O ano de 2018 não foi fácil para esta nação crioula em vários aspectos: presistem tensões e crispações sociais e políticas várias, que dividem muito a nação, e os objectivos de desenvolvimento económico estão longe de ser alcançados, designadamente nas regiões denominadas periféricas do país, que continuam a não ver a luz ao fundo do túnel, apesar de alguns progressos e dos esforços feitos nesse sentido.
A própria atribuição do Dia Nacional da Morna não foi um processo fácil. Apesar da esmagadora maioria dos entendidos na matéria considerar B. Leza o mais genial compositor de mornas e haver já um reconhecimento de que a morna como a conhecemos é beleziana, como afirma Adalberto Silva (Betú), o genial compositor de mornas desta geração, parece que houve algumas resistências “estranhas” a esse reconhecimento, talvez por motivos ideológicos e até bairristas, o que, no último caso, demonstra algum atraso no nosso processo civizacional.
Mas corações ao alto, que estamos na quadra festiva mais bonita do calendário, em tempo de Boas Festas, de reencontro de familiares e amigos, todos com uma indisfarçável e contagiante expressão de felicidade estampada no rosto, num clima convidativo, onde reinam palavras como AMOR, SOLIDARIEDADE, SAUDADE, FELICIDADE e outras afins.
É a época do ano em que expiamos os nossos pecados egoístas e individualistas, cometidos durante o ano, neste mundo de atropelos constantes.
Há quem não goste da quadra e prefira criticar, dizendo que devia ser assim o ano todo, outros criticam o consumismo da época, ou seja, comme d’habitude, não faltam “aziados” que cavalgam a onda do contra, da má disposição permanente, etc. É pena que assim seja, e a esses só nos resta desejar que mudem de atitude, aproveitando o espírito de irmandade da época.
Eu sou dos que prefere vivenciar o lado positivo de todas as festividades (e da vida) e por isso estou, como sempre, nas minhas sete quintas. Até postei, (coisa rara), a vermelho no Facebook a seguinte mensagem:
“Há quem não goste do Natal, outros do Carnaval e outros dos Festivais. Eu gosto de todas as festas e até das que ainda não foram inventadas!”
Para bom entendedor, um bom post chega!
Em coerência festejei com especial júbilo o primeiro Dia Nacional da Morna, que aconteceu a 3 de Dezembro de 2018, uma data que ficará para sempre na História desta nação. Uma data especial, fruto da votação por unanimidade no Parlamento cabo-verdiano da lei que consagra o dia de nascimento do compositor mindelense Francisco Xavier da Cruz (B.Leza), como o Dia Nacional da Morna, fazendo desse dia um dia de homenagem permanente a todos os compositores, músicos e intérpretes da morna. Parabéns aos nossos deputados da nação, às forças políticas e ao Ministério da Cultura!
A morna é sem dúvida o símbolo musical maior da cabo-verdianidade, como defendi no título desta crónica de passagem de ano. E a música é sem dúvida um dos vectores maiores da afirmação da cultura crioula cabo-verdiana.
Em Dezembro de 2014, escrevi uma crónica intitulada “A B.Leza do Dia Nacional da Morna”, onde me insurgi pelo facto do país ainda não ter (na altura) um Dia Nacional da Morna, apesar de nessa altura o compositor e músico Vasco Martins já ter apresentado um ano antes uma proposta devidamente fundamentada de escolha do dia 3 de Dezembro.
Recupero algumas frases que escrevi dessa crónica:
“A morna é a expressão máxima da cultura musical cabo-verdiana. É o género musical que une todos os cabo-verdianos na terra e na diáspora, podendo-se dizer que é o que mais os identifica. Frases que merecem a concordância nacional.”
“É igualmente uma autêntica bandeira deste país além-fronteiras, pois é também o género musical cabo-verdiano mais conhecido e com o qual as pessoas identificam Cabo Verde e os cabo-verdianos.”
Nessa mesma linha, Humberto Cardoso, com a qualidade que sempre nos habituou, escreveu um editorial neste jornal no passado dia 5 de dezembro, que considerei particularmente brilhante. Cito alguns excertos:
“Interessante como a reunião à volta da morna é universal no mundo cabo-verdiano. Aliás, como também é a língua crioula. Abrange todas ilhas, perpassa todos os extractos sociais, chega a todas as idades e é acarinhada em todas as comunidades emigradas. Neste aspecto difere por exemplo do reggae que há poucos dias foi reconhecida pela Unesco como Património Imaterial da Humanidade. Segundo a nota da Unesco, o reggae era voz dos marginalizados na ilha de Jamaica que depois foi adoptada por vários outros grupos étnicos e religiosos contribuindo para o discurso internacional em matéria de injustiça, resistência, amor e humanidade. Já a morna não é evidente que tivesse uma origem em algum extracto da sociedade e expressasse algum tipo de resistência. Era cantada e sentida por toda gente. Reflectia a condição humana nas ilhas com as suas dificuldades e aspirações e também os dilemas postos por uma vivência num ambiente de escassez, de falta de oportunidades e de futuro incerto. Apropriada por todos, conferia uma identidade, uma ideia de pertença que não se afirmava em contraposição a outros próximos ou menos próximos mas que pelo contrário unia a todos num destino comum”.
