As escolas estão de portas fechadas, por causa da greve dos professores. O país encontra-se em pleno período de campanha eleitoral. Uma campanha em tempo de carnaval. O carnaval multiétnico guineense tem merecido destaque positivo junto da opinião pública nacional e international. Ao passo que a política, desde a independência (1973/1974) e mesmo após à abertura política (com as eleições multipartidárias em 1994), tem colocado o país numa situação bastante negativa aos olhos do mundo. Isto devido aos problemas não resolvidos da guerra de libertação, ao regime de partido único instalado com a independência e ao subsequente regime militar instaurado pouco depois (1980), aos recorrentes golpes de Estado, à guerra civil e à permanência da instabilidade política num contexto de democracia liberal (nenhum presidente eleito nem governo conseguiu completar com sucesso um mandato, sendo que apenas a actual legislatura chegou ao fim).
Tudo parece estar em aberto. Dos vinte e um partidos políticos em disputa nestas eleições, três têm vindo a intensificar as suas acções de campanha pelo país, num renhido braço de ferro, cujo resultado é ainda imprevísivel: o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), o Partido da Renovação Social (PRS) e o Movimento para a Alternância Democrática da Guiné-Bissau (Madem-G15), este último composto por dissidentes do primeiro. Os 46 anos de independência, a crise política em que o país se mergulhou, a transição democrática incompleta e as novas promessas de desenvolvimento são debatidos com fervor ou cepticismo.
Entre Senegal (Norte), Guiné-Conacri (Sul e Leste) e o Atlântico (Oeste), a actual GuinéBissau é um dos Estados da costa da África Ocidental com a mais longa e controversa relação histórica com o arquipélago de Cabo Verde. Recorda-se que, ambos subordinados ao domínio colonial português, Cabo Verde e Guiné-Bissau (que chegou a ser designada por «Guiné de Cabo Verde» e, mais tarde, por «Guiné Portuguesa») tiveram uma administração comum entre 1550 e 1879, altura em que houve a desanexação do distrito da Guiné da província de Cabo Verde, tendo então aquele território sido dotado de um governo-geral independente deste arquipélago.
É de realçar que, no decurso dessa história colonial, muitos cabo-verdianos foram usados pela antiga potência imperial (Portugal) na administração colonial da Guiné-Bissau, o que engendrou um mal-estar que persiste no tempo. A divergência entre esses dois territórios, na época colonial, prendia-se com esse facto de muitos funcionários coloniais, desde Honório Pereira Barreto (que exerceu os mais altos cargos da sua época) a vários chefes de posto ilustres e anónimos, na GuinéBissau, terem sido naturais das ilhas ou guineenses de ascendência caboverdiana.
Uma vez que, no arquipélago de Cabo Verde, a instrução escolar de base eclesiástica, privada e pública foi relativamente mais desenvolvida, havia a consciência de que existiam maiores possibilidades para os cabo-verdianos conseguirem emprego do que para os filhos da GuinéBissau. Ao pé da letra, isto podia significar que, tendo sido um pouco mais privilegiados pelo sistema colonial, os cabo-verdianos retiravam as oportunidades aos guineenses. Isto era tão óbvio que nem o movimento libertador conseguiu superar esta divergência de base, a tal ponto de, como tudo indica, Amílcar Cabral (líder da luta de libertação da Guiné e Cabo Verde, filho de pai e mãe cabo-verdianos) ter pago com a própria vida o preço de uma unidade politicamente semiforçada e Luís Cabral (primeiro Presidente da República da Guiné-Bissau), outro guineense filho de pai cabo-verdiano (e mãe portuguesa), ter sido deposto por um golpe militar do Movimento Reajustador de Nino Vieira, que ditou o fim da unidade política Guiné e Cabo Verde.
O carnaval multiétnico guineense tem merecido destaque positivo junto da opinião pública nacional e international. Ao passo que a política, desde a independência (1973/1974) e mesmo após à abertura política (com as eleições multipartidárias em 1994), tem colocado o país numa situação bastante negativa aos olhos do mundo.
Não obstante, havia a percepção que a divergência entre Guiné-Bissau e Cabo Verde era menor do que aquelas que existiam internamente em cada um desses territórios, isto porque, a divergência entre esses dois países limitava-se à designada «pequena burguesia autóctone», circunscrevendo-se a uma estratégia de busca de emprego, de bons lugares nos interstícios da administração colonial e, mais tarde, nas estruturas do partido-Estado.
Este facto histórico tem sido utilizado de várias maneiras, com base numa mesma lógica de dividir para reinar: na época colonial, era utilizado pelos agentes do colonialismo português para opor os guineenses em relação aos cabo-verdianos, desviando as atenções do facto colonial e das estratégias de implantação colonial para lá das zonas costeiras e de efectivação da colonização do interior; nos dias de hoje, depois das independências, tem sido frequentemente utilizado para enaltecer apenas o contributo da Guiné-Bissau para a independência de Cabo Verde, fazendo entender que este arquipélago teria aproveitado de uma circunstância histórica e da força militar daquele território, com o único propósito de garantir a sua própria independência, e que, após alcançar esse objectivo, teria resgatado os principais quadros para a sua reconstrução nacional e deixado aquele país numa situação desfavorecida. Esse é um tipo de raciocínio que tem um fim prático e é sobejamente conhecido, pelo que não encontra acolhimento junto de pessoas comprometidas com a estabilidade, o desenvolvimento e a modernização do continente africano.
Texto originalmente publicado na edição impressa doexpresso das ilhasnº 901 de 05 de Março de 2019.