Entretanto, nas democracias contemporâneas, é possível identificar no «património comum da laicidade» quatro elementos principais: a neutralidade confessional do Estado e dos poderes públicos; o reconhecimento da liberdade religiosa e da liberdade de não religião; a liberdade de consciência em relação a todos os poderes filosóficos e religiosos; a reflexividade crítica e o debate contraditório aplicados aos domínios religioso e político.
A Laicidade pressupõe uma limitação interna da racionalidade governamental, uma limitação que o Estado impõe a si mesmo em relação aos assuntos religiosos. Ora, que significa aplicar o princípio do Estado de direito na ordem religiosa? Significa que só poderá haver intervenções legais do Estado na ordem religiosa se essas intervenções assumirem a forma, e apenas a forma, de introdução de princípios formais.
No Cabo Verde pós-colonial, na Fase da Reconstrução Nacional (1975-1990), as autoridades políticas, ao abrigo da LOPE e da Constituição de 1980, demandaram um campo religioso compatível com a construção identitária erigida sob a denúncia/recusa das ações civilizadoras do Estado colonial. Foi estratégia política dominante a redução e o confinamento do papel social de Igrejas que pudessem pôr em causa a ideologia política dominante e o projeto da africanização dos espíritos. Deixaram de existir quaisquer entraves políticos à entrada do Islão no arquipélago, mas o não reconhecimento jurídico da confissão religiosa denominada Testemunhas de Jeová, presente desde 1958, assim como a prisão de alguns dos seus membros jovens por objeção de consciência, constituem algumas evidências objetivas da forma como a pluralidade e a liberdade religiosas foram lesadas nesse período. O Estado-teleológico, responsável por anunciar a verdade derradeira, que também pretendeu ser um Estado-historiador, abrigou uma laicidade autoritária orientada para a contenção.
Na Fase da Inserção Dinâmica na Economia Mundial (1991-2001), as autoridades políticas, baseadas na Constituição de 1992, erigiram a Igreja como parceira no desenvolvimento espiritual dos cidadãos. Se o diálogo foi estabelecido com instituições religiosas com forte presença no espaço público (Igreja Católica local e Igreja do Nazareno), foram levantados quaisquer impedimentos ao reconhecimento jurídico das confissões religiosas presentes no arquipélago. Ementes, vigorou uma laicidade liberal orientada para a instrumentalização política do religioso, objetivada no fenómeno das profanações dos lugares de cultos e dos símbolos católicos. Este fenómeno e a prisão de alguns adventistas como suspeitos da autoria das profanações em 1993, 1995, 1998, sem o devido processo legal, constituíram os principais atentados à liberdade religiosa.
Por sua vez, na Fase da Agenda da Transformação (2001-2016), as autoridades políticas promoveram o cristianismo como uma das dimensões da identidade nacional e construíram, paulatinamente, a instituição da Igreja como parceira/cooperante no processo de desenvolvimento humano e social, quadro que se mantém na Fase da Agenda da Prosperidade para Todos, iniciada em 2016. A estratégia política dominante, marcada pelo contexto pós 11 de setembro de 2001, tem sido a instrumentalização diplomática da universalidade de identidade cristã e a promoção do papel social das Igrejas. Vigora uma laicidade também liberal orientada para a parceira/cooperação, sustentada na Constituição da República e, principalmente, no Acordo entre a República de Cabo Verde e a Santa Sé relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica em Cabo Verde, de 10 de Junho de 2013, e na Lei n.º 64/VIII/2014, que estabelece o Regime Jurídico da Liberdade de Religião e de Culto em Cabo Verde, de 16 de maio de 2014.
Disposta em oito capítulos, esta atende algumas questões como a secular crispação entre o protestantismo, particularmente, a Igreja do Nazareno, e o Catolicismo; responde as interrogações relativas à laicidade do Estado cabo-verdiano com base na problematização do Acordo Jurídico de 10 de Junho de 2013; e faculta uma base jurídica à construção do pluralismo religioso em Cabo Verde.
Entendemos que a Lei n.º 64/VIII/2014 tem como aspetos problemáticos a sua não aplicação a organizações que perfilhem doutrinas filosóficas de caráter espiritualista, nem a atividades relacionadas com fenómenos metapsíquicos ou parapsíquicos (Cap. I: art.º 1: 2); a dicotomia Igrejas Radicadas vs. Igrejas não Radicadas (Cap. I, art.º 2: g); a formalização da indiferença do Estado laico em assuntos religiosos (Cap. II, art.º 9: 2), deixando, por exemplo, ao arbítrio das coletividades religiosas a construção das suas dinâmicas associativas e/ou comunicativas (Cap. IV, art.º 17: e) / (Cap. IV, art.º 18: h); e a estipulação de um regime de cooperação e de parceria com as coletividades religiosas sustentado no critério da representatividade (Cap. II, art.º10: 1), um aspeto comungado com a Lei de Liberdade Religiosa de 1971.
