Prezado Doutor,
Há anos que leio os seus escritos no Expresso das Ilhas. Leio-os não por apreciar o seu estilo cáustico ou os epítetos que usa para apodar aqueles que têm ideias diferentes das suas, como “idiotas de serviço” e outras designações pejorativas. Também não pela impressão que deixa nos seus leitores de se considerar detentor da verdade absoluta e de que o resto do mundo, ou pelo menos todos que consigo não concordam, são ignorantérrimos que não percebem nada de nada, mesmo sendo os melhores entre nós; tampouco por parecer crer no dogma da sua infalibilidade pessoal quando fala ex cathedra.
Leio os seus artigos, a despeito de tudo isso, porque é uma pessoa instruída, porque gosto de ponderar contraditórios e porque, mesmo entre os impropérios e as desconsiderações do outro, talvez eu possa apreender algo mais acerca dos problemas cá do burgo, os quais gosto de conhecer e compreender.
Assim, ao ler o Expresso do passado dia 18 de Dezembro, não voltei a página do seu escrito sem a ler. Nunca o faço. E ainda bem que não o fiz, pois no seu artigo há uma referência pouco abonatória a uma pessoa que me é muitíssimo querida, e que já não está no mundo dos viventes para lhe responder. Aliás, possivelmente, nem se daria ao trabalho de se baixar para o fazer! Mas eu não o posso deixar passar em claro.
Na primeira coluna, o Senhor Doutor refere-se à posição do ex-Presidente António Mascarenhas Monteiro aquando da revisão constitucional de 1992, a posição que ele e outros juristas (portanto seus colegas) e cidadãos nacionais sufragaram. E diz, com direito a itálico, que é uma falsa questão, “que não encontra guarida nem na história política universal nem, tampouco, na teoria constitucional ”. E, a meio da terceira coluna, de novo diz que “Benfeito M. Ramos, Mascarenhas Monteiro e tutti quanti partem de uma premissa errada. E por isso chegam a uma conclusão lapidarmente incorrecta, inválida.”
Até, aqui, Senhor Doutor, para mim tudo bem – mas talvez não para outros que, senhores também da matéria em debate, têm outras interpretações. Pois, se estas não fossem possíveis, certamente não haveria controvérsia. A não ser que sejam todos “ignorantes, mal-intencionados, maquiavélicos ou, de novo… idiotas de serviço”!
Mas, tudo bem, pois o Direito, repito, passou-me ao largo, a não ser nas questões comezinhas. E dizer que alguém está errado não é ofensa nenhuma. E seria igualmente tudo bem, eu sei, para António Mascarenhas Monteiro, o homem culto e sabedor, conhecedor também do seu métier, que reconhecia nos outros o direito ao contraditório, à expressão das suas próprias opiniões, mesmo as contrárias às dele, e por essa liberdade intelectual lutou longos anos da sua vida e primou todo o resto dela.
Além disso, António Mascarenhas Monteiro, com a lucidez e a honestidade intelectual que lhe eram reconhecidas, sabia não ser perfeito, infalível, ao contrário de muitos. E perante argumentos convincentes que derrubassem os seus, era Homem para admitir estar errado. Se é que esteve no caso em apreço. E digo “se”, porque não era pessoa para falar com leveza, procurando ter muita certeza do que dizia, especialmente em matéria de tanta importância.
Mas, até aqui, seria, o que vulgarmente se diz, uma troca de galhardetes entre cavalheiros, entre “pares”, esgrimindo ideias, esmiuçando um assunto que já fez correr muita tinta, o que mostra não ser tão claramente “preto ou branco”.
Portanto, vamos dar isso de barato, pois eu não me pronuncio sobre coisas que não sei.
Agora, Senhor Doutor, onde exorbita, de maneira condenável, ao estilo normal dos seus escritos, é quando diz, quase no fim da quinta coluna (!), que “António Mascarenhas Monteiro, já agora, tentou iludir a nação em 1992” – de novo com direito a itálico.
Isto, só na sua cabeça, Senhor Doutor! Que não sabe contentar-se com defender ideias, mas tem de lançar suspeições, dúvidas e acusações não fundamentadas contra aqueles que não pensam segundo os seus guiões. Que até se arvora em Deus, que é o único que pode saber as intenções dos outros e, assim, distinguir entre sinceros erros de julgamento e maquiavelismo ou falta de sinceridade. Pois, quase no fim do artigo, há uma acusação implícita de falta de sinceridade e de coerência.
Não, Senhor Doutor. Vê-se que nunca deve ter privado, nem de perto nem de longe, com o Homem que foi António Mascarenhas Monteiro – Homem com “H” maiúsculo, como poucos. Nunca se apercebeu da sua nobreza de carácter, da sua verticalidade, do seu cuidado nos pronunciamentos, da sua generosidade, da sua contenção, do seu falar só quando absolutamente necessário. Nunca o viu na sua grandeza de Homem que tratava todos por igual, sem nunca desprezar ou espezinhar ninguém, mesmo aqueles que pensava estarem errados, designadamente os seus oponentes.
O que escreveu nesse seu fim de artigo é um insulto à memória de António Mascarenhas Monteiro, um Homem de convicções, incapaz de iludir ou ludibriar alguém, quanto mais a sua Nação! Não só o Homem, mas o Presidente que ele foi, que sempre pugnou pela integridade pessoal, pela elevação de carácter e pelo bem desta terra e da sua gente, até ao ponto de promulgar a tal Constituição – sem recurso a nenhum artifício político ou jurídico – quando, segundo a sua própria opinião, não concordava com ela. E se não entender que é uma manifesta deselegância, um insulto, o que escreveu – então tenho muita pena de si, Senhor Doutor. Precisa rever-se a si mesmo, ver-se ao espelho, descobrir se não falta algo muito importante na sua cultura humanística e geral, na sua formação pessoal – aquelas coisas que são aprendidas a partir do berço e se continua a aprender a vida toda, e que a instrução nem sempre dá: especialmente quando falta humildade, aquela humildade (que não é humilhação, mas elevação de espírito) de que era pródigo António Mascarenhas Monteiro, nunca insultando, nunca desprezando, nunca tratando outros como não gostaria de ser tratado.
Sugiro-lhe, Senhor Doutor, que cresça, que cresça humildemente nessas coisas e, talvez, um dia possa compreender e se possa aproximar da ética e do sentido de Estado de António Mascarenhas Monteiro; e aprender a tratar os outros com elegância, com nobreza, com espírito de igualdade, mesmo com generosidade; e a não julgar intenções, pois só Deus o pode fazer.
*Viúva de António Mascarenhas Monteiro.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 944 de 01 de Janeiro de 2020.