Caboverdianidade sem complexos

PorHumberto Cardoso, Director,4 mar 2019 6:33

​Na semana passada, 21 de Fevereiro, celebrou-se mais um Dia da Língua Materna. Como de há muito acontece nessa data foi mais uma oportunidade para as opiniões se dividirem à volta do crioulo. Há quem insista na urgente oficialização do crioulo e há outros que perguntam qual é a pressa. O Presidente da República aconselha “a definição de regras claras para a sua escrita” e que isso seja feito “num espaço de tempo razoável”.

 O Governo através do Ministério da Cultura em comunicado diz que quer “prosseguir com a sua oficialização através da Constituição da República e por fim avançar com a padronização”. Acrescenta ainda que a “padronização é moroso e pode levar duas ou três gerações para que ela passe a ser assumida naturalmente pela sociedade”. A Constituição da República no nº2 do artigo 9º parece apontar num outro sentido ao determinar que “o Estado deve promover as condições para a oficialização da língua materna cabo-verdiana, em paridade com a língua portuguesa”. Supõe-se que já havendo reconhecimento do crioulo no texto constitucional trata-se é de dar o passo seguinte de também ser língua escrita o que só é possível depois da padronização. Destes aparentes desencontros em como proceder não é de estranhar que hajam dúvidas quanto às prioridades, que surjam agendas dos mais apressados para acelerar o processo e que se ouçam vozes a aconselhar prudência para que a questão não seja factor de divisão quando, como bem lembra o PR na sua mensagem, o crioulo é “um dos principais traços de união entre os caboverdianos”.

A enfase no discurso repetido todos os anos a propósito do Dia da Língua Materna tem sido posta na oficialização do crioulo como acto indispensável para a dignificação da língua. E aí é que começam as divergências, porque vê-se na relação do cabo-verdiano com a sua língua que ela não precisa ser oficializada para ter dignidade. Aliás, a relação que há séculos todos os cabo-verdianos independentemente da sua origem, posição socioeconómica e nível de educação têm com a sua língua materna, visível na forma como é expressa em todos os momentos da sua vida e em particular na sua música, não deixa entender que o seu uso é acompanhado de qualquer sentimento de inferioridade. Mesmo oficialmente ninguém se sente diminuído porque recorre ao crioulo para se comunicar no parlamento, ou enquanto membro do governo ou na qualidade de presidente da república, nem tão pouco quando trata com a administração pública e depõe nos tribunais. A diferença com a língua portuguesa é que a sua escrita ainda não está padronizada para que designadamente os documentos da administração pública e a comunicação oficial do Estado possam ser escritos nas duas línguas. Trazer a questão da dignidade quando não há uma relação de opressão e de subjugação – Cabo Verde é independente há mais de 43 anos – só contribui para pôr as duas línguas em rota de colisão. No processo criam-se anticorpos na aprendizagem do português com evidentes prejuízos para o esforço, essencial para o exercício pleno da cidadania, de tornar os caboverdianos fluentes nas duas línguas.

Reduzir problemas complexos à questão de dignidade é sempre útil para aqueles cujo objectivo central é reforçar a identidade das vítimas versus os opressores ou simplesmente a do “nós”contra os “outros”. Na época actual em que proliferam políticas identitárias e em que questões fracturantes trazem vantagens diversas a quem se apresenta como resistência face à opressão de toda espécie, seja real ou virtual, a tentação é grande para se enveredar por esse caminho. Quantas carreiras políticas e também noutras áreas não foram assim fabricadas supostamente para terminar a opressão, para dar força à resistência ou para restituir a dignidade. A verdade é que na generalidade dos casos o problema não é de facto resolvido mas as divisões na sociedade persistem e tendem a tornar-se extremas. As divisões e os desencontros por causa do crioulo não são de hoje e tudo leva a crer que vão se repetir e poderão aprofundar-se considerando os ventos de feição que hoje sopram em todo o mundo. Os seus efeitos em particular na aprendizagem da língua portuguesa e na qualidade do ensino em geral não deixarão de se fazer sentir. A exemplo de outras sociedades que se deixaram apanhar nesse tipo de armadilhas, o mais provável é que aumente a debandada dos com maiores posses para colocar os filhos em escolas privadas.

Cabo Verde não devia estar a confrontar-se com certo tipo de divisões culturais com que outras nações se deparam. A consciência da caboverdianidade vem de longe e é muito anterior à independência. É evidenciada na língua, na música, na literatura e em várias outras manifestações de cultura, mas opções várias de política terão levado a que não se aprofundasse o conhecimento do processo da emergência dessa consciência nacional. O estudo do passado ficou demasiado sujeito a conveniências várias. Curioso que dias atrás por ocasião do 70º aniversário do desastre da Assistência o historiador António Correia e Silva tenha chamado a atenção para o aparente esquecimento das fomes periódicas com milhares de mortes que assolaram o arquipélago durante séculos até a última fome de 1947. Parece que o país esteve demasiado tempo a entreter-se na consolidação de uma herança escravocrata enquanto as fomes que a sua literatura narra nas obras de Manuel Lopes, Baltasar Lopes, Luís Romano, Teixeira de Sousa e de muitos outros escritores e poetas ficavam num segundo plano. Talvez porque nas fomes as causas eram fundamentalmente as secas enquanto falar da escravatura permitia mais facilmente desenvolver uma cultura de vitimização mais conducente com a “escolha do destino africano” feito no acto de proclamação da independência de Cabo Verde.

Depois dessa “escolha”, o esforço de reafricanização dos espíritos que se seguiu só podia levar a divisões como a referida à volta do crioulo assim como ao aparecimento de outras linhas de fractura à medida que a história dos cinco séculos de existência era submetida a análises de conveniência e a procura de conformidade com a ideologia desses tempos e a racionalidades de poder. Para se distanciar o crioulo do português e fazer dele uma língua de resistência tinha-se que se deixar a escrita etimológica usado nos trabalhos de Eugénio Tavares, Pedro Cardoso, Ovídio Martins, Luís Romano e outros para adoptar o ALUPEC, como se a base lexical do crioulo não fosse quase toda ela de origem portuguesa. A crise identitária que se abriu com ofensivas em várias outras áreas para além da linguística deixaram feridas na sociedade que se podem descortinar nas disputas entre ilhas, em certos discursos políticos e na atribuição de valor ao património cultural prejudicando a coesão do país. Infelizmente, o processo erosivo continua porque as instituições do Estado em geral com destaque para o sistema educativo dão seguimento ao trabalho de outrora. O Estado democrático dá sinais de se ter mantido refém do passado e por isso as divisões na sociedade e a crise identitária aprofundam-se, enfraquecendo a vontade da nação, dificultando uma visão do todo nacional e deixando espaço para que lógicas identitárias das mais nocivas possam desenvolver. Há que reverter a situação e fazer da afirmação da caboverdianidade sem complexos a chave para um futuro de desenvolvimento.


Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa doexpresso das ilhasnº 900 de 27 de Fevereiro de 2019.

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Autoria:Humberto Cardoso, Director,4 mar 2019 6:33

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  4 mar 2019 6:33

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