A leitura deste diploma revela que a celeuma em torno da tolerância de ponto que o Governo de Cabo Verde outorgou aos funcionários públicos, por ocasião da cerimónia das exéquias do Bispo Emérito Dom Paulino Évora é estéril em termos formais.
No capítulo III, referente aos direitos individuais emergentes da liberdade de religião e de culto, aparece o artigo 15º que diz respeito ao direito a dispensa por motivo religioso. Este prevê, na alínea 1, que os funcionários e agentes do Estado e demais entidades públicas, bem como os trabalhadores por conta de outrem têm o direito de, a seu pedido, suspender o trabalho no dia de descanso semanal, nos dias das festividades e nos períodos e horários que lhes sejam prescritos pelas religiões que professem, nas seguintes condições: a) serem membros de coletividade religiosa reconhecida em Cabo Verde; b) ter a coletividade religiosa comunicado ao serviço central da administração laboral, até ao termo do ano civil anterior, os referidos dias e períodos de suspensão prescritos; c) haver compensação integral em trabalho, dos dias e períodos de suspensão nos termos do presente artigo.
Um entendimento pacificado mostra-nos que a Resolução n.º 80/2019, que concedeu tolerância de ponto aos funcionários dos Estado, dos Institutos Públicos e das Autarquias locais na ilha de Santiago durante todo o dia de 19 de junho de 2019, foi um ato de cortesia do governo, para com os seus funcionários féis e para com a Igreja Católica, local e universal, com propósitos sociais e diplomáticos. Se quisessem ser formalistas e rigorosos, a autoridade governamental poderia evocar a lei e comunicar aos seus funcionários em que condições deveriam solicitar a dispensa para a referida cerimónia. O ponto b) da alínea 1 do art.º 15, acima citado, seria um constrangimento, dado que a Igreja Católica, certamente, não tinha previsto a data do falecimento do Bispo Dom Paulino Évora.
Racionalizando de forma substantiva, digamos que imperou a boa vontade e o bom senso da parte do Governo perante uma situação que a Lei n.º 64/VIII/2014 prevê, mas que não explicita. Se isso fere a laicidade de República é uma questão sobre a qual poderia pronunciar-se a Comissão da Liberdade Religiosa, estabelecida no citado diploma e, até a data, não constituída.
Decorrente do facto de se perceber que não existe uma laicidade «pura», mas que os modelos imanentes dão corpo «as razões do Estado» em diferentes momentos, tornou-se recorrente a racionalização instrumentalizada da laicidade, tanto no âmbito político como no âmbito religioso. Convenientemente, agentes e estruturas da esfera política dialogam de forma parcial e conjuntural com as forças religiosas e antirreligiosas a partir das racionalizações que estas fazem da laicidade. Merece realce que enquanto os cristãos católicos demandam o reconhecimento da sua prevalência histórica, cultural e demográfica (evocando uma laicidade que respeite as assimetrias sócio-religiosas); os cristãos não católicos demandam um igual tratamento jurídico (reclamando uma laicidade que promova a simetria sócio-religiosas); os não cristãos reclamam a sua integração social (apelando a uma laicidade não discriminatória); e os não religiosos, ateus, agnósticos e os seguidores de doutrinas filosóficas espiritualistas, apelam ao controlo político e jurídico sobre a expansão do domínio religioso (demandando uma laicidade de combate).
O modelo de laicidade do Estado de Cabo Verde deve ser entendido, assim como os outros, como formulação social e configuração política que procede em compromisso (sempre temporário) entre o político e o religioso, compromisso que, segundo as relações de forças, as estratégias e os interesses dos agentes, tende a evoluir e a transformar-se. É, assim, perturbador da ordem social que alguns setores da sociedade cabo-verdiana usem a laicidade como uma arma de arremesso político, ora contra o Estado, ora contra a Igreja, e a problematizem com absoluto descaso para como os aparatos jurídicos formais acordados e assinados. Afinal, como principiar a problematização pública da laicidade senão a partir desses aparatos formais?
Adilson F. Carvalho Semedo
Cientista Social/Sociólogo – Professor Auxiliar na Uni-CV
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 917 de 26 de Junho de 2019.