Não cheguei a perguntar aos meus avós, mas presumo que não terá sido uma decisão agradável, sobretudo para eles que tinham tido o privilégio de estudar no Seminário-Liceu de São Nicolau, confortavelmente distanciado alguns metros das respectivas casas onde cresceram na bonita vila da Ribeira Brava. A vida é assim, mudam-se os tempos, mudam-se os privilégios e os beneficiários.
Sempre ouvi dizer que o meu avô Teodoro Almada (que terá vindo a contragosto da sua ilha natal) reclamava sempre no seu bom português: “esta gente de São Vicente não dorme?!”, numa alusão à ruidosa e mundana vida noturna que encontrou na cidade adoptiva, em franco contraste com a pacatez noturna da ilha onde nasceu e cresceu. Pacatez que era comum a todas as restantes ilhas, pelo que posso presumir que essa reclamação do meu saudoso avô seria igualmente comum a todos os estudantes e respectivos familiares que vinham dos quatro cantos de um pequeno país arquipelágico e rural, para a então cosmopolita cidade-porto do Mindelo.
Não deve existir país no mundo onde não se encontre a velha “rivalidade” entre o mundo denominado rural, mais conservador e cioso das suas tradições, e a realidade urbana, sempre mais moderna e cosmopolita, propensa às novidades e avessa à manutenção do status quo (leia-se tradições). Engana-se, pois, quem possa pensar que é algo típico aqui das ilhas. Este debate é global e continua actual.
O fosso entre estas duas formas diferentes de ver e viver o quotidiano é ainda maior quando as cidades se situam em zonas ribeirinhas e associadas a portos abertos ao mundo, que inevitavelmente criam cidades de hábitos liberais que fazem corar os que prezam os “bons velhos costumes”.
Por cá, fruto dessa dicotomia, as gentes das ilhas, como eram carinhosamente apelidadas pelas gentes do Mindelo, sempre olharam para os seus conterrâneos como uns libertinos e festeiros, vingando-se dessa forma das piadas que o espírito gozão dos mindelenses os brindavam. Brigas típicas de irmãos, naturais em toda a parte do mundo.
Assisti muitas vezes a estes debates “bairristas” que muitas vezes aqueciam um pouco para além do desejável, apesar de não passarem de mero folclore.
O mais curioso disto tudo, é que o Mindelo foi habitado por gente vinda de todas as ilhas, que aqui conheceram uma vida verdadeiramente urbana e cosmopolita. Portanto os mindelenses folgazões e festeiros não são mais do que uma versão urbana dos seus pais e avós vindos do mundo rural. Uma nova geração que deixou a enxada para se dedicar à pesca, ao comércio, à indústria e à prestação de serviços a nível internacional, trabalhando ombro a ombro com britânicos, noruegueses e japoneses, para citar apenas três nacionalidades cujas línguas se falavam fluentemente no Porto Grande até por crioulos analfabetos.
A este propósito é célebre a história de um julgamento no Mindelo de um inglês que tinha assassinado um seu compatriota. Testemunha do acto, um crioulo cabo-verdiano fluente em apenas duas línguas: crioulo e inglês. Furioso, o juiz indiano, conhecido por ser severo e ter mão pesada, acabou por mandar prender o pobre crioulo por ele não dominar a língua portuguesa, um ultraje às instituições e à língua oficial do Império!
Na disciplina de Key Account Management (uma possível tradução seria gestão de clientes “especiais”) ministrada por cá no ISCEE, os alunos aprendem na literatura especializada a diferença entre o vendedor “pescador/caçador” e o vendedor “agricultor”. Este planeia as suas vendas cuidadosamente e gere os seus clientes numa relação de longo prazo, aqueles improvisam na hora, são vendedores do tipo killer, que vendem hoje e partem de seguida para outra venda, são extremamente criativos mas irrequietos. Como é óbvio, o ideal para qualquer empresa é ter uma força de vendas equilibrada com os dois tipos. Não sou sociólogo nem antropólogo, mas presumo que o mesmo se aplica aos países e às suas sociedades.
As populações que habitam zonas ribeirinhas, descendentes de pescadores, são naturalmente criativas por estarem habituadas a viver do improviso. A actividade piscatória assim o obriga. Pelo contrário, o homem do campo é forçado a aprender a planear tudo, o que molda o caracter mais reservado das populações rurais.
O Porto Grande foi durante décadas, particularmente nos de seca severa, o pulmão por onde o arquipélago respirava, segundo vários relatos oficiais. Não é difícil imaginar que as mortandades nas ilhas teriam sido muito maiores, caso não fossem as receitas do trabalho dos folgazões mindelenses que labutavam noite e dia na Baia do Porto Grande. O espírito solidário que sempre norteou a vivência desta nação, manifestou-se várias vezes quando barcos carregados de crioulos famintos chegavam das ilhas vizinhas e famílias mindelenses acorriam ao cais para ir buscar os seus irmãos e recolhê-los em suas casas. Se fosse o contrário, estamos certos de que a reação teria sido a mesma. Eu ainda conheci pessoas que foram recolhidas dessa forma por familiares meus, uma história comum a muitas famílias. E tenho particular orgulho de ser parente de dois capitães, Júlio Almada e João Lopes da Silva, recordados pela forma como carregaram gratuitamente um grande número de famintos de São Nicolau e de outras ilhas para São Vicente no navio Ribeira Brava, que lhes pertencia.
A história da cidade do Mindelo, apesar de relativamente curta, é rica em acontecimentos que dariam para muitos filmes e romances históricos de elevado interesse.
O meu pai Manuel Dias e o meu avô paterno José Dias, mindelenses de gema, trabalharam na Millers & Corys, uma das empresas inglesas que prestavam serviço na Baía do Porto Grande e que fechou as portas em 1977. Ainda me lembro desse triste acontecimento, num tempo em que o Porto Grande já estava há muito em declínio. Para além das respectivas indeminizações, e de uma condecoração atribuída ao meu avô uns anos antes pela Rainha Isabel II como “Member of the British Empire” (pelos relevantes serviços prestados durante 25 anos no Consulado Inglês, onde chegou a ser Pro-Cônsul), sobraram pendurados na parede lá de casa os dois quadros escritos em inglês a elogiar a contribuição dos dois abnegados funcionários da Millers & Corys. Uma medalha de prata e dois quadros. Muito pouco para vidas inteiras dedicadas a contribuir para o enriquecimento de empresas das terras de Sua Majestade, uma estória comum a tantos cabo-verdianos que trabalharam nas empresas britânicas. A mim e à minha irmã coube-nos um cão que só percebia inglês, prenda dos amigos que partiam, o que resultou nalguma dificuldade de comunicação na altura. Partiram os últimos ingleses e com eles um importante capítulo da história de Cabo Verde.
Quando entrei ainda jovem na Shell Cabo Verde, tive o privilégio de conversar com reformados dessa empresa que me contaram como muitas vezes trabalhavam durante 7 dias seguidos sem vir a terra nas lanchas que abasteciam os navios ao largo, ao relento, levando frio à noite e calor durante o dia, trabalho que seria classificado de escravo pelos padrões dos nossos dias. Tenho pena de não ter gravado esses históricos depoimentos.
Este Porto Grande onde floresceu a cosmopolita e dinâmica cidade do Mindelo e onde os cabo-verdianos privaram com a liberdade dos horizontes do oceano Atlântico já só existe na memória colectiva, algo que muitos continuam a ter dificuldade em perceber.
No momento em que o Mindelo comemora 140 anos de elevação à categoria de cidade, o debate sobre as causas do relativo atraso da ilha e como procurar novos rumos é mais pertinente do que nunca.
E aqui estaremos mais uma vez para participar nele.
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 906 de 10 de Abril de 2019.