consegue desenvolver. Aí precisa do Estado empreendedor de que fala Mariana Mazzucatto e encontra respaldo no exemplo de vários países desenvolvidos. Nesses países, o Estado teve um papel decisivo para darem o salto em frente, crescerem e internacionalizarem-se. Por ai é que se tem que caminhar, para que finalmente o sector privado possa desempenhar esse prometido papel preponderante.


Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 887 de 28 de novembro de 2018.

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Autoria:Humberto Cardoso, Director,3 dez 2018 6:00

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  3 dez 2018 6:00

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