Nunca me tinha apercebido desta diferença fundamental, aqui brilhantemente explicada por HC. Como todos os jovens da minha geração, fui e sou um fã incondicional de Bob Marley e do reggae. Em maio de 2016 escrevi inclusive uma crónica intitulada “Bob Marley, o intemporal poeta crioulo da paz e da concórdia”, uma das que mais gozo me deu escrever. Mas há de facto uma enorme diferença de génese do reggae da morna.
HC escreve ainda: “Nestes tempos em que por todo o mundo nações ameaçam fracturar-se na busca incessante por identidades na base étnica, religiosa, racial e género, é reconfortante para o cabo-verdiano perceber que a sua morna é um cimento forte que mantém intacta a ideia de pertença à caboverdianidade, não interessando onde a pessoa se encontra no momento, seja no país, nas comunidades emigradas ou em qualquer parte do mundo.”
Não resisto a pedir emprestado mais um delicioso e assertivo parágrafo do editorial de HC, com o qual não poderia estar mais de acordo:
“A ideia da nação cabo-verdiana é muito anterior à independência. Não é uma identidade conseguida em oposição ao outro como poderiam sugerir as noções hoje datadas de “nação forjada na luta contra o colonialismo”. Nem é uma identidade que se reforça em resistências intermináveis e patéticas contra a língua portuguesa com as consequências que já são conhecidas de todos. Nem muito menos no resgate de um passado escravocrata que só serve para inverter o percurso já feito há quase um século de emergência da consciência da caboverdianidade tão bem expressa na morna e na literatura dos claridosos. Quem produziu as canções, os livros, contos e poemas e também quem reconheceu toda essa obra como sua e dela se apropriou não quis apresentar-se ao mundo como vítima ou como descendentes de escravos. Quiseram sim, ser vistos como um povo que apesar das agruras da existência nas ilhas nunca perdeu o alento, nem alegria de viver e nem tão pouco a esperança no futuro enfrentando as dificuldades da vida no país e no estrangeiro com o orgulho de ter nascido cabo-verdiano. Este é o legado que eles nos deixaram e que todos os anos deve ser renovado no Dia Nacional da Morna que nos faz sentir cabo-verdianos.”
Várias vezes defendi aqui neste espaço que considero como os Pais Fundadores da Nação Cabo-verdiana figuras como Pedro Cardoso, Luiz Loff Vasconcelos, Eugénio Tavares e José Lopes a que se juntam Baltazar Lopes e os demais claridosos. Francisco Xavier da Cruz (B.Leza) faz parte desse lote! O seu contributo fundamental para a morna, que a transformou no que é hoje, agora devidamente reconhecida com a atribuição do Dia Nacional da Morna ao dia do seu nascimento, coloca-o sem dúvida no grupo dos que fundaram a identidade crioula cabo-verdiana, garantindo-lhe um cariz único como a primeira nação crioula do pós-Descobrimentos.
Tudo isso sem desprimor pelos que lutaram pela independência de Cabo Verde e dos que lutaram pela democracia, etapas políticas recentes e importantes do processo de afirmação desta nação que existe há centenas de anos. Cabo Verde foi nação muito antes de ser um país independente e a morna é uma das provas disso, com os seus cerca de cem anos de existência.
A candidatura da Morna a Património Imaterial da Humanidade, entregue à UNESCO em março deste ano deve ser por isso um factor mobilizador e unificador da nação cabo-verdiana. Que assim seja, para que essa energia positiva resulte nesse tão almejado objectivo.
Nesta passagem de ano, gostaria de dedicar a todos os leitores um Novo Ano com tudo de bom. Que 2019 seja um ano pleno das realizações mais desejadas por todos.
Que ouçamos, cantemos e divulguemos mais mornas e através delas reforcemos o nosso sentido de pertença à nação cabo-verdiana. Deixo-vos, a título de sugestão, um extracto da proposta por Vasco Martins para justificar a escolha do Dia Nacional da Morna:
“B. Léza compôs umas 5 dezenas de mornas e nunca se repetiu. Cada morna constitui um diamante polido numa bandeja de prata banhada pela Lua. Mornas como “Eclipse”, “Talvez”, “Isolada”, “Miss Perfumado”, “Lua nha Testemunha”, “Segred cu mar”, “Resposta de segred cu mar”.
O mês de dezembro, tão especial nos países de matriz judaico-cristã como é o nosso, ganha assim um novo elan, com esta escolha do Dia Nacional da Morna. É o mês em que nasceu B.Leza, é o mês em que nos deixou Cesária Évora, a nossa Diva dos Pés Nús, que aprendeu a cantar mornas com o seu padrinho B.Leza e a levou aos quatro cantos deste planeta, dando a maior contribuição individual para a afirmação mundial de Cabo Verde.
Bem-haja Cabo Verde, bem-haja a afirmação da cabo-verdianidade livre de imposições ideológicas e bem-haja a candidatura da Morna a Património Imaterial da Humanidade.
Boas Entradas e festejem a vida!
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 892 de 2 de Janeiro de 2019.