Histórias da educação na literatura (IV)

PorAdriana Carvalho,11 jun 2019 6:12

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[Capitão de mar e terra (1984), de Henrique Teixeira de Sousa]

Na historiografia da educação em Cabo Verde, de onde em onde, aparecem referências a uma figura solitária e muito esquecida no universo do professorado: o explicador. Por definição, os explicadores são homens e mulheres que praticam um ensino paralelo e suplementar ao sistema educativo oficial como atividade informal e privada.

Este ofício, ainda hoje presente, foi exercido por professores do ensino oficial em regime de acumulação, por funcionários públicos, alguns autodidatas, e por estudantes dos últimos anos do ensino secundário e do superior. As explicações eram dadas em casa dos explicadores, na sala de visitas, num quarto acrescentado, num quintalão ou num sótão.

Ficção

Vamos conhecer o centro de explicações no sótão de Nhô Miguel:

“– Bom dia, gente.

– Bom dia, papá.

[Nho Miguel] Trouxe meia dúzia de velas, que foi uma a uma colocando em cada mesinha de estudo. Na mesinha do Tói, para sua explicação da manhã. Na mesinha do Clarimundo, para os seus estudos do 5.º ano, a pouco menos de um mês dos exames. Na mesinha do Olavo, do mofino e rebelde Olavo, para o esforço final do seu 4.º ano. Na mesinha da Adelaide, para findar o 6.º ano com as notas do costume, sempre no ponto mais alto das classificações, lá no accesserunt do quadro de honra, ou coisa parecida em Latim. Ah, coitado dele, que só teve a 4.ª classe! As duas restantes velas colocou-as sobre uma estante, com mais dois pratinhos de vidro, para ajudar a iluminar aquela igreja da sabedoria. Era um sótão amplo, ainda sem divisórias, de tecto alto, salvo junto às paredes mestras, onde o telhado desabava suavemente. Quatro janelas, duas na empena sul, outras duas na empena norte, garantindo o arejamento e a claridade todo o dia. Ainda não tinha amanhecido direitamente. Faltavam vinte para as cinco. Então as velas eram necessárias àquela hora em que a luz eléctrica já se havia extinguido.

(…)

À tarde, cerca das cinco horas, o sótão enchia-se de novo de livros e cadernos e da zoada dos estudantes à beira dos exames, os filhos de Nhô Miguel mais os explicandos de Tói, distribuídos pelos respectivos lugares, dando ali no duro para arrancar boas classificações. (…)

Agora [terminadas as aulas] era só estudar com toda a força para o dia daquele bolo e vinho. Nhô Miguel festejou sempre os exames dos filhos desde a instrução primária. Viva aquele bolo! Viva! Viva aquele vinho! Viva! Viva aquela mãe! Viva! Era enfim gratificante a alegria do mês de julho, grupos de meninos, de rapazes e raparigas calcorreando as ruas de Mindelo, gritando vitória por si e pelos outros. Nada melhor para elevar uma criatura do que a luz da instrução. Felizmente quantos frequentavam aquele sótão assim pensavam, incluindo os que precisavam da ajuda do Tói. E Tói entendia de tudo, tanto de Letras como de Ciências. Fizera as duas secções com dezoitos e dezanoves. Os patacos ganhos nas explicações depositava-os na Caixa Económica Postal para depois seguir para Lisboa e ali tirar um curso superior, Matemáticas, Físico-Químicas, Engenharia Civil ou outro qualquer”.

Capitão de mar e terra, pp. 15; 21.

O romance fixou o tempo existencial numa sobreposição de planos: o geográfico, a cidade de Mindelo nos anos trinta; o social figurado na perceção da escola como “igreja da sabedoria” e o pessoal, personificado em Tói “que entendia tanto de Letras como de Ciências” e poupava “os patacos ganhos nas explicações (…) para seguir para Lisboa e ali tirar um curso superior”.

Fontes históricas

Ao confrontar a literatura com a ciência histórica encontrei indícios de colaboração que transportam, qual máquina mágica do tempo, a educação do passado para o presente. 

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 Anúncio no Boletim Oficial n.º 42, de 21 de outubro de 1911, p. 386.

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Anúncio no Boletim Oficial n.º 36, de 3 de setembro de 1927, p. 410.

Os Boletins Oficiais, em setembro - outubro, início de um novo ano letivo, publicavam anúncios de cursos particulares de instrução primária e de explicações para habilitação ao ensino ministrado no Liceu (até 19561 só em Mindelo).

Porém, na Praia, os cursos de explicações, durante mais de quarenta anos, cumpriram uma outra missão: colmatar a inexistência de um estabelecimento de ensino liceal na cidade-capital, preparando os estudantes para os exames só possíveis noutra cidade, noutra ilha.

Como disse a jornalista Maria Helena Spencer, “em Cabo Verde, quem tenha dificuldades e não possa viver em São Vicente, tem de contar com uma boa dezena de anos de apoquentação”. Acrescentou, na crónica escrita no Boletim de Informação e Propaganda, em junho de 1956:

Na Praia, duas ou três pessoas procuram, com afinco ajudar a resolvê-lo, preparando as crianças para os exames do liceu. Mas lutam com dificuldades de toda a ordem por mais que façam e empreguem todo o seu saber e dedicação não conseguem pôr-se a par dos programas e métodos do ensino do Liceu e, no fim do ano, vêm inutilizado todo o seu esforço, com uma percentagem de cerca de 75% de reprovações que os deixam envergonhados, criam complexos de inferioridade nas crianças e causam grandes prejuízos económicos à maioria dos pais que, muitas vezes não podem, no ano seguinte, obter o necessário para nova despesa.

Num apontamento autobiográfico2, Daniel Resende Benoni Costa recordou as dificuldades de um estudante residente na Praia:

“Com o diploma da admissão ao liceu estive, dois anos, sem estudar, pois não havia liceu na Praia. Com 13 anos, o meu pai mandou-me estudar com o Sr. João Baptista Teixeira Alves, funcionário administrativo. O meu explicador, que vivia na casa onde hoje são as Finanças, não cobrava nada pelo trabalho.

Estudei o 2º ciclo dos liceus num curso de explicadores, na rua Serpa Pinto (na antiga casa do Padre Duarte), orientado pelo Sr. Vicente Gominho, funcionário aduaneiro, e pelo Sr. João Morais, funcionário da meteorologia. Pagava uma mensalidade de 150$00 que, na época, era muito dinheiro. Lembro-me que o Prof. Gominho ensinava Geografia, História, Inglês e Físico-Química. (…)

Como conseguíamos os livros? Em segunda mão. Não havia livrarias”.

De novo se intersectaram documentos de arquivo, registos (auto)biográficos e ficcionais. No romance emergiram evidências históricas com a expressividade própria da linguagem artística e recriou-se um tempo real, vivido por Teixeira de Sousa, autor-narrador-personagem.

Importa, todavia, não esquecer que a literatura, enquanto configuração imaginada do real, é uma categoria de fonte especial para a história.

1 Ano em que começou a funcionar a Secção do Liceu Gil Eanes na Praia, criada pelo Decreto nº 40.198/1955, de 22 de junho.

2 In Memórias do Liceu da Praia, livro coordenado por Adriana Carvalho e Lourenço Gomes (2013), p. 80.

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 914 de 5 de Junho de 2019. 

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Autoria:Adriana Carvalho,11 jun 2019 6:12

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  18 jun 2019 17:25

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