Chegaram as chuvas. Depois de uma ausência de dois anos seguidos o arquipélago foi contemplado pela queda das águas num primeiro do que se espera sejam vários “rounds” de chuva. A alegria no rosto de todos revela mais uma vez o efeito poderoso que “azágua” tem na psique cabo-verdiana. Mobiliza pessoas de volta para os campos, dá um outro vigor aos camponeses que em antecipação já tinham semeado em pó e renova a esperança de todos que o ano agrícola será de fartura. Há séculos que os cabo-verdianos vivem o drama de esperar que as chuvas caiam, que venham no tempo certo e que não causem demasiados estragos. Demasiadas vezes não acertam. A história do arquipélago é em muitos aspectos tributária do facto do sonho não se concretizar e em vez do bom ano desejado se ter que lidar com a tragédia das secas, com mortes do gado e não raramente ao longo da história também com o horror das mortandades resultantes das fomes. Toda essa luta pela sobrevivência numa terra em que realmente não chove e deixa as populações completamente desamparadas perante os efeitos de secas sucessivas moldou este povo como nenhum outro. Contribuiu com os ingredientes certos para gerar uma nação, a partir das gentes a labutar nas diferentes ilhas, caracterizada por um rosto e marcas culturais sem igual nas várias experimentações humanas na bacia do Atlântico que se sucederam à descoberta do Novo Mundo.
O sucesso na luta pela sobrevivência foi fundamental para a cabo-verdianidade. No meio da precariedade reinante alimentou os laços de solidariedade, ajudou a criar um ethos e uma ética de trabalho que sempre distinguiu os cabo-verdianos no país e no estrangeiro e dirigiu o foco das famílias e da sociedade para a necessidade de educação e da relação com o mundo. Sentimentos de fatalismo, ressentimento e menoridade falharam em se instalar. Pelo contrário, o amor à terra natal, a sodade e a morabeza tornaram-se elementos distintivos da alma do cabo-verdiano nos quais todos procuram se rever. Com a independência nacional e a ajuda externa mais abrangente e substancial, porque não limitada ao que Portugal poderia oferecer, a questão da sobrevivência deixou de se colocar. Como diria o poeta “as estiagens deixaram de nos meter medo”. O país com mais apoio financeiro e de outro tipo e maior acesso a mercados estaria pronto para passar de uma postura de sobrevivência para uma de luta pelo desenvolvimento. Com sorte e perspicácia dos governantes talvez pudesse capitalizar sobre as qualidades adquiridas no confronto com as dificuldades do país e fazer da luta pelo desenvolvimento também uma caminhada de sucesso. Quis o destino que não fosse assim.
As secas de 2017 e 2018 vieram relembrar com particular brutalidade que a vulnerabilidade das populações no mundo rural e a precariedade da sua existência não foi alterada substancialmente desde da independência. É um facto que investimentos de muitos e muitos milhões foram feitos ao longo de décadas e nos últimos anos em barragens, sistemas de irrigação e acções múltiplas de apoio a agricultores. A verdade porém é que não se submeteram a qualquer estratégia coerente de desenvolvimento e o resultado é o que se vê: a produtividade manteve-se baixa, a qualidade fraca, o mercado restrito e os canais de distribuição ineficientes. Deixaram as populações a funcionar numa lógica de sobrevivência e quando a seca adveio com particular dureza ficaram completamente expostas e mais uma vez teve-se que pedir ajuda internacional para minimizar o impacto no rendimento das pessoas e nos seus pertences. Alternativas de emprego e rendimento em sectores como a indústria e os serviços não foram construídas porque faltou visão, empenho para fazer as reformas no ambiente de negócios e não se apostou na educação com inteligência e sentido estratégico.
Olhando retrospectivamente pode-se constatar que realmente nunca se chegou a operar a mudança completa do paradigma de sobrevivência para o de desenvolvimento. Há provavelmente várias razões para isso mas é evidente que a principal é política. Num país de escassez brutal de tudo e funcionando numa lógica de sobrevivência, detém de facto o poder quem administra os recursos, garante os acessos e escolhe os ganhadores. O aumento expressivo de ajuda externa no período pós-independência serviu para legitimar o partido único que dizia querer acabar com as fomes e educar toda a gente. Nos anos que se seguiram o Estado cresceu de forma acelerada e com ele uma classe média a ele subordinada e grata enquanto se reduzia a parte da estrutura produtiva do país nas mãos de privados. Com tanta gente no Estado, nas empresas públicas e nas FAIMO na condição de dependentes é evidente que não havia espaço para se cultivar os valores civis e éticos indispensáveis ao desenvolvimento.
Desenvolvimento precisa de liberdade, autonomia, iniciativa e criatividade, para além de um ambiente socioeconómico e político que respeita os direitos da propriedade, dá garantia de cumprimento de contractos, trata a todos por igual e tem tribunais independentes para dirimir conflitos. O problema é que ao não existirem durante muitos anos ficou difícil institucionalizá-los na sua plenitude ao longo da segunda república. Nestas condições a resistência às reformas de todo o tipo e em particular às reformas económicas é enorme. É só ver a resistência da administração pública em adoptar procedimentos mais expeditos, o apoio transversal na sociedade que se dá à economia informal e o suporte explícito de que gozam certos interesses corporativos com prejuízos evidentes para o país. Contribui para a manutenção desta situação o facto de a ajuda externa e da cooperação ter mantido um papel proeminente e praticamente nos mesmos moldes mesmo nos anos de regime democrático não obstante a retórica no sentido diferente. Sem uma alteração dos hábitos a tendência é para as instituições e os actores deixarem-se ficar no seu papel tradicional e resistir às reformas que eventualmente irão enfraquecer o seu status sócio-económico e afectar negativamente nos meios que poderá aceder ou disponibilizar. Por aí se vê o quanto tem sido difícil pôr de lado a perspectiva de sobrevivência e abraçar a via de desenvolvimento.
Entretanto o país vai sulcando o seu caminho ainda com a pessoas a sonhar que as chuvas poderão trazer a felicidade, ou na falta delas, a água das barragens ou a água dessalinizada servirão para isso e para manter fixa as populações nas zonas rurais com as suas culturas de subsistência. Num outro registo assiste-se ao esforço de outros sectores como o turismo, a construção civil, o comércio, transportes e os serviços em geral em se manterem de pé perante os efeitos erosivos de uma economia em vários aspectos desestruturada e dominada pela informalidade. Em acréscimo têm ainda de suportar os custos de água, energia e outros produtos e serviços tornados caros precisamente por falta de eficácia na acção do Estado para pôr cobro à situação existente. Concluindo, pode-se dizer que sem a solidariedade de outrora, em que realmente estava em jogo a sobrevivência, todos quererão arrebatar o seu quinhão onde puderem e não haverá vontade crítica e orientação compreensiva e estratégica para efectivamente se criar valor e prosperar com benefícios para todos.