José G. Herculano de Carvalho, na sua Teoria da Linguagem, em que demonstra a Natureza do Fenómeno Linguístico e a Análise das Línguas, procurando uma definição da «linguagem» objecto da linguística faz, antes de mais, a identificação do seu objecto de estudo como a «linguagem humana» de entre outros fenómenos em diversos aspectos (essenciais) idênticos mas também fundamentalmente «diversos» como a «linguagem falada», a «linguagem» dos gestos», a «linguagem da pintura» ou «da música», etc. Portanto, apesar de «essencialmente idênticos», no exercício de identificação do seu objecto de estudo – linguagem humana – o Professor Herculano de Carvalho separa-o da «linguagem da música» entre as outras atrás referidas. Por isso é que quando se compreende como funciona a linguagem humana e se é capaz de observar a música em execução verifica-se que, «essencialmente», em ambas as realizações os respetivos pólos/intérpretes ou agentes da comunicação procuram apreender e partilhar algo com sentido, isto é, significado melódico e significado linguístico, respetivamente. Que a Morna, expoente máximo da música caboverdiana, atingiu já um nível de comunicabilidade (em termos de execução e expressão) que lhe confere a grandeza das melhores músicas do mundo, e lhe faculta a capacidade de se fazer compreender em qualquer parte do mundo. Que os sons com que os mesmos se manifestam são produzidos com um mesmo dispositivo – o aparelho fonador do homem. Que, de entre outros aspectos, durante uma execução musical, os intérpretes da morna são capazes de distinguir os sons específicos da cabo-verdianidade das melodias de outras culturas ou civilizações.
A produção dos sons e melodias ajuda a reconhecer ou distinguir o que é nacional do que é pertença dos outros em contextos culturais globais, não obstante confluências mais ou menos parciais que testemunham e podem justificar a influência e dimensão global da morna. No entanto, com a música, os segmentos melódicos não correspondem a conceitos isolados, idênticos aos da linguagem verbal, construídos com sons articulados de forma semelhante à da produção de consoantes e com obstruções sistemáticas da passagem do ar pelo aparelho fonador. Contrariamente, na música, durante uma produção sonora, o aparelho mantém a passagem livre, mais ou menos aberta, modulando os sons durante a produção, contraindo ou alargando o diâmetro do canal vocal, de acordo com a natureza do som que se quer produzir. Deve-se ter em conta que este trabalho se refere exclusivamente à música propriamente dita, independentemente do poema que ela poderá, por sorte, suster ou acompanhar. A melodia deverá, como a linguagem, provir da estrutura profunda e caótica dos sons potenciais da música una e universal, na fase antecedente à sua realização. Esses sons destinam-se à produção dos segmentos musicais que, quando bem escolhidos, organizam-se obedecendo a uma certa imposição tradicional e projectam na superfície a estrutura melódica da cabo-verdianidade de entre várias estruturações melódicas possíveis e aceite pelos intérpretes musicais através da fruição como a nossa música – A Morna, neste caso.
Estando a Morna no patamar das músicas globais que, pela riqueza melódico-cultural que comportam, se consideram património imaterial da humanidade, acha-se relevante, agora que se procura a sua elevação a tal categoria, procurar e trazer ao público algo de conteúdo, relacionado com a magia comunicativa deste género musical e com a dimensão dos valores partilháveis que ela transporta, não só pelo prazer de pesquisar mas pela satisfação de se poder colaborar no desvendar do mistério contido no seio da Morna e partilhável com o resto do mundo. Não só pela vontade de aprender mas também para contribuir para a defesa da riqueza dos valores imateriais partilháveis da identidade caboverdiana existentes na morna. Por isso é que na sua produção procura-se incidir sobre os aspectos identitários subjacentes à natureza dos sons selecionados e organizados na produção da linha melódica que especifica, neste caso concreto,o género musical caboverdiano, a Morna, carregando no seu seio o sincretismo cultural que impregna a natureza do ser humano destas ilhas.
A definição das suas características estruturais e temáticas conduz a uma abordagem dos factores endógenos e exógenos que influenciam o processo de afirmação da cultura caboverdiana através da revelação e difusão dos elementos da identidade do ser caboverdiano. A natureza híbrida do ser caboverdiano revela-se, através da capacidade que ele tem de comunicar particularmente através da morna, sua vertente musical por excelência, de forma idêntica à performance de outras vertentes ou géneros do universo cultural global tão complexo que é o mundo. É por isso que se quer acreditar na possibilidade do aproveitamento da expressão desse multifacetismo cultural cabo-verdiano, através da sua música, como factor potencial do desenvolvimento do país.
A Morna é vista, nesta dissertação, como veículo/instrumento de comunicação da caboverdianidade em duas dimensões: uma intracomunitária i.e. dentro da comunidade caboverdiana no país uno na sua dimensão arquipelágica e extensão diaspórica; outra intercomunitária, i.e. entre as comunidades parcelares que perfazem o todo nacional e entre a comunidade caboverdiana e nacionalidades de outros pontos do globo, sobretudo dos países que acolhem a emigração caboverdiana. Em ambas as abordagens de natureza intra e /ou intercomunitária, procura-se alcançar o objecto de fruição cultural que, plasmado na sua melodia, se reconhece como algo caboverdiano na sua especificidade. Entretanto, por arrastar consigo marcas dos sons universais coexistentes com o mesmo ainda no estado caótico da estrutura profunda, isto é, anterior à sua realização, o objecto também é susceptível de ser fruído por ouvintes/intérpretes não nativos presentes no acto de execução da morna. É no querer desvendar esse objeto identitário veiculado pela morna, passível de ser compartilhado simultaneamente pelo nativo e pelo não nativo é que está o cerne da questão/ problemática. Alcançar reconhecendo os laivos de música caboverdiana, separando o feixe de gradientes melódicos particularmente intrínsecos à Morna dos das músicas de intérpretes diversos presentes no acto de produção ou fruição e portadores de várias nacionalidades não é tarefa fácil. Deve ser por isso que um compositor ou intérprete sem a devida preparação ou cultura musical, ao querer produzir uma morna, toca mais uma balada ou outra coisa por aí parecida e nunca a morna, aquela Morna, rainha da música caboverdiana.
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 913 de 29 de Maio de 2019.