Ilhéu de Contenda

PorManuel Brito-Semedo,30 dez 2018 10:51

“Entre gente de sobrado, de loja e de funco nasci e vivi. Nunca cheguei a perceber bem qual o lugar me coube nessa sociedade. Por isso, este livro é de todos e para todos” – Teixeira de Sousa, Ilhéu de Contenda, 1978

Concluído em 24.Abril.1974, Ilhéu de Contenda, o primeiro romance de Teixeira de Sousa (Fogo, 1919 – Oeiras, 2006), foi dado à estampa em 1978 pela editorial O Século, fazem agora 40 anos, uma efeméride que bem poderia ser assinalada entre nós com uma nova edição da obra. O livro, que teve uma segunda edição/reimpressão em 1983, encontra-se esgotado há muito.

“Ilhéu de Contenda” é um signo (sobrado) que remete para a micro sociedade foguense cuja história é recriada de forma ficcionada (livro) e que depois passa para o cinema (filme).

Sobrado tradicional

Ilhéu de Contenda deveu-se a um sobradão, uma casa tradicional pertencente a Dona Micaela Medina da Veiga, viúva de um dos últimos morgados da ilha, situada em São Lourenço, um “sobrado que sobrou dos sobrados soçobrados orgulho-ilusão duma classe que o tempo destroçou”.

Henrique Teixeira de Sousa considerou existir na ilha do Fogo em 19401 quatro classes sociais: Brancos, Mulatos ou Mestiços, filhos de pai branco e mãe mulata ou preta, e a classe a que pertence o Povo. Não se tratando, contudo, de uma divisão puramente étnica, mas, em grande parte, social e económica.

Situação idêntica àquela que ficou registada num finaçom, um texto popular do interior da ilha de Santiago2:

Branco ta morâ na sobrado, | Branco mora no sobrado

Mulato ta morâ na loja | Mulato mora na loja

Nêgo ta mora na funco, | Negro mora no funco (cabana)

Sancho ta mora na rotcha. | Sancho (o macaco) mora na rocha

Nessa altura, segundo Teixeira de Sousa, encontravam-se alguns brancos dos falhados na classe média, brancos que ainda conheceram os seus dias de glória. Famílias havia que em tempos viveram à larga e que estavam reduzidos à miséria.

Ta bem um dia, | Virá um dia

Nhô Trasco Lambasco, | Nhô Trasco Lambasco (o macaco)

Rosto frangido, | Rosto franzido

Rabo comprido, | Rabo comprido

Ta corrê co nego di funco, | Correrá com o negro do funco

Mulato co branco di sobrado, | O mulato correrá com o branco do sobrado

Branco ta ba rotcha, el ta tomba… | O branco irá para a rocha, irá tombar

O factor e a dinâmica da emigração, sobretudo para os Estados Unidos da América, favorece economicamente os mulatos que, juntamente com os mestiços, ascendem e ocupam os lugares a que antes não tinham acesso, fazendo deles agricultores da terra e grandes comerciantes. E, com isso, há uma nova reconfiguração da estrutura social na ilha.

Romance

Ilhéu de Contenda é o primeiro romance de uma trilogia – seguiram Xaguate (1987) e Na Ribeira de Deus (1992) – que retrata a sociedade foguense, cheia de preconceitos, própria de uma remanescente sociedade escravocrata.

Na verdade, a narração dessa história não é feita de forma linear, ocupando-se Ilhéu de Contenda da primeira metade dos anos 60; Xaguate, dos anos 80; e Na Ribeira de Deus, dos anos de 1918 e 1919. Nesse caso, a linha temporal da história da sociedade foguense é narrada de forma diacrónica nos seguintes romances: Na Ribeira de Deus, seguida de Ilhéu de Contenda, fechando com Xaguate.

Em Ilhéu de Contenda a história situa-se num período de grandes mudanças na ilha do Fogo, em que a velha aristocracia começa a desagregar-se e a ser substituída por uma nova classe, a dos mulatos.

Na miséria, com os negócios a correrem mal e com dívidas por pagar, são pequenos comerciantes, pequenos funcionários, proprietários e condutores de camião, enfim, é a degradação económica e moral de uma classe preconceituosa, soberba, orgulhosa e cheia de vícios.

Eusébio, a personagem condutora da acção, é movido pelos instintos básicos, comer bem e sexo; Ludjero é viciado no jogo do azar; Alberto é interesseiro; Esmeralda é ociosa, fútil e pretensiosa; Felisberto, mais que nenhum dos outros, parece acompanhar a deterioração do seu velho camião, é delator da PIDE.

O romance acaba por ser um tratado sócio-antropológico das gentes do Fogo, escrito por quem nasceu e viveu entre gente de sobrado, de loja e de funco.

Filme

Realizado em 1995 pelo cineasta Leão Lopes, o filme é uma adaptação do romance homónimo de Teixeira de Sousa. Segundo o seu realizador, “o primeiro filme cabo-verdiano, de facto foi totalmente realizado com financiamentos externos. Cabo Verde não entrou com um centavo”. O país comemorava os 20 anos da independência e vivia os primeiros anos em regime de democracia multipartidária.

O filme é a história do último descendente de uma antiga família de proprietários da ilha do Fogo. O guião foi escrito por Leão Lopes e José Fanha. Os actores eram quase todos portugueses.

“Do alto da varanda do sobrado, na inevitável brancura do seu fato, Eusébio observa tudo com evidente satisfação. Fuma com prazer uma cigarrilha. Bebe um pequeno e bem saboreado trago de grogue. Pousa o copo numa mesinha ao seu lado repleta de copos e garrafas.”
Assim começa a história do último descendente da gente branca da ilha do Fogo. Com ele é a própria história da Ilha que nos chega.

Em entrevista recente a este jornal [cf. Expresso das Ilhas n.º 885 de 14 de Novembro de 2018], Leão Lopes explicou que o filme fez um honroso percurso em nome de Cabo Verde tendo participado em vários festivais internacionais de cinema, nomeadamente Cannes, Nova Iorque, Montreal, Milão e Ouagadougou onde foi premiado.

1 “A estrutura social da Ilha do Fogo em 1940”, Claridade, N.º 4, Setembro de 1947.

2 “Finaçom”, Claridade, N.º 6, Julho de 1948.

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 891 de 24 de Dezembro de 2018.

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Autoria:Manuel Brito-Semedo,30 dez 2018 10:51

Editado porAntónio Monteiro  em  30 dez 2018 10:51